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    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC/SP

    Renata M. Brunetti

    A escutado mundo da v idana constituio de uma

    sociedade emancipatria

    DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

    SO PAULO

    2007

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    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC/SP

    Renata M. Brunetti

    A escutado mundo da v idana constituio de uma

    sociedade emancipatria

    DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

    Tese apresentada Banca Examinadora da

    Pontifcia Universidade Catlica de So

    Paulo, como exigncia parcial para a

    obteno do ttulo de Doutor em PsicologiaSocial sob a orientao do Prof. Doutor

    Antonio da Costa Ciampa.

    SO PAULO

    2007

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    Banca Examinadora

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    AGRADECIMENTOS

    O meu maior agradecimento cabe aos meus queridos filhos, Thiago e

    Thomaz hoje, meus melhores amigos. Agradeo a eles, a companhia

    carinhosa e amiga nestes anos, o estmulo e a pacincia nos dias mais duros,

    que no foram poucos.

    Agradeo aos meus pais, o apoio carinhoso que me deram. Aos meus

    irmos e familiares, a fora de sempre.

    Aos queridos Rony, Clia e Chico, o estmulo na busca de novosdesafios e o apoio consolidao de minhas conquistas.

    Agradeo ao meu orientador Prof. Dr. Antonio da Costa Ciampa, a

    confiana que depositou em meu percurso acadmico.

    Gostaria tambm de agradecer minha banca examinadora no exame

    de qualificao, Prof. Dr. Mario Aquino Alves, Prof. Dr. Peter Spink e Prof. Dr.

    Odair Sass, as preciosas indicaes e questionamentos.

    Ao meu grande amigo Carlos Carvalho, que h anos, vem me ajudando

    a elaborar as experinciasde vida.

    Agradeo dedicadssima Amnris Maroni, a sua especial habilidade

    em compor o intelectual e o potico, que deram o contorno deste trabalho;

    querida amiga Malu Zoega de Souza, por sua dedicao, ao ler, reler meus

    escritos em tantas madrugadas.

    Para finalizar, gostaria de agradecer a Deus pela oportunidade que tive

    de entrar em contato, durante o desenrolar deste trabalho, com a alma de

    pessoas maravilhosas como Vera Cordeiro, Daniel Becker, Jos Pereira de

    Oliveira Junior e Jailson de Souza e Silva, meus entrevistados.

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    RESUMO

    A escutado mund o da v idana constituio de uma sociedade emancipatria

    O objetivo da pesquisa que deu origem a este texto foi tentar localizar em

    nossa sociedade, por meio da anlise de entrevistas com alguns fellows da Ashoka

    figuras sociais , espaos nos quais aes que promovam emancipao sejam

    possveis.

    Foram questionadas algumas formas para nomear essa figura social, uma vez

    que ela no se enquadra espontaneamente como um empreendedor, nem como o

    conhecido militante. Poetas e poliglotas do social foram os nomes utilizados nestetrabalho para valorizar suas qualidades de escuta do sociale de mediao.

    A anlise das entrevistas apontou que eles valorizam sobremaneira os

    saberes locais, so multifocais possuem mltiplos interesses, so incapturveis.

    Diferentemente do antigo paradigma, em vez de definir formas de produzir o mundo,

    vo at l o mundo, o mundo da vida de Habermas o escutam, o traduzem e

    fazem sua mediao com o mundo sistmico.

    A inspirao terica principal do filsofo J. Habermas. Refletimos algumasdas suas recentes preocupaes tericas. No evitamos, porm, recorrer a outros

    autores e outras proposies. Interessou-nos sobremaneira dar sentido e significado

    aos nossos entrevistados e, ento, nesse trabalho, a teoria est a servio do mundo

    emprico. A compreenso da experincia que fizemos com os nossos entrevistados

    e aquela que os entrevistados fazem com a comunidade foi o elemento guia que,

    por assim dizer, selecionou a teoria.

    Por fim, o trabalho sugere que essas figuras sociais, com suas atividades

    parecem ensaiar mudanas na cultura poltica com fortalecimento da sociedade civil e

    uma mudana no paradigma do conhecimento. Uma cultura poltica que implica,

    antes de tudo, a conscientizao de nossa responsabilidade individual e social.

    Palavras chave: empreendedor social sociedade civil terceiro setor

    responsabilidade social mundo da vida

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    ABSTRACT

    Thel is tening to the l i fe-world in the conception of an emancipatingsociety.

    The objective of the research that originated this text was, by means of the

    analysis of the interviews with a few Ashoka fellows social figure, try to identify

    spaces in our society, in which actions that promote emancipation are possible. Trying

    to locate models, recipes, pre-defined and replicable solutions; however, the reading

    and listening during the works carried us in another direction.

    Some forms of defining a name for the social figure were questioned, since

    they dont spontaneously fit as entrepreneurs, nor as the well known militant. Social

    poetsandpolyglotswere names used in this work to enhance their qualities in social

    listeningand mediation.

    The interview analyses showed they strongly value local knowledge, are

    multifocal have multiple interests, are incapturable. Differently from the old

    paradigm, instead of defining forms of producing the world, they go out there the

    world, Habermas life-world listening and translating it, and mediating it with the

    systemic world.

    The main theoretical inspiration belongs to the philosopher J. Habermas. We

    reflected some of his recent theoretical concerns, not avoiding however, referring to

    other authors and propositions. High interests were placed in providing sense and

    meaning to our interviewees. Thus in this work, theory is at the service of an empirical

    world. The comprehension of the experience performed with our interviewees as

    well as that of the interviewees with their communities was the key element, that as

    such, selected the theory.

    Lastly, the work suggests that these social figures, with their actions, seem to

    rehearse changes in the political culture with the strengthening of civil society, as well

    as a change in knowledge paradigm. The rehearsal a political culture that may results,

    first and foremost, in facing our conscious individual and social responsibilities.

    Key word: social entrepreneur civil society third sector social

    responsibility life-world

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    SUMRIO

    APRESENTAO O processo de transformao de minha identidade ................09

    INTRODUO O caminho percorrido .................................................................... 17

    CAPTULO 1 A emancipao localizando brechas ............................................. 29

    CAPTULO 2 A redescoberta do mundo da vidacomo fonte de sentido ............. 41

    CAPTULO 3 procura de um nome..................................................................... 56

    CAPTULO 4 O momento originrio um novo comeo ....................................... 78

    CAPTULO 5 Travessias da/na experincia social ................................................104

    CONCLUSO Mudana na cultura poltica: ensaiando caminhos .......................138

    BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................... 151

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    Devemos ser a mudana que queremos ver no mundo

    Gandhi

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    APRESENTAO: O processo de transformao de minha identidade

    Esta a segunda vez, nos ltimos cinco anos, que me vejo diante da

    necessidade de fazer uma apresentao formal, de fazer um escrito que relata

    fatos memorveis. Pela segunda vez, preciso organizar minha histria e

    selecionar fatos importantes memorveis de minha vida. Como j fizera

    isso na apresentao do mestrado, parecia-me lgico simplesmente darcontinuidade ao que havia comeado. Localizei e abri o antigo arquivo em meu

    computador, certa de que bastaria acrescentar as ltimas novidades.

    Ao iniciar a leitura, dei-me conta de que muitas coisas importantes

    haviam mudado. O tom que usei no era o mesmo que gostaria de usar desta

    vez; o formato cronolgico tambm no me agradava mais. Percebi, alm

    disso, que alguns fatos relatados com grande destaque no tinham mais a

    mesma medida no momento presente. Por um lado, fiquei desapontada, pois

    isso significava um novo esforo; teria de trabalhar duro para elaborar este

    novo memorial. Por outro lado, fiquei muito contente e orgulhosa por perceber

    o movimento da vida em mim: transformaes tinham ocorrido que no mais

    me reconhecia na escrita.

    Que bom que mudei pois, at uns dez anos atrs, acreditava ser

    possvel construir racionalmente uma vida estvel, protegida, dentro de planos

    traados. Sobre-vivia s quebras, s mudanas de rumo, aos acertos e aos

    desacertos. De alguma maneira, no os sentia. Tocava minha vida, famlia,

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    filhos, trabalho. Via-me como uma pessoa conformada pelos altos e baixos:

    no me desorganizavam e nem me abalavam no dia-a-dia. E o mais grave de

    tudo sentia-me privilegiada por isso.

    Hoje percebo, com auxlio das proposies de Walter Benjamin, em

    torno da noo de vivncia e deexperincia1,que a estabilidade de minha

    vidase dava custa de racionalizaes, mais precisamente, da resistncia da

    minha conscincia ao novo. Essa resistncia levava-me a evitar experincias

    autnticas, ou seja, protegia-me dos choques. Com isso, estava apenas

    sofrendo vivncias.Segundo o autor, na Modernidade, a conscincia produzida

    pela extensiva recorrncia dos choques tem servido de proteo contra os

    estmulos, impedindo assim a experincia e, com ela a memria involuntria.

    Dito de outra maneira, para Benjamin, traumas e choques inerentes

    vida moderna so to recorrentes que os vivenciamos e no mais os

    experienciamos. Ora, quando a conscincia falha que temos acesso

    experincia. por isso que, quando s vivenciamos quando no

    experienciamos , nossa conscincia cronolgica. Cronos, o tempo da

    conscincia moderna, o deus das vivncias: a memria voluntria.

    Os memoriais, as apresentaes inclusive a minha no mestrado

    primam pela seleo cronolgica dos fatos memorveis. Venho aprendendo,

    muito aos poucos, a me abrir para os fatos inscritos na memria involuntria.

    Assim, fascinada, mas tambm insegura com essas novas portas de

    percepo (choques, falha da conscincia, memria involuntria), narro os

    fatos mais recentes ligados minha carreira profissional e, para minha

    surpresa, ainda uma vez, vejo-me narrando os mesmos fatos, porm sob umnovo olhar.

    Formei-me em Desenho Industrial no Mackenzie em 1981 e trabalhei,

    at 1995, com arquitetura de interiores, uma atividade que visava compor o

    Belo para o lar de pessoas, sendo esse belo definido pelas tendncias

    presentes em revistas da moda. Sentia-me implantandotendncias modernas

    na vida de meus clientes. Quantas vezes, em nome de garantir o belo, de no

    1BENJAMIM, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire - Charles Baudelaire um lrico no auge do capitalismo;traduo de Jos Martins Barbosa, Hemerson Alves Baptista. 1. ed. So Paulo: Brasiliense, 1989. (Obrasescolhidas; v. 3) - p. 129

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    ferir a esttica do ambiente, vi-me obrigada a atropelar as histrias e apegos

    dessas pessoas... Sinto, hoje, que atropelava sem perceber uma de suas

    almas, a que olha de dentro para fora, de acordo com a feliz expresso de

    Machado de Assis em O Espelho. Como Jacobina personagem do conto ,

    eu s contemplava, no meu fazer, a alma exterior das pessoas, as suas

    personas, as suas mscaras.

    Resolvi, ento, mudar de rumo. Comecei a procurar uma nova atividade

    profissional que fizesse mais sentido para mim. Voltei a estudar e

    paralelamente iniciei um trabalho voluntrio em uma organizao do Terceiro

    Setor.

    A idia de realizar uma atividade profissional voltada a causas sociais

    levou-me a direcionar meus estudos para a rea. Participei, na poca, de

    diversos cursos e seminrios, iniciando, assim, a construo de uma nova

    carreira. Oportunidades foram aparecendo e meu envolvimento foi

    aumentando. Passei a fazer parte do grupo de professores de um curso de

    especializao em captao de recursos para organizaes do Terceiro Setor,

    da Fundao Getlio Vargas - FGV/SP, em parceria com a Indiana University

    The Fund Raising School.

    Para minha surpresa, nessa nova trajetria, percebi que comeava a

    questionar minhas certezas, a mudar trajetrias, errando e acertando algumas

    vezes. Entretanto, ainda imaginava que esses sobressaltos fossem parte dos

    ltimos ajustes na conquista daquele projeto definitivo de vida.

    Capacitei-me para essa nova fase, dessa vez, mais acadmica. Fiz

    mestrado na PUS/SP em Psicologia Social, no Ncleo de Identidade orientadapelo Prof. A. C. Ciampa. Estudei no s o processo de constituio da

    identidade do captador de recursos para organizaes do Terceiro Setor no

    Brasil minha atual atividade profissional , mas tambm o possvel significado

    de sua ao na formao de uma sociedade emancipatria.

    Foi um trabalho de interpretao de questionrios respondidos por 140

    captadores de recursos; de entrevistas abertas (histrias de vida) e de dados

    coletados de pessoas que tinham proximidade entre si e amplo conhecimentode captao. A partir da anlise feita, aprofundei uma discusso em torno da

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    constituio da identidade desses profissionais por meio de seus processos de

    metamorfose.

    Nas entrevistas, os captadores indivduos que se deslocaram, na

    grande maioria dos casos, de suas antigas reas de atuao profissional

    mostraram-se pessoas em constante transformao. E, como tinha acontecido

    comigo, foi possvel tambm com eles perceber o processo de constituio de

    suas identidades, as crises vividas, os questionamentos feitos e os novos

    posicionamentos adotados. Apoiei-me na noo de identidade definida pelo

    processo de busca da emancipao, a identidade ps-convencional do

    filsofo alemo Jrgen Habermas2.

    Nessa poca, dei-me conta, ainda uma vez, do olhar limitado que

    mantinha em relao minha vida, da desconexo com a realidade que

    minhas buscas por estabilidade e por definies me colocavam. E, s

    recentemente pude perceber que o mestrado que fiz achando que era

    apenas para atender as necessidades da nova fase, ou seja, oferecer cursos

    de captao de recursos para a FGV e outras instituies de ensino de fato

    serviu-me como um espao muito rico de reflexo sobre a minha prpria

    histria, minha prpria metamorfose. A pesquisa sobre a constituio da

    identidade dos captadores de recursos, os cursos que ofereci sobre o assunto,

    o exerccio mesmo da escrita, tudo isso me levou a uma transformao muito

    grande, at pelo fato de perceber que no sou a nica a enfrentar grandes

    transformaes na vida.

    Terminado o mestrado, tive a oportunidade de fazer um curso MBA

    sobre o Terceiro Setor e pesquisei alternativas que dessem conta das

    carncias sociais. Escolhi verificar se o Terceiro Setor poderia desenvolver

    modelosde atividades de promoo social. Ao pensar em transformaes que

    fossem emancipatrias, acreditava ainda ser possvel traar modelos,

    encontrar solues. A tendncia de pensar dessa forma sustentava-se na idia

    2HABERMAS, J. Pensamento ps-metafsico: estudos filosficos; traduo: Flvio Beno Siebeneichcheler. Rio de

    Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro Ltda 1990. (2. ed. Frankfurt am Main, Ed. Suhrkamp, 1988). A identidade ps-convencional, ou seja, a individuao uma identidade formada a despeito dos papis sociais e contra a idia dos

    tipos sociais convencionais , exige autonomia e conscincia. Nas palavras do autor: A necessidade de evitarconvenes petrificadas, impostas pela sociedade, sobrecarrega o indivduo com decises morais prprias e com umesboo individual da vida resultante de um auto-entendimento tico. (p.217).

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    de que parcerias entre as organizaes da sociedade civil e os demais setores

    poderiam ampliar o impacto de suas aes.

    Para aprofundar a idia de modelo fiz algumas leituras de Hannah

    Arendt e Zygmunt Bauman, e continuei tambm estudando J. Habermas. Essas

    leituras me permitiram compreender a dificuldade de sustentar a idia, mais do

    que isso, de defender a idia de projetos, modelos, receitas, solues.

    Durante o doutorado, continuei lendo diferentes autores, diferentes

    linhas de pensamento, construindo olhares mltiplos sobre os temas que

    escolhia. Estudei autores modernos, ps-modernos, crticos da Modernidade...

    Com eles, dei-me conta, ainda uma vez, da minha luta constante em

    permanecer moderna, controlando, produzindo ordem, buscando segurana. E,

    claro, fui obrigada a compreender que isso mesmo que buscava era o que

    estava em questo. Ou seja, que estamos vivendo um tempo cultural marcado

    pela incerteza.

    A leitura de autores como H. Arendt, J. Habermas e Z. Bauman, que

    trabalham com a idia de um mundo aberto, foi, passo a passo, me contatando

    com a dificuldade de sustentar, nos dias de hoje, a idia de um projeto(moderno) baseado em modelos. Esses autores me convidaram a lidar com

    indefinies, incertezas e imprevisibilidades.

    Hannah Arendt, em seu livro A Condio Humana3, trabalha com os

    conceitos de labor, de trabalho e de ao, partindo da idia de que o

    labor visa satisfazer necessidades vitais e o trabalho visa orientar a

    produo de algo. Denuncia a autora que, na Modernidade, ocorreu uma

    substituio da ao pela fabricao. Argumenta que essa substituiopretendeu libertar a humanidade da imprevisibilidade, s que, ao eliminarmos a

    ao, eliminamos tambm a pluralidade e a poltica. Construmos uma

    sociedade ancorada na idia de fabricao: perdemos a espontaneidade e a

    imprevisibilidade na relao comum, num espao comum.

    A crtica de Arendt idia de modelo aparece quando a autora mostra

    que hoje no estamos mais em uma sociedade de labor, dando conta de

    3ARENDT, Hannah.A condio humana. Traduo de Roberto Raposo, posfcio de Celso Lafer. 10. Ed. , Rio deJaneiro: Forense Universitria, 2003. (Licensed by The University of Chicago Press, Chicago, Illinois, USA. 1958).

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    nossas necessidades instintivas. Mesmo quando delas damos conta, ns o

    fazemos por meio do trabalho: uma sociedade de planejamento, de modelo,

    uma sociedade de fabricao. Diz Arendt:

    O processo de fazer inteiramente determinado pelascategorias de meios e fins. A coisa fabricada umproduto final no duplo sentido de que o processo deproduo termina com ela (o processo desaparece noproduto, como dizia Marx), e de que apenas um meiode produzir esse fim. verdade que o labor tambmproduz para o fim de consumo, mas como esse fim, acoisa a ser consumida no tem a permanncia mundanados produtos do trabalho, o fim do processo no determinado pelo produto final e sim pela exausto dolabor power, enquanto que, por outro lado, os prprios

    produtos imediatamente voltam a ser meios desubsistncia e reproduo do labor power. No processode fabricao, ao contrrio, o fim indubitvel: ocorrequando algo inteiramente novo, com suficientedurabilidade para permanecer no mundo como unidadeindependente, acrescentado ao artifcio humano.4

    J Jrgen Habermas, que prope uma sociedade autnoma marcada

    por identidades ps-convencionais, tendo essas identidades no

    convencionais como motor da dinmica social, faz a crtica idia de modelo

    quando demonstra que, ao partirmos do geral, de um modelo definido a priori

    ancorado no universal pensamento metafsico de Descartes e Kant ,

    perdemos a possibilidade de atingir o individual e o particular. a teoria

    dominando a prtica: o logocentrismo.

    Segundo o autor, a tradio da metafsica, da filosofia da conscincia e

    da subjetividade equaciona tudo o que h em torno da primazia do geral sobre

    o individual. Essa tradio leva-nos a pensar no que existe de comum, de

    geral, e no no que existe de individual. Essa crtica idia de modelo

    consiste, justamente, em pensar que, enquanto estivermos olhando sob a tica

    da primazia do geral, estaremos desvalorizando o individual. Atravs do

    pensamento, subsumimos o singular ao geral, conseguindo apenas ver o

    individual como no idntico.

    4ARENDT, H., op. cit., p. 156.

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    Habermas encontra na guinada lingstica uma nova forma de unir

    individualidade em unidade, pois o pensamento metafsico no nos permite

    garantir essa individualidade como singularidade. O filsofo apia-se nos

    conceitos do Eu e do Me de George Mead, das interaes sociais para a

    formao de identidades ps-convencionais, e no papel do Direito para

    normatizar as intervenes no convencionais e torn-las convencionais.

    Em uma sociedade constituda por identidades ps-convencionais, de

    acordo com Habermas, precisamos do Direito para normalizar as intervenes

    no convencionais e torn-las convencionais. O processo, porm, no acaba

    a, uma vez que essas novas convenesdevem ser questionadas por outras

    identidades no convencionais e assim por diante. Identidades no

    convencionais estaro sempre propondo novas normas a serem generalizadas

    e tornadas convencionais.

    Zygmunt Bauman faz a crtica por outro vis: critica a prpria cincia

    moderna que, ao aliar-se ao poder poltico, produziu o totalitarismo moderno.

    Define o momento atual como Modernidade Lquida, ou seja, voltil, fluido,

    diferentemente do anterior, que pretendia ser slido e estvel. Discute como o

    projeto da Cincia ordem e transparncia pretendeu (e pretende) produzir

    a realidade e nos levou (e leva), paradoxalmente, ao alargamento progressivo

    do caos e da desordem.

    Na Modernidade, com o Iluminismo, pensava-se que a razo poderia dar

    conta das incertezas do mundo; pretendia-se, entre outras coisas, acabar com

    as mazelas sociais atravs da Igualdade, Fraternidade e Liberdade e, assim,

    produzir um mundo transparente, seguro e certeiro.

    Segundo Bauman, a promessa de criar a ordem pela Razo e pela

    Cincia est nos levando a um novo olhar sobre ns mesmos. Com o

    esgotamento do projeto moderno, na ps-modernidade ou na Modernidade

    Lquida somos obrigados a conviver com a ambivalncia. A velocidade e as

    mudanas impostas pela Modernidade dificultam qualquer tentativa de

    acomodao. O risco na ps-modernidade est em permitir que se ressuscitem

    ambies de endurecimento, de busca do definitivo, de projetos, de certezas,de ordem ... contra a ambivalncia.

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    O imaginrio de nossa sociedade dificulta a percepo das contradies

    presentes. Hoje percebo que passei muitos anos mergulhada numa coeso

    ilusria que mascarava as minhas contradies e as contradies do mundo,

    deixando-me protegida dos choques e, portanto, das experincias. nesse

    espao de abertura, de incertezas que me encontro como pesquisadora:

    trabalho com a idia de pluralidade, diversidade e solidariedade; com a idia de

    uma sociedade aberta que se configura a cada momento por meio de jogos de

    foras diferentes.

    Como esta apresentao evidencia, estudar, para mim, no obedece

    mais a uma experincia acadmica de titulao; antes, tem me permitido

    elaborar as minhas experincias, incorporando os saltos no meu andar como

    sugere W. Benjamim. Hoje consigo ver-me mais inserida no constante

    processo de metamorfose e transformao, ou seja, no esprito do tempo no

    Zeitgeist5. E, nele, as identidades so, como prope Habermas, ps-

    convencionais.

    5Trata-se de uma expresso criada pelo historiador suo Jacob Burckhardt para dar conta da mentalidade inscrita no

    tempo.

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    INTRODUO: O caminho que percorremos

    Frente atual configurao da sociedade brasileira, em que a

    desigualdade social vem se caracterizando como algo permanente, e dispondo

    de olhares de diferentes pensadores, pretendemos com este trabalho pensarpossibilidades de aes sociais, aes da comunidade e aes de promoo

    social estas sim de forma mais permanente.

    Partimos do pressuposto de que hoje sofremos os efeitos colaterais

    causados por um passado ancorado em um sistema social, econmico e

    poltico descomprometidoe, de certo modo, irresponsvel6em relao s suas

    conseqncias sociais e ambientais a longo prazo. Interessa-nos, neste

    momento, pensar o que fazer a partir do que j est posto. Temos clareza de

    que o primeiro passo para uma mudana passa pela conscientizao de nosso

    papel e de nossa responsabilidade em diferentes mbitos da sociedade; passa

    pelo nosso comprometimento7.

    6 Por incrvel que hoje parea, uma chamin de fbrica soltando fumaa, na dcada de cinqenta, simbolizava

    desenvolvimento, progresso, otimismo.

    7Em seu artigo A questo social no contexto da globalizao: o caso latino-americano e o caribenho, Luiz EduardoW. Wanderley confirma a necessidade desse comprometimento, ao analisar uma srie de propostas mundiais parasolucionar ou ao menos minimizar os efeitos dessa questo social. Diz ele: A idia de um compromisso social ativo, a

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    As idias de compromisso social ativo, esperana e utopia,

    mudana da realidade social a partir da participao do individuo e do coletivo,

    cidadania e solidariedade esto fortemente presentes neste trabalho.

    Na seqncia, apontamos alguns passos que vm sendo trilhados em

    diferentes caminhos e que, somados, podero ter seus resultados otimizados.

    O primeiro caminho tem como pano de fundo as empresas o setor lucrativo,

    percebemos alguns movimentos que dizem respeito a uma mudana nas

    atitudes corporativas frente sua responsabilidade scio/ambiental. Neste,

    percebemos, de um lado, algumas empresas j existentes, assumindo o

    compromisso de arcar com os efeitos colaterais de suas intervenes nasociedade e no meio ambiente movimento conhecido como Responsabilidade

    Social das Empresas ou, mais recentemente, Responsabilidade

    Scio/Ambiental das Empresas. De outro lado, vemos um esforo no sentido

    de criar oportunidades de agir na formao dos novos empreendedores; de

    oferecer conhecimento e ferramentas para que esses jovens criem seus

    negcios visando, desde o incio, tanto um retorno financeiro como um impacto

    social positivo.

    Em linhas gerais, o primeiro caminho possibilita minimizar e at frear

    aproduoem relao a novos danos scio/ambientais. Embora este trabalho

    no esteja focado nesse primeiro caminho, apresento a seguir algumas

    consideraes sobre a responsabilidade e o comprometimento das

    corporaes j existentes em relao ao social, e o esforo de transformar o

    papel dos negciosda sociedade.

    Desde o incio do sculo XX, registram-se manifestaes de

    envolvimento de empresas e empresrios com aes sociais concretas. Foi na

    Europa, nos anos 40, que se viu o primeiro apoio empresarial explcito e

    significativo em um manifesto, subscrito por 120 industriais ingleses, que

    apontava a necessidade de as corporaes atuarem com responsabilidade em

    de ter esperana, baseada numa utopia, isto , a possibilidade da humanidade e dos povos latino-americanos serem

    capazes de compreender, explicar e mudar a realidade social (...) que integre elementos objetivos e subjetivos,expressa na participao individual e coletiva de transformao social por meio de gestos concretos que cada um podeempreender, na luta cotidiana pela cidadania, na solidariedade com os injustiados e oprimidos.7WANDERLEY, LuizEduardo W. A questo social no contexto da globalizao: o caso latino-americano e o caribenho.

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    relao aos seus funcionrios e contriburem de forma efetiva para o bem-estar

    da sociedade.

    No final dos anos 60, como represlia Guerra do Vietn, iniciou-se nosEUA um movimento de boicote aquisio de produtos e de aes na bolsa de

    valores de empresas que, de alguma forma, estavam ligadas ao conflito blico

    na sia. Essas manifestaes, aliadas s lutas pelos direitos civis norte-

    americanos, trouxeram novos e determinantes fatores para essa questo: a

    participao popular, a opinio pblica e a cobrana por parte da sociedade de

    uma nova postura empresarial.

    Nos anos 70, as empresas, com a inteno de divulgar as aes sociais

    realizadas, desenvolveram balanos e relatrios dessas atividades. Tais

    transformaes, no mbito dessas empresas, relacionam-se a movimentos que

    envolvem a sociedade tais como a Marcha pela Paz, em abril de 1967, nos

    EUA, com o slogan make love, not war; e o movimento de Maio de 1968, na

    Frana, com o proibido proibir. Outro fator determinante para a entrada das

    empresas no universo das aes de carter social efetivo foi a crise do Welfare

    Statena metade da dcada de 70.

    No Brasil, no final dos anos 80, algumas empresas comeam a atuar em

    questes sociais e ambientais. Foi nesse perodo, tambm, que assistimos ao

    nascimento de importantes fundaes, institutos e organizaes da sociedade

    civil ligados ao meio empresarial, tendo como foco o comportamento

    empresarial tico e responsvel.

    Na dcada de 90, foram criados prmios, como o Prmio Eco

    desenvolvido pela Cmara Americana de Comrcio, em So Paulo

    (AmCham/SP), e algumas iniciativas marcantes, entre elas, a Fundao

    Instituto de Desenvolvimento Econmico e Social, antigo Instituto de

    Desenvolvimento Empresarial; o Pensamento Nacional das Bases

    Empresariais (Pnbe); o Gife Grupo de Institutos, Fundaes e Empresas; a

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    Fundao Abrinq pelos Direitos da Criana; a campanha da Ao da

    Cidadania. Em 1998, foi criado o Instituto Ethos de Responsabilidade Social.8

    Mais recentemente, presenciamos a entrada de novas disciplinas nasescolas de administrao Gesto Scio Ambiental9, e a criao de novos

    modelos de negcio. A Fundao Artemsia, organizao internacional que

    est no Brasil desde 2004, investe no formao de jovens empreendedores de

    negcios e os apia na implementao de iniciativas que gerem recursos e

    tenham um impacto social em comunidades de baixa renda. Ao investir no

    aprimoramento desses novos empreendedores de negcio, socialmente

    comprometidos, transforma o papel dos negcios na sociedade.

    10

    O segundo caminho trata as feridas sociais e ambientais j existentes,

    bem como amplia oportunidades de incluso remete-nos a uma determinada

    figura socialque colabora com a construo de uma sociedade emancipatria.

    Assistimos tambm hoje, um movimento significativo de soma de foras,

    saberes e recursos na direo de ampliar os impactos das aes sociais. Um

    caminho que se vale da: a sinergia entre instituies financeiras de fomento,

    instituies de apoio tecnolgico, de formao profissional, setores da

    academia, organizaes da sociedade civil e outros atores do processo. A

    chamada inter-fertilizao11das iniciativas da rea da economia social.

    Essa figura social em alguns casos, como veremos nas entrevistas

    reconhece-se como fellow da Ashoka, fundao internacional sem fins

    lucrativos, fundada em 1981 pelo norte-americano Bill Drayton, que tem como

    misso contribuir para criar um setor social empreendedor, eficiente eglobalmente integrado. A Ashoka identifica e investe em indivduos com idias

    inovadoras, criatividade e determinao para provocar mudanas sociais

    positivas e de alto impacto social. Os fellowsda Ashoka atuam em diferentes

    8Material desenvolvido a partir do Captulo 2 "Responsabilidade social das empresas e balano social no Brasil".

    TORRES, Ciro. Um pouco da histria do Balano Social, dissertao de mestrado disponvel em:http://www.balancosocial.org.br/media/ART_2002_RSE_Vertical.pdf - Acesso em: 19 agosto 2007.

    9Disciplina oferecida pela Profa. Lige Mariel Petroni MBA - FIA10Fundao Artemsia, www.artemisiafoundation.org.11

    Fonte: DOWBOR, Ladislau Redes de apoio ao empreendedorismo e tecnologias sociais 23 de Novembro de2004

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    reas: meio ambiente, educao, sade, direitos humanos, desenvolvimento

    econmico e participao cidad. A Ashoka selecionou mais de 1.700

    empreendedores sociais em todo o mundo e est presente em 62 pases. No

    Brasil, desde 1986, j selecionou e apoiou mais de 264 empreendedores

    sociais.

    Decidimos, assim, entrevistar algumas dessas figuras sociaisda Ashoka

    e conhecer suas vidas, suas travessias, suas experincias. Buscamos

    compreender essas pessoas e verificar em que medida esto colaborando com

    o desenvolvimento de prticas sociais de forma mais permanente.

    Passamos agora a discutir alguns pontos do mtodo (caminho)

    autobiogrfico ou de narrativas de histrias de vida. Muito embora, hoje, o

    chamado mtodo autobiogrfico tenha se tornado bastante disseminado e a

    bibliografia em torno dele seja imensa, no faremos uma discusso sistemtica

    dessa bibliografia; antes, partiremos de Michael Erben, pois sua proposta,

    definitivamente, casa-se com os nossos interesses. 12 Este autor vale-se de

    uma teoria da interpretao a Hermenutica ao propor que a narrativa da

    histria de vida seja lida como um texto a ser interpretado. Sua proposta

    marcada pela articulao entre a experincia pessoal e a experincia social

    e/ou cultural.

    A proposta de Erben que no haja separao entre a estrutura social e

    a subjetividade uma vez que a dialtica entre o social e o individual que

    interessa. No por acaso, a vida pesquisada apresenta-se como uma rede de

    significados (comportamentos, convices, crenas) na qual, no raro, estinserido tambm o pesquisador que a est interpretando.

    O estudo de uma vida o estudo de uma viagem no tempo, com

    acontecimentos e encontros em grande parte imprevisveis. Como ficar claro

    no decorrer do trabalho, para os nossos entrevistados essa abertura para o

    imprevisvel, que o mtodo prope, pertinente.

    12ERBEN. Michael. Biografia e autobiografia. Il significato del mtodo autobiografico. In.: Il mtodo autobiogrfico.

    Semestre sulla condizione adulta e processi formativi . Milano, Edizione Angelo Guerini e Associati, 1996.

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    Aqui, vamos nos apropriar da articulao entre o pessoal e o cultural de

    uma maneira toda especial. Esta apropriao s agora pde ser pensada e

    tecida, pois quando comeamos a fazer as entrevistas abertas, colhendo as

    narrativas dos nossos sujeitos da pesquisa, tnhamos alguma idia, claro, do

    que buscvamos; e, todavia, como comum na pesquisa qualitativa, nos

    surpreendemos a cada passo com o que escutvamos. Nossos entrevistados

    fugiam regra: escapavam daquilo que imaginvamos encontrar; no se

    configuravam de maneira tradicional, se levarmos em conta os agentes do

    social, quero dizer, os indivduos que interferem no social buscando

    transform-lo. Foi esse espanto que nos levou a uma apropriao particular do

    mtodo autobiogrfico.

    Ao partir do crculo hermenutico13,Erben prope a articulao entre o

    pessoal e o cultural. Entretanto, nossas narrativas apontavam insistentemente

    que essa articulao aparecia claramente no momento mesmo em que eclodia;

    quero dizer, as narrativas nos chamavam para o momento originrio dessa

    articulao. Momento originrio que fazia emergir, no mesmo movimento, um

    determinado tipo de figura social e um determinado tipo de proposta social.

    Dirigamos nossa escuta para esse momento. As narrativas insistiam nesse

    momento, momento de espanto para os prprios entrevistados, momento em

    que depositamos nossa ateno, escuta, emoo e reflexo.

    Para no trairmos a escuta que fazamos de nossos entrevistados,

    tivemos de aceitar, assim, um outro desafio: conciliar as contribuies tericas

    de Jrgen Habermas com um mtodo de pesquisa14 que nos permitisse ir a

    campo. Essa aproximao, todavia, no foi simples, pois exigiu cuidados ediscriminao. No estamos supondo uma justaposio ingnua e a-crtica

    entre esses diferentes campos tericos e, todavia, no pudemos prescindir de

    um instrumento metodolgico para ir a campo15. Mantivemos, ento, ecoando,

    13O chamado crculo hermenutico uma das contribuies fundamentais da Hermenutica; nele, as partes e o todo

    se articulam, e no possvel conhecer a parte fora do contexto em que se situa.14MEAD, G.H. Mind, self & society. Chicago: University of Chicago Press, 1934.15

    De acordo com a Linha de Pesquisa Identidade social como metamorfose humana, do Prof. Dr. Antonio da CostaCiampa ... podemos identificar, em linhas gerais, trs grandes perodos histricos: o metafsico (ou ontolgico), o

    epistemolgico ( ou transcendental) e o semntico-hermenutico (ou da filosofia da linguagem). A pesquisa, que contacom a abordagem terica a partir de J. Habermas, e com o mtodo autobiogrfico com base na hermenutica est deacordo com esse terceiro perodo. Alis, como o prprio Ciampa nos permitiu compreender, a filosofia hermenuticae a analtica formam tradies menos concorrentes do que complementares.Volto a citar Ciampa longamente: ... Oterceiro perodo ( filosofia contempornea) surge da constatao bvia de que somos seres lingsticos, pois usamos a

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    as proposies tericas de J. Habermas com um mtodo que valoriza

    sobremaneira o mundo da vida. O mtodo autobiogrfico um mtodo antigo

    que j esteve presente em outros momentos, indica-nos caminhos para

    compreender as identidades ps-convencionais, tal como prope Habermas,

    dos nossos sujeitos de pesquisa, bem como o sentido emancipatrio dessas

    experincias sociais. Para a compreenso dessas identidades ps-

    convencionais, fizemos uma escuta que valorizou as travessias, passagens,

    transformaes, metamorfoses de nossos entrevistados e de suas experincias

    sociais.

    Trabalhamos aqui no com um conceito abstrato dos nossosentrevistados e/ ou das experincias sociais que foram e esto sendo

    implementados; muito pelo contrrio, facilitamos que nossos entrevistados

    saltassem de seu entorno, narrando o momento originrio de sua constituio.

    Procuramos trazer tona como nossos entrevistados vem, sentem e

    interpretam esse momento, tendo clareza de que eles no s fazem a escuta

    do mundo da vida como so produto desse mesmo mundo da vida.

    Buscamos compreender os sujeitos da pesquisa a partir de suas

    motivaes, seus desejos, sua capacidade de escuta interessada do mundo

    da vida. O que mais nos chamou a ateno nas narrativas colhidas foi o

    imprevisvel configurando novas possibilidades. a isto que estamos

    chamando de momento originrio16 e nele o sentido da experincia que, aos

    poucos, se revelava para os prprios entrevistados o que ficar claro quando

    entrarmos nas narrativas. interessante ressaltar que nossos entrevistados

    ainda contam o nascer de suas experincias com emoo, com afeto pelas

    linguagem como condio para produzir e transmitir conhecimentos. A linguagem surge como problema, de formaque passamos a ter um discurso sobre a linguagem ou um discurso sobre discursos.Neste perodo, pode-se falar emduas tradies: a analtica e a fenomenologia-hermenutica. a partir dessas duas tradies que Habermas vaidesenvolver a pragmtica da linguagem, uma terceira posio.Ainda que no seja simples distinguir essas tradies,a sugesto considerar no problema a diferena entre a questo do valor de verdade(verdadeiro-falso) e a questodo sentido( o que significa o que dito) de um enunciado. O sentido de um enunciado independente de seu valor deverdade, mas isso no ocorre no caso inverso: o valor de verdade de um enunciado no independente de seusentido. Num primeiro caso, atribuir um valor de verdade, trata-se de conhecer( descrever, explicar); no segundo,captar sentidos, trata-se de entender(compreender). Entender um enunciado uma condio necessria de todoconhecimento daquilo que ele diz. Assim, pode-se dizer que a passagem do perodo epistemolgico para o semnticocentraliza-se na antecedncia lgica da questo do significado em relao do conhecimento. A semntica ocupa olugar central que a teoria do conhecimento ocupava.

    16Nome que inventamos para descrever o momento em que as figuras sociaisque estudamos escutam os apelos do

    mundo da vida e se instituem como tal.

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    pessoas que lhes indicaram os novos caminhos. Fomos obrigados a fazer a

    escuta desse momento originrioporque, at hoje, j passados alguns anos, os

    nossos entrevistados mostram-se afetados por acontecimentos que chegaram

    no se sabe de onde e os repropuseram em uma nova perspectiva.

    Ora, quando vamos em busca do sentido e do significado das

    experincias, estamos em pleno crculo hermenutico cruzamento da

    experincia pessoal e da experincia social , pois estamos apreendendo o

    sentido e o significado no contexto. O mtodo em questo no busca a verdade

    e, sim, o sentido e o significado das experincias.

    Pretendemos captar o sentido que est presente na textura da vida dos

    nossos entrevistados, levando em conta que o pesquisador tambm parte do

    mesmo contexto social e cultural dos pesquisados, e a narrativa que da resulta

    deve ser vista como apenas uma das possveis narrativas.

    Este trabalho, despretensiosamente, oferece apenas um olhar, uma

    fotografia, uma imagem, entre tantas outras possveis, dos sujeitos

    pesquisados, na busca de espaos emancipatrios. O trabalho de pesquisa eeste em particular uma possibilidade, uma perspectiva, um olhar, uma

    visada e, guardadas as devidas propores, poderamos metodologicamente

    compar-lo com uma das pinturas de Monet: A Ponte. Sempre a mesma, a

    ponte sofria, porm, diferentes visadas do pintor. E, se outros pintores

    pudessem pint-la, a mesma ponte sofreria ainda novas visadas.

    Isso nos coloca diante da idia de mutabilidade do olhar, do devir17,

    diante da idia de que a nossa prpria narrativa, refiro-me a esta tese, uma

    entre outras, uma perspectiva possvel. Isso, porm, no significa cair no

    subjetivismo, pois estamos ancorados em uma des-construo, contamos com

    uma perspectiva metodolgica, com rigor, porm no o rigor do pensamento

    puro cartesiano de uma verdade nica, que produz o mundo. Antes, nossa

    narrativa reinsere o pesquisador no contexto social e cultural, reinsere o

    pesquisador no mundo da vida.

    17No pretendo aqui excluir a idia de mudana do prprio sujeito observado, apenas no a estou considerando.

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    Como apoio terico para este estudo nos servimos tambm do conceito

    de emancipao, e apresentamos como o tema vem sendo tratado por trs

    diferentes pensadores considerados modernos e ps-modernos: Jrgen

    Habermas, Zygmunt Bauman e Boaventura de Souza Santos.

    Esses autores, muito embora partam de filiaes tericas diferentes,

    localizam a importncia de redefinir o sentido de emancipao. Para

    Habermas, a redefinio de emancipao est ligada razo comunicativae

    s identidades ps-convencionais. Para Bauman, esta redefinio est ligada

    poltica com P maisculo, j que o privado invadiu o pblico. Para

    Boaventura Santos, a emancipao h de ser concreta, ento precisorecuperar e fortalecer as racionalidades locais e o que, o autor denomina as

    mil comunidades interpretativas. Esse captulo, cuja elaborao bastante

    pontual central para o argumento da tese. A redefinio do sentido da

    emancipao no atual momento nos permite, exatamente, pensar os

    entrevistados em nova direo e apostar no ttulo que demos tese. Essa

    discusso apresentada no captulo 1.

    J. Habermas, mais do que os outros autores, inspirou-me, inquietou-me

    e acabou por oferecer-me caminhos. Detive-me em alguns de seus escritos: O

    Pensamento Ps-metafsico; A tica da discusso e a questo da verdade ,

    um debate sobre a obra Verdade e Justificao, e alguns comentrios de

    Claude Pich: A passagem do conceito epistmico ao conceito pragmatista de

    verdade em Habermas.

    Em linhas gerais, a teoria de Habermas descreve uma sociedadedividida em dois grandes mundos18: o mundo da vidae o mundo sistmico,

    dois mundos com racionalidades diferentes. O mundo da vida, regido pela

    razo comunicativa orientada pela lgica da solidariedade; e o mundo

    sistmico regido pela razo instrumentale dividido em dois subsistemas: o

    Governo, orientado pela lgica do poder, e o Mercado orientado pela lgica do

    18HABERMAS, Jrgen. Pensamento ps-metafsico: estudos filosficos; traduo: Flvio Beno Siebeneichcheler. Riode Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro Ltda 1990. (2. ed. Frankfurt am Main, Ed. Suhrkamp, 1988)

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    lucro. A compreenso desses diferentes mundos com suas diferentes lgicas

    permitiu-me analisar e pensar as questes sociais.

    Um outro aspecto do pensamento de Habermas, importante para estapesquisa, a crtica identidade convencional partindo do sujeito cartesiano.

    O filfoso, ao criticar a metafsica moderna, vale-se da chamada guinada

    lingsticae, ento, discute o sujeito a partir da intersubjetividade. Para ele,

    ao recuperar a teoria da subjetividade de George Mead, o sujeito fala e age

    sempre em dilogo com outros sujeitos que se mostram. Habermas prope

    uma sociedade autnoma marcada por identidades ps-convencionais.

    Afirma, ainda, o que tambm me interessou sobremaneira que uma

    racionalidade apoiada na relao entre indivduos, a racionalidade

    comunicativa, poderia retirar a Filosofia da posio de prestar servios

    Cincia e coloc-la no lugar de mediadora entre a Cincia e mundo da vida.

    Prope, assim, ofilsofo poliglota, aquele capaz de fazer a escuta do mundo

    da vida, de ouvir as reivindicaes da comunidade e lev-las aos outros

    mundos. Essa discusso constitui o captulo 2.

    No captulo 3, apresentamos a Ashoka, organizao internacional que

    apia nossos entrevistados, e depois brincamos com a idia de como nome-

    las.

    Toda a bibliografia que consultamos insiste em nomear nossos

    entrevistados de empreendedores sociais, militantes sociais, lideres sociais. O

    nome muito importante, pois ele nos direciona para um campo de significao

    que tambm afetivo, imaginativo, volitivo. Dar um nome criar um mundo.

    Os nomes tradicionalmente atribudos aos nossos entrevistados,

    definitivamente no nos satisfizeram e, ento, no presente captulo, buscamos

    desconstruir as nomeaes dadas, e localizar um novo nome mais afim com a

    novidade que suas prticas e suas personalidades encerram.

    Para servir de apoio na interpretao das entrevistas, apresentamos

    tambm o que alguns pensadores tm a dizer sobre a re-valorizao dos

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    saberes locais, a valorizao do mundo da vida, e sobre a fora motivadora

    do desejo.

    No captulo 4, narramos o momento originrio, o nascimento dessasfiguras sociais, a partir mesmo da escuta das reivindicaes do mundo da

    vida. Mostramos que nossos quatro entrevistados, mais do que receptores de

    uma inspirao, mais do que portadores de uma idia genial, foram impactados

    pela escuta que fizeram, e foi a partir do abalo desses impactos que emergiram

    experincias sociais inovadoras. Fomos atrs do momento do espanto, daquilo

    que deu origem a uma nova questo, refiro-me, experincia social que essas

    figuras sociaisajudaram a gestar.

    Mostramos que, embora elas j tivessem realizado muitas coisas, algo

    fez com que dessem entrada nesse novo mundo que, ento, se tornou seu

    mundo. Apontamos que essas figuras sociais nascem junto com o prprio

    projeto social, junto com a prpria escuta que esto fazendo.

    No captulo 5, descrevemos as travessias dessas figuras sociais na

    realizao de seus projetos, e destacamos a pluralidade de suas mentes. Valedizer, tem mltiplos interesses e, ento, esto longe de uma vocao linear.

    Recusam a profissionalizao e se mostram abertos para o inusitado.

    Aprendem com o outro, com a vida, coma os impasses. Estar com o outro, criar

    mundos com o outro, parece ser vocao. So grandes tradutores de mundos:

    traduzem um mundo para o outro: o mundo da vida para a poltica, o mercado

    e as ongs. So poliglotas sociais. So tambm grandes mediadores entre-

    mundos. Convivem e se deixam tocar pelo sofrimento, pelo sombrio, pelotenebroso. Aprendem tambm com isso.

    So capazes de escuta e, por isso aprendem. Essa a caracterstica

    marcante da qual as outras derivam. So plurais e inseparveis: identidades

    ps-convencionais, no melhor sentido habermasiano.

    Finalmente, na Concluso, nos perguntamos se essas figuras sociais

    incapturveis, alm de construrem brechas emancipatrias no esto tambmconstruibuindo para se pensar em uma mudana na cultura poltica

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    propriamente dita. Uma cultura poltica em que est presente a fora da

    sociedade civil, a iniciativa dos cidados na implementao de experincias

    criativas e o florescimento de novos na verdade antigos, mas esquecidos

    sentimentos sociais: a solidariedade, a compaixo, a felicidade pblica. Uma

    sociedade composta por identidades ps-convencionais.

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    CAPTULO 1 A emancipao : localizando brechas

    Neste trabalho, verificamos que o espao em que as figuras sociais

    atuam pode ser considerado uma fendano sistema excludente e produtor de

    desigualdades que nos cerca. Essa fenda pode ser, tambm, um espao para

    alternativas de transformao da sociedade. Nossa pesquisa, atenta ao dizer e

    ao fazer dessas figuras sociais, deu particular ateno s brechas

    emancipatrias a inscritas, e aos novos valores que da emergem nasociedade: solidariedade, autonomia, emancipao.

    Com a inteno de conhecermos um pouco do que se pensa sobre

    emancipao, apresentamos neste captulo alguns olhares sobre o tema.

    Mostramos como o conceito de emancipaovem sendo tratado por diferentes

    autores, considerados modernos e ps-modernos, divergentes entre si.

    Apresentamos como Jrgen Habermas, filsofo alemo, redefine a questo da

    emancipao; o que Zygmunt Bauman, socilogo polons, entende por

    emancipao na Modernidade Lquida, e o que significa emancipao

    concreta para o socilogo portugus Boaventura de Souza Santos.

    Embora tenha iniciado seu trabalho com a Teoria Crtica, o projeto de

    Habermas vai alm: pretende compreender o mundo contemporneo e

    (re)pensar a Modernidade. A proximidade da teoria de Habermas com a Teoria

    Crtica est no fato de buscar uma compreenso crtica da Modernidade, comose ela prpria prestasse contas criticamente para si mesma, sobre si mesma.

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    Assim pensando, Habermas faz emergir, ainda uma vez, as condies

    necessrias para a formao de indivduos e de uma sociedade autnoma,

    livre e emancipada. Para Habermas, o processo de modernizao e a

    racionalidade instrumental ameaam um tipo de interao social; e dessa

    interao e de sua preservao depende a possibilidade de se construir, para

    os indivduos, identidades livres e, ento, escolhas de projetos de vida.19

    No livro Pensamento ps-metafsico: estudos filosficos, publicado em

    198820, Habermas defende a necessidade de se repensar o que se

    compreende por Razo, e sua compreenso a partir da linguagem. Nesse

    sentido, aponta uma nova racionalidade, apoiada na relao entre indivduos: aracionalidade comunicativa. Prope, assim, a Teoria da Ao Comunicativa,

    que se preocupa com a liberdade individual, com a autonomia e com a

    emancipao. Aponta, ento, caminhos e as condies necessrias para a

    constituio de um indivduo autnomo e emancipado. Ao comunicativa,

    para Habermas, a ao orientada para o entendimento e pressupe que,

    embora os planos de ao sejam individuais, sua realizao depende do outro,

    da cooperao e das influncias que gera no outro.

    Vivemos em um mundo onde temos uma pluralidade de projetos de vida,

    defensveis e legtimos, e existe um espao muito grande para que cada um

    possa definir o seu. Porm, existem algumas condies necessrias para que

    se possa escolher livremente o seu projeto, no qualquer coisa que vale,

    algumas condies devem ser cumpridas.

    Afirma o filsofo que a coordenao dos planos individuais deve sermediada por um entendimento, por um consenso sobre as normas que vo

    governar a interao. Essas normas devem atender algumas pretenses de

    validade: a) verdade dos contedos proposicionais; b) inteligibilidade das

    emisses ou manifestaes; c) veracidade da inteno dos sujeitos

    implicados; d) justeza ou retido das normas subjacentes situao de fala.

    19Viso panormica da obra de Habermas.Texto elaborado por RenataBrunetti, na poca mestranda em PsicologiaSocial do Ncleo de Identidade da PUC-SP, a partir de uma conversa com o Prof. Luis Schwarcz, julho de 2002.

    20HABERMAS, Jrgen. Pensamento ps-metafsico: estudos filosficos. Traduo: Flvio Beno Siebeneichcheler. Riode Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro Ltda 1990. (2. ed. Frankfurt am Main, Ed. Suhrkamp, 1988), p. 217.

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    Existem diversos universos de normas: normas de conduta, normas

    gramaticais, normas que regulam o uso correto de uma expresso. Muitas

    vezes, elas no esto explcitas em lugar algum: dependem do contexto. Em

    toda avaliao, crtica ou julgamento h uma norma pressuposta. Ao agirmos

    comunicativamente, estamos pressupondo que algumas normas esto sendo

    satisfeitas, por exemplo, a sinceridade dos participantes, a legitimidade das

    normas que governam a interao, a verdade das premissas. De fato e

    dependendo do tipo de interao, o peso recai numa ou noutra dessas

    pretenses. Para Habermas, o que importa que essas normas existam, para

    que se possa constantemente fazer crticas sobre a violao delas e de suas

    causas. Ao concretizar esses pressupostos, em qualquer contexto, por menossignificativo que seja, a utopia da comunicao est sendo concretizada -

    seriam fragmentos de emancipao21.

    Para este autor, so os indivduos no agir comunicativo que podem

    promover mudanas na sociedade, a partir do mundo da vida.So mudanas

    que se formalizam no Direito, e que, ao serem questionadas pelas identidades

    no convencionais, so re-propostas em uma nova norma. O filsofo prope

    uma sociedade autnoma marcada por identidades ps-convencionais, sendo

    essas identidades no convencionais o motor da dinmica social.

    Habermas, europeu que viveu o Estado do ps-guerra, mostra-se muito

    ctico em relao capacidade do Estado de garantir a emancipao das

    pessoas e a liberdade individual. Prope uma sociedade autnoma que se

    constri intersubjetivamente e marcada por identidades ps-convencionais.

    Estas se baseiam numa racionalidade de procedimento, no se apiam em umcontedo determinado; pressupe autonomia e levam a um processo tico

    abrangente, uma vez que o indivduo ter de fazer escolhas. Afirma o autor:

    A necessidade de evitar convenes petrificadas,impostas pela sociedade, sobrecarrega o indivduo com

    21HABERMAS, Jrgen. Para a reconstruo do Materialismo Histrico; traduo: Carlos Nelson Coutinho. So Paulo,

    SP: Brasiliense, 1983 (ETAS Libri, Milo, 1979 Editora Suhrkamp, Frankfort/Meno, 1976)

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    decises morais prprias e com um esboo individual davida resultante de um auto-entendimento tico.22

    A idia da autoconscincia e da auto-referncia so questionadas, pois

    s podemos nos constituir contando com a experincia e o reconhecimento dooutro. Segundo Habermas:

    O Selbst23da auto-relao prtica no pode certificar-sede si mesmo numa reflexo direta: ele precisa partir daperspectiva de outros; e isso vale no somente do Selbstcomo ser autnomo, mas tambm como ser individuado.Neste caso, eu no dependo do assentimento deles ameus juzos e aes, mas do reconhecimento, por partedeles, de minha pretenso de originalidade e de

    insubstitubilidade.

    24

    Para Habermas, evitar convenes petrificadas implica em

    sobrecarregar o Eu, que contraria o Me, ou seja, primeiro oEu se forma a partir

    do Me e depois se individualiza criticando-o e contrapondo-se a ele. Na

    identidade ps-convencional temos o Eu em oposio ao Me, e na identidade

    convencional temos o Eu de alguma maneira subsumido ao Me. Na identidade

    convencional o Me, que esse Eu generalizado, tem a primazia, j numa

    identidade ps-convencional o Eu tem a primazia. Ainda Habermas:

    Deste modo, a relao entre Eu e Me continua sendo achave para se analisar tambm a identidade-eu, ps-convencional e socialmente suposta. Neste nvel, porm,inverte-se a relao de ambos.25

    Quando nos vemos em uma sociedade constituda por identidades ps-

    convencionais, de acordo com Habermas, precisamos estar sempre propondo

    novas normas a serem generalizadas. Uma posio decidida em consenso, em

    uma interao comunicativa, pode se transformar em norma por incorporar

    bons argumentos. Entretanto, se for transformada em norma jurdica, passa a

    ter uma fora de coero maior. Essa uma das razes do Direito ocupar um

    lugar to importante na teoria de Habermas. O Direito, para o filsofo, tem a

    funo de mediar os mundos: o mundo da vida, governado por aes

    22HABERMAS, Jrgen. op. cit. p. 217.

    23

    Selbts a mesma coisa que self: algo em torno do si mesmo da conscincia, o todo da conscincia.24

    HABERMAS, J. op. cit. p. 220.Contamos aqui com a boa vontade do leitor nesse momento, j que a discusso queesboamos aqui em torno das identidades ps-convencionais (Eu e Me) s ganhar consistncia no captulo seguinte.25HABERMAS, J. op. cit., p. 221.

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    comunicativas, e o mundo sistmico, da burocracia estatal e da economia de

    mercado governado por aes estratgicas e instrumentais e regulado pelas

    normas.

    O filsofo alemo interpreta a Modernidade como um processo macio

    de institucionalizao da razo instrumental e estratgica; e, tambm, como o

    momento em que a Filosofia perde a posio hegemnica em relao s

    cincias, e passa a servir Cincia. Partindo dessa crtica, Habermas prope

    alterar o lugar e o papel da Filosofia: a racionalidade comunicativa poderia

    retir-la da posio de prestao de servios Cincia para dar-lhe o lugar de

    mediadora entre a Cincia e o mundo da vida. Tanto quanto a discusso daquesto do desenvolvimento do sujeito, tambm aquela a respeito do

    desenvolvimento da sociedade aparece como relevante e indispensvel para o

    estudo da identidade como processo de metamorfose26.

    Z. Bauman, socilogo polons radicado na Inglaterra desde 1971,

    considerado um dos lderes da chamada Sociologia Humanstica. Em seu livro

    Modernidade Lquida27, rev os cinco conceitos que compem as narrativas da

    condio humana: a emancipao, a individualidade, o tempo/espao, otrabalho e a comunidade. Esses conceitos sempre estaro presentes no que o

    autor entende por condio humana, embora possam se transformar, sofrer

    redefinies, deslocamentos sensveis. Meu interesse incide sobre a

    compreenso do conceito de emancipao na Modernidade Lquida que difere

    da emancipao na Modernidade Slida.28

    A nfase do autor recai sobre o conceito de espao e tempo; na

    Modernidade Lquida, tempo/espao dissociaram-se da prtica da vida etambm entre si; o tempo tornou-se instantneo. O projeto do Panptico

    26 Sob a perspectiva do paradigma da Filosofia da Linguagem, essas duas questes, ao serem tratadas

    lingisticamente, tornam-se fundamentalmente a questo do sentido do desenvolvimento do indivduo e dasociedade, que pode ser discutida (aqui de forma genrica e talvez esquemtica) como a questo do sentido deemancipao humana, que aparece nas idias de vida boa ou de uma vida que merece ser vivida (comodiscusses filosficas sobre tica e moral) e nas idias de polticas de identidade ou identidades polticas (comodiscusses polticas sobre formao de identidades e integrao na sociedade de indivduos e coletividades). Daesta proposta de uma linha de pesquisa que pode ser indicada pelo sintagma identidade-metamorfose-emancipao. CIAMPA, Antonio da Costa. Identidade como metamorfose humana - Anotaes sobrefundamentos filosficos da Linha de Pesquisa, para sistematizar a abordagem terica adotada (02.03.05).

    27BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Liquida. Traduo de Plnio Dentzein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.28Bauman considera Modernidade Lquida a modernidade atual, e a modernidade slida a que nos precede.

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    visibilidade do todo de Jeremy Bentham29, apropriado por Michel Foucault,

    serve perfeitamente como metfora moderna. Afirma Bauman decifrando esta

    metfora:

    O domnio do tempo era o segredo do poder dosadministradores e imobilizar os subordinados noespao, negando-lhes o direito ao movimento erotinizando o ritmo a que deviam obedecer era a principalestratgia em seu exerccio do poder.30

    Na Modernidade Lquida, o poder se tornou extraterritorial, no mais

    limitado, nem desacelerado pela resistncia do espao. No importa quem d a

    ordem, diferentemente da tcnica de poder do Panptico, que pressupunha

    que os encarregados estivessem na torre de controle. Nas relaes de poder

    da era ps-panptica, as pessoas que operam o poder podem ser inacessveis,

    no precisam estar presentes. Essa poca torna-se, assim, o fim de uma era

    de engajamento mtuo. Tal dissociao de tempo/espao, na era ps-

    panptica, implica uma ruptura dos laos, pois cultivar vnculos, laos de

    compromisso, impede o salto para novas oportunidades que surgem em

    diferentes lugares.

    A desintegrao da rede social, como diz Bauman, tanto condio

    quanto resultado da nova tcnica de poder. O mundo doravante deve estar livre

    de cercas, barreiras, fronteiras fortificadas para que o poder tenha liberdade de

    fluir. A era ps-panptica no suporta rede densa de laos sociais,

    principalmente aquela que esteja enraizada territorialmente.

    Outro dos cinco conceitos que compem as narrativas ortodoxas da

    condio humana a emancipao. Este conceito ser tambm re-significado

    na Modernidade Lquida.A Modernidade, diferentemente das demais formas histricas de

    convvio humano, caracteriza-se, de um modo geral, pelo uso da razo na

    busca incessante da modernizao, do aperfeioamento. A marca da

    Modernidade a apresentao dos membros da sociedade como indivduos,

    em uma incessante individualizao: uma produo tecnolgica de

    individualizao com produtos e artigos individualizados. Individualizar-se

    29Filsofo, economista e legislador ingls que viveu no sculo XIX.30

    BAUMAN, Zygmunt. op. cit. p. 17.

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    significava emancipar o indivduo das corporaes, da famlia, do todo. Para

    Bauman, emancipao, na Modernidade, definida pela busca de autonomia

    atravs da razo; tanto pelo indivduo como pela sociedade. Em suas palavras,

    A modernidade pesadaera, afinal, a poca de moldar arealidade como na arquitetura ou na jardinagem; arealidade adequada aos veredictos da razo deveria serconstruda sob estrito controle de qualidade e conformergidas regras de procedimento, e mais que tudoprojetadaantes a construo.31

    Os ltimos vinte anos, ou seja, a Modernidade Lquida, no menos

    moderna que a fase anterior, porm tem uma forma diferente de ao. A

    Modernidade Lquida traz um novo significado para individualizao.

    Individualizar-se passa a significar

    transformar a identidade humana de um dado em umatarefa e encarregar os atores da responsabilidade derealizar essa tarefa e das conseqncias (assim comodos efeitos colaterais) de sua realizao.32

    Por exemplo, no basta mais ter nascido em determinada classe social,

    necessrio viver como membro dessa classe33.

    Na Modernidade Lquida, a emancipao caracterizada pela fluidez,

    incansvel em se re-propor. Nela, uma das chaves do projeto de emancipao

    seria, ento, o indivduo passar de indivduo dejure (uma promessa) para o

    indivduo de facto. Na Modernidade Lquida a identidade no est posta, ela

    se faz, se constri. Bauman afirma que nela h um crescente abismo para que

    um indivduo de jurese torne um indivduo de facto. Nas palavras do autor:

    Esse abismo no pode ser transposto apenas poresforos individuais.., (...) Transpor o abismo a tarefa

    da Poltica com P maisculo.

    34

    Bauman supe que esse abismo tenha crescido em funo mesmo do

    esvaziamento do espao pblico, especialmente da gora: lugar em que os

    31BAUMAN, Z., op. cit. p. 58. Seu termo pesada significa slida.

    32BAUMAN, Z., op. cit. p. 40.33A idia de dado e dar-se, de uma identidade que pode se transformar, uma identidade que aprendeu a semetamorfosear. CIAMPA, A.C. A estria do Severino e a histria da Severina, um ensaio de Psicologia Social. 6a.reimpr. So Paulo, SP: Brasiliense, 1998 (1a. ed.1987 - 2005).

    34BAUMAN, Z., op. cit., pp. 49 e 49.

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    problemas privados so traduzidos em questes pblicas e solues pblicas

    so acordadas e negociadas.

    A sociedade que entra no sculo XXI produz um eterno desconforto pela

    insacivel sede de destruio criativa ou criatividade destrutiva, ou seja,

    desmantela, destri, reduz tudo em nome de um novo e aperfeioado projeto,

    em nome da produtividade e da competitividade. E, todavia, h diferenas

    entre o que Bauman nomeia de Modernidade Lquida e a Modernidade

    enquanto tal. Segundo ele,

    A primeira o colapso gradual e o rpido declnio daantiga iluso moderna: da crena de que h um fim do

    caminho em que andamos, um telos alcanvel damudana histrica, um Estado de perfeio a ser atingidoamanh, no prximo ano ou no prximo milnio, algumtipo de sociedade boa, de sociedade justa e sem conflitosem todos ou alguns de seus aspectos postulados...35

    Na Modernidade propriamente dita, o indivduo queria ser racional:

    penso logo sou; e ele tinha um telos, sabia aonde queria chegar. J na

    Modernidade Lquida, no h um telos a ser alcanado, o indivduo est

    sempre se re-propondo, uma tarefae no sabe aonde quer chegar. A idia

    de uma sociedade justa, ideal por excelncia da primeira fase da Modernidade,fracassou.

    Na Modernidade Slida, o grande medo era que o pblico invadisse o

    privado, o medo do totalitarismo; em relao s demandas coletivas polticas

    para que a emancipao fosse possvel montava-se uma agenda coletiva de

    interesses. Na Modernidade Lquida, por sua vez, houve uma inverso, pois,

    nos ltimos 20 anos, o espao privado passou a invadir o pblico uma outra

    chave para compreender o conceito de emancipao. Para que esta seja

    possvel na Modernidade Lquida, preservando as caractersticas centrais da

    condio humana, necessrio que o privado crie uma agenda pblica,

    coletiva e, portanto, poltica.

    Outra diferena entre a Modernidade Lquida e a primeira fase da

    Modernidade refere-se a um deslocamento de nfase no desenvolvimento

    poltico e tico. Embora a idia do aperfeioamento pela ao legislativa no

    35BAUMAN, Z., op. cit., p. 37.

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    tenha sido abandonada, ela deslocou-se para a auto-afirmao do indivduo:

    uma realocao do discurso tico/poltico do quadro da sociedade justa para

    o dos direitos humanos...36Um discurso voltado ao direito de o indivduo ser

    diferente de outro e poder escolher seus prprios modelos de vida e de

    felicidade. No h mais um lder para dizer o que fazer e se responsabilizar

    pelas conseqncias de seus atos:

    no mundo dos indivduos h apenas outros indivduoscujo exemplo seguir na conduo das tarefas da prpriavida, assumindo toda a responsabilidade pelasconseqncias de ter investido a confiana nesse e noem qualquer outro exemplo.37

    Buscar a emancipao humana na Modernidade Lquida seria, ento,ligar as margens desse abismo que se abriu entre a realidade do indivduo de

    juree a perspectiva do indivduo de facto, ou seja, buscar que o indivduo se

    reaproprie das ferramentas perdidas da cidadania, melhor dizendo, recupere o

    cidadoque o habita. Nas palavras do autor,

    Hoje a tarefa defender o evanescente domnio, ou,antes, reequipar e repovoar o espao pblico que seesvazia rapidamente devido desero de ambos oslados: a retirada do cidado interessado e a fuga dopoder real para um territrio que, por tudo que asinstituies democrticas existentes so capazes derealizar, s pode ser descrito como um espaocsmico.38

    Para Bauman, e para a teoria crtica revisitada que este autor, como

    discpulo dos frankfurtianos, representa , foi o sentido atribudo

    emancipao que ficou obsoleto, no a tarefa da emancipao humana em si.

    Esta passa pela articulao do indivduo de jure se transformando em

    indivduo de facto, e pelo espao privado, que ganhou prepondernciarearticulando-se com o espao pblico. A grande dificuldade est em traduzir

    os problemas privados em questes pblicas.

    Boaventura de Souza Santos, nascido em 1940, doutor em Sociologia

    do Direito pela Universidade Yale, professor titular da Universidade de

    36

    BAUMAN, Z., op. cit., p. 38.37BAUMAN, Z., op. cit., p. 39.38BAUMAN, Z., op. cit., p. 49.

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    Coimbra, no livro Pelas mos de Alice39faz uma crtica Modernidade por um

    vis especfico. Parte da idia de que a Modernidade conta com dois pilares: o

    pilar da regulao e o pilar da emancipao. No pilar da regulao, esto o

    Mercado, o Estado e a Comunidade; no pilar da emancipao, trs tipos de

    racionalidade: a racionalidade ligada arte, a racionalidade moral e prtica e a

    racionalidade cognitiva.

    Para este pensador, esses dois pilares esto em crise, pois no da

    regulao o Mercado sobrepujou o Estado e a Comunidade, e no pilar da

    emancipao, a racionalidade cognitiva sobrepujou as demais racionalidades.

    Alm disso, o prprio pilar da regulao sobreps-se ao da emancipao:

    H, pois, que verificar uma situao, e esta basicamente que o pilar da emancipao se transformouno duplo do pilar da regulao. As armas do pensamentocrtico do paradigma da modernidade, que erampoderosas e mesmo revolucionrias, transfomaram-secom o tempo em pistolas de sabo que, como a deWoody Allen, se derretem chuva quando com elaspretendemos forar nossa fuga da priso.40

    Em relao regulao, a crise parece se dar pelo fato de o Estado ter

    perdido a vontade e a capacidade poltica de regularizar as foras de produo

    e as garantias sociais em resposta ao processo de transnacionalizao. A

    emancipao entrou em crise particularmente pela crise da revoluo e do

    socialismo como paradigma de transformao social radical. A gravidade est

    no fato de que as duas crises, regulao social e emancipao, ocorrem

    simultaneamente.

    Boaventura de S. Santos sugere que, em funo dessa crise, houve umagravamento das injustias sociais e devastao ecolgica, uma perda da

    autonomia nacional, um aumento da concentrao de capital. Afirma ele:

    A acumulao das irracionalidades no perigo iminente decatstrofe ecolgica, na misria e na fome a que sujeitauma grande parte da populao mundial quando hrecursos disponveis para lhes proporcionar uma vidadecente e uma minoria da populao vive numa

    39SANTOS, Boaventura de Sousa. Pelas mos de Alice: o social e o poltico na ps-modernidade. 11. ed. , SoPaulo: Cortez, 2006.

    40SANTOS, Boaventura de Sousa. op. cit. , p. 102.

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    sociedade de desperdcio e morre de abundncia, nadestruio pela guerra de populaes e comunidades emnome de princpios tnicos e religiosos que amodernidade parecia ter descartado para sempre, nadroga e na medicalizao da vida como soluo para umcotidiano alienado, asfixiante e sem soluo todasestas e muitas outras irracionalidades se acumulam aomesmo tempo em que se aprofunda a crise das soluesque a modernidade props, entre elas o socialismo e oseu mximo de conscincia terica possvel, o marxismo.As racionalidades parecem racionalizadas pela merarepetio.41

    Comenta tambm que a explicao de fenmenos unicamente pela

    estrutura econmica reducionismo econmico retira dos fenmenos

    polticos e culturais a vida e a dinmica prprias. Em suas palavras ,

    ...no permite pens-los, autonomamente, nos seusprprios termos, e segundo categorias que identifiquem asua especificidade e a especificidade da sua interaocom processos sociais mais globais.42

    O autor prope uma nova teoria da democracia e da emancipao social

    ao defender que justamente o excesso de regulao e dficit de emancipao

    presentes na Modernidade comprometeram de diversas maneiras uma

    articulao saudvel entre subjetividade e cidadania, deixando as sociedades

    capitalistas contemporneas sem alternativas emancipatrias.43 Diante da

    perda de confiana epistemolgica e societal, Boaventura aponta medidas

    importantes e urgentes:

    Por um lado, ir s razes da crise da regulao social e,por outro, inventar ou reinventar no s o pensamentoemancipatrio como tambm a vontade deemancipao.44

    O autor prope o reflorescimento das racionalidades locais, das prticas

    locais contra a episteme dominante, que a racionalidade legislativa global

    moderna. Apresenta a idia de mil comunidades interpretativas que

    colaborem com a construo de novas formas de democracia e produo

    41SANTOS, B.de S. op. cit., pp. 42 e 43.42

    SANTOS, B. de S. op. cit. , p. 38.43SANTOS, B., de S. op. cit., pp. 11 e 12.44SANTOS, B. de S. op. cit., p. 284.

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    econmica. Um arquiplago de racionalidades locais adequadas s

    necessidades locais:

    possvel reinventar as mini-racionalidades da vida demodo que elas deixem de ser partes de um todo epassem a ser totalidades presentes em mltiplas partes. esta a lgica de uma possvel ps-modernidade deresistncia.45

    Dessa forma, podemos dizer que emancipao, para Boaventura de S.

    Santos, significa fortalecer as comunidades locais interpretativas. Como

    denomina o autor, a emancipao concreta.

    A partir da inteno que temos em localizar espaos, brechas em que

    aes emancipatrias sejam possveis, verificamos durante este trabalho se

    as figuras sociais entrevistadas valeram-se da razo comunicativa de

    Habermas; da rearticulao do espao pblico baseada na articulao entre o

    indivduo de jure e indivduo de facto proposta por Bauman, e do

    fortalecimento das comunidades locais interpretativas de Boaventura.

    45SANTOS, B. de S. op. cit., p. 102.

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    CAPTULO 2 A re-descoberta do mundo da v ida como fonte de

    sentido

    Apresentamos, neste captulo, alguns aspectos do pensamento de

    Jrgen Habermas de que nos servimos com base na hiptese de que a figurasocial aquela que trata as feridas sociais e ambientais escuta,valoriza e

    atende as reivindicaes do mundo da vida e, eventualmente, prope

    polticas que garantam o atendimento dessas reivindicaes. Tal procedimento

    terico se d porque se vislumbra, nessa figura social, uma reviravolta de

    perspectivas. No paradigma moderno, a primazia era dada teoria e, com ela,

    idia de modelo e fabricao.

    Por ter apreendido empiricamente essa reviravolta de perspectiva, voltei-me para a leitura do filsofo Jrgen Habermas e, em sua filosofia, a mudana

    de paradigma, a valorizao do dilogo e a redescoberta do mundo da vida. A

    seguir, os passos deste captulo:

    1. Apresentando Habermas a mudana de paradigma;

    2. A transio da reflexo monolgica para a dialgica;

    3. A crtica do paradigma epistemolgico e o novo lugar da Filosofia;4. A verdade e o mundo da vida;

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    5. O filsofo poliglota.

    1. Apresentando Habermas a mudana de paradigma

    Habermas defende a famosa mudana de paradigma, necessria para

    a realizao do ideal de emancipao caracterstico da Modernidade e do

    Iluminismo, mudana que implica repensar a razo, o ser humano e a

    sociedade. Ao sustentar suas proposies no trip da Modernidade liberdade,

    igualdade e solidariedade , e diferentemente de outros estudiosos, para

    compreender e pensar a Modernidade ele vai alm da crtica e ensaia algumas

    proposies positivas, j que discute as condies necessrias para aformao de indivduos e de uma sociedade autnoma, livre e emancipada.

    Em seu livro Pensamento ps-metafsico: estudos filosficos,o filsofo

    sensvel discusso em torno da razo, da indivizibilidade do individual e da

    relao entre Filosofia e Literatura. Segundo Habermas, o pensamento

    metafsico vem dominando de Plato a Hegel, passando por Descartes e Kant.

    A totalidade do pensamento metafsico obedece a Parmnides: o ser e o

    no ser no . Nele, o verdadeiro conhecimento tem a ver com aquilo que pura e simplesmente geral, imutvel e necessrio.46

    O modo de filosofar do sculo XX sofreu, porm, grandes influncias do

    pensamento ps-metafsico, da guinada lingstica, da crtica da razo e da

    superao do logocentrismo. O pensar cientificista imposto pela Metafsica

    atribui um papel Filosofia na produo de conhecimento como Epistemologia:

    conhecimento cientfico que visa explicar os seus condicionamentos,

    sistematizar as suas relaes, esclarecer os seus vnculos, e avaliar os seus

    resultados e aplicaes servindo de fundamento para a Cincia; esta

    subordinou a Filosofia a seus interesses.

    Habermas sugere que, no humanismo moderno, o elemento primeiro, o

    Ser, foi deslocado para o homem. Demonstra que, at agora, nenhum

    rompimento com a Metafsica clssica ocorreu: houve apenas um

    deslocamento do ponto fixo da Metafsica (do ser) para o que o autor chama de

    46HABERMAS, Jrgen. Pensamento ps-metafsico: estudos filosficos. Traduo: Flvio Beno Siebeneichcheler. Riode Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro Ltda 1990. (2. ed. Frankfurt am Main, Ed. Suhrkamp, 1988). p. 22.

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    mentalismo/subjetividade (o sujeito). Na proposio habermasiana, a

    mudana de paradigma se d com a guinada lingstica, pois esta substitui

    a Filosofia da Conscincia e/ou a Filosofia do Sujeito ao interpretar e

    compreender o mundo pela linguagem. Nas palavras de Habermas:

    A passagem do paradigma da filosofia da conscinciapara o paradigma da filosofia da linguagem constitui umcorte de igual profundidade. A partir deste momento, ossinais lingsticos, que serviam apenas como instrumentoe equipamento das representaes, adquirem, comoreino intermedirio dos significados lingsticos, umadignidade prpria. As relaes entre linguagem e mundo,entre proposio e estados de coisas, substituem asrelaes sujeito-objeto. O trabalho de constituio do

    mundo deixa de ser uma tarefa da subjetividadetranscendental para se transformar em estruturasgramaticais.

    Inicia-se, tambm, um movimento de crtica radical razo, que protesta

    contra a transformao do entendimento em razo instrumental.

    Para Habermas, a Filosofia da Conscincia, a teoria da subjetividade, a

    teoria da representao e o Humanismo podem ser usados como sinnimos.

    Como fazer, ento, uma proposta de mundo que realmente rompa com essa

    tradio, ou seja, rompa com a Metafsica? Como conhecer algo efetivamente,ao invs de pensar em como usar o conhecimento?

    Segundo Habermas, toda a tradio da Metafsica, inclusive a Filosofia

    da Conscincia, e toda a Modernidade sempre equacionam tudo o que h em

    torno da primazia do geral sobre o individual. A Metafsica sempre nos leva a

    pensar no que existe de comum, de geral e no no que existe de individual.

    Enquanto olharmos sob a tica da primazia do geral, sempre estaremos

    desvalorizando o elemento individual. As determinaes qualitativas, ou seja,

    as singularidades so sempre resultantes das essncias e formas gerais, o que

    impossibilita caracterizar o indivduo como nico. Desse modo, o mximo que

    pode acontecer o individual ser visto como no idntico. Pelo pensamento

    metafsico, s conseguimos equacionar o singular sob a primazia do geral.

    O autor critica a Filosofia da Conscincia de Descartes e Kant ao

    mostrar que o conceito de individualidade, ao ser ligado a um sujeito

    transcendental, um sujeito auto-referente e auto-consciente, no permitiu que

    se pensasse em um indivduo na sua singularidade. Habermas pretende,

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    ento, sair da Filosofia da Conscincia, ou seja, questionar a idia do geral

    subsumindo o individual, da teoria subsumindo a ao. Para tanto, faz a crtica

    da Metafsica e da Filosofia da Conscincia; crtica de um sujeito

    transcendental que se constri na auto-referncia e na auto-conscincia. O

    autor encontra na guinada lingstica uma nova forma de unir individualidade

    em unidade, pois o pensamento metafsico no nos garante essa

    individualidade; ele nos leva de volta ao geral. Afirma ele:

    ...aut oc on sc inc ia o rig inria no um fenmenoqu e h ab ita n o su jeito , ou qu e es t di sp os io, m asque gerado com un icat ivamen te.47

    J que critica o naturalismo a dicotomia entre esprito e corpo , a

    sada em relao Metafsica seria o paradigma da linguagem; essa a

    soluo encontrada pelo autor para enfrentar a herana metafsica. Continua:

    ... Existe uma assimetr ia entre a fora explicativa dafilosofia da conscincia, de um lado, que toma comoponto de partida a auto-referncia de um sujeito querepresenta e manipula objetos, e uma teoria dalinguagem, de outro lado, que toma como ponto departida as condies de compreenso de expressesgramaticais.48

    Para enfrentar a Metafsica, necessrio questionar a dicotomia

    sujeito/objeto a Filosofia da Conscincia. pela teoria da linguagem e da

    interao que Habermas enfrenta esse questionamento.

    Para Habermas que recupera a teoria da subjetividade de George

    Mead e assume a guinada lingstica , a individualidade uma auto-

    compreenso do sujeito que fala e age em dilogo com outros sujeitos que se

    mostram, de forma inconfundvel, como pessoa. O autor aponta que esse

    sujeito que se auto-compreende no um sujeito cognoscente e, sim, um

    sujeito imputvel,ou seja, responsvel por todos os seus atos frente ao outro.

    Nas palavras do autor:

    ... esta autocompreenso fundamenta a identidade doEu. Nela, a autoconscincia se articula, no como a auto-relao de um sujeito cognoscente, mas como aautocertificao ticade uma pessoa imputvel.49

    47HABERMAS, J., op. cit., p. 211. (grifo meu).48

    HABERMAS, J., op. cit., p. 32. (grifo meu).49HABERMAS, J., op. cit., p. 202.

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    Cito uma vez mais Habermas para deixar claro como Mead rompe o

    crculo da reflexo auto-objetivadora por meio da passagem para o paradigma

    da interao mediada simbolicamente:

    Enquanto a subjetividade for pensada como um espaointerior de representaes prprias a cada um, que seabre pelo fato de o sujeito representador de objetosvoltar-se, como num espelho, sobre sua atividade derepresentao, tudo o que subjetivo s acessvel naforma de objetos da auto-observao ou da instropeco inclusive o prprio sujeito, que entra nessacontemplao como um Me objetivado.50

    Ao contrrio, Mead prope um Meque s existe em contextos interativos

    e a partir de um outro. Aprofundando essa questo, apresenta a idia de um Eu

    epistmico da teoria do conhecimento e a idia de um Euprtico da ao

    moral. O Eu da Modernidade auto-referente e auto-consciente, ou seja,

    transcendental e no emprico. O Eu epistmico de Mead produto de

    interaes, vivencia a inter-subjetividade, no auto-referente. O autor

    apresenta tambm um Meancorado na recordao; um Meque produz a auto-

    referncia epistmica e um Meancorado na auto-relao prtica.

    A guinada proposta por Mead est na nova subjetividade, ou seja,

    numa inter-subjetividade definida por uma conscincia que no mais mediada

    na auto-referncia e nem interior. Uma nova subjetividade, ou seja, uma

    auto-conscincia e auto-referncia produto das relaes de interao. Em suas

    palavras:

    Ao contrrio, a autoconscincia forma-se atravs darelao simbolicamente mediada que se tem com umparceiro de interao, num caminho que vai de fora paradentro. Nesta medida, a autoco nsc incia po ssu i umncl eo in ters ub jetiv o; s ua p os io ex cnt ric atestem un ha a dep endnc ia con tnu a da su bjetiv idad eface lin gu agem , que o m eio atravs d o qu alalgum se r econh ece n o ou tro de m od o noobjet ivador.51

    Mead trabalha com a idia de que a auto-conscincia se constri na

    relao de um Eucom outro Eu. OMe a imagem de recordao do meu Eua

    respeito de si mesmo que se d pelas reaes do outro. Ou seja, no existe a

    50HABERMAS, J., op.cit., p. 206.51HABERMAS, J., op. cit., p. 212. (grifo meu).

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    condio humana sem o outro, sem a parte que me reflete e que eu percebo no

    outro.

    Para Habermas, no est suficientemente clara a distino que Mead

    faz dos dois Eus, o epistmico e o prtico. Habermas preocupa-se em distinguir

    o conhecer do agir, ou seja, em aprofundar a dimenso motivacional da auto-

    referncia para clarificar as diferenas.

    NoEuepistmico, o Me a sede de uma auto-conscincia refletida, pois

    o ncleo dessa conscincia inter-subjetivo. O Me, na auto-relao prtica,

    uma instncia de auto-controle, o outro generalizado, aquilo que pauta o

    comportamento de todos sem que ns possamos ver, so normas que

    internalizamos e que nos retiram a possibilidade de agir na espontaneidade do

    Eu. EsseMese d por meio dessa relao circular