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MATEMÁTICA DE FORA E DE DENTRO DA ESCOLA: D
O
B L O Q U E I O
À TRANSIÇÃO
regina luzia corio de buriasco
1
MATEMÁTICA DE FORA E DE DENTRO DA ESCOLA: DO BLOQUEIO À
TRANSIÇÃO
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
Autora: REGINA LUZIA CORIO DE BURIASCO
Orientador: PROF. DR. UBIRATAN D’AMBROSIO
Local: UNESP – Universidade Estadual paulista – Instituto
de Geociências e Ciências Exatas – Campus de
Rio Claro S.P. – Curso de Pós-Graduação em
educação Matemática, Área de concentração:
Ensino e Aprendizagem de Matemática e seus
Fundamentos Filosófico-Científicos.
RIO CLARO - 1988
2
CCOOMMIISSSSÃÃOO JJUULLGGAADDOORRAA
________________________________
________________________________
________________________________
3
Dedico este trabalho a todas as crianças, que, como eu, entraram e saíram da escola com as mesmas dúvidas, muitas vezes sem nenhuma outra e, em especial ao Quico, com quem tenho o privilégio de conviver aprendendo sempre.
4
AAGGRRAADDEECCIIMMEENNTTOOSS
Sou profundamente grata a muitas pessoas que de uma ou outra
forma estiveram comigo na realização deste trabalho, entre elas, professores e
colegas do Mestrado que tanto me ajudaram, por vezes sem saber. Não posso
deixar, porém, de agradecer com muito carinho e de forma especial a meu pai que
compartilhou comigo parte das idéias aqui presentes; a Michelle Cristina Augusto,
Jayson Meyer, Karina Alessandra Tavolaro, Rafael Henrique Marques e Ricardo
Marciano Capra por cederem tanto tempo de suas vidas para a realização deste
trabalho; ao Professor Ubiratan D'Ambrosio cuja orientação começou muito antes do
início deste trabalho e que espero que continue depois dele; ao Professor Mário
Tourasse, por me fazer ver o sonho e a magia dentro da escola real que desejo; a
Professora Maria Cecília Micotti e Professora Maria Aparecida V. Bicudo pela
disponibilidade com que leram a discutiram criticamente a fundamentação deste
texto; ao Professor Rodney Carlos Bassanezi, a quem muitas vezes recorri, por sua
atenção, disponibilidade e muito por acreditar de fato em mim; a Maria Dolis pela
paciência de ler ou ouvir cada linha e pela clareza das idéias na sua discussão; a
Elizabeth Magnoler Aidar, Ronald Hasner, Evelise Prado e Ednéia P. Mignoni, que
discutem comigo a tanto tempo essas idéias, sem o que jamais teria conseguido
realizar este trabalho; a Jaime Araya pelo carinhoso incentivo e pela disponibilidade
aos fazer as ilustrações; a Marineusa Gazzeta, com quem muito aprendi; as pessoas
do Projeto Alternativas de Atendimento a Meninos de Rua pelo muito que
compartilharam comigo e em especial a Sonia Maria da Silva; a Ligia Regina Klein e
Maria Auxiliadora Cavazzoti pela paciência de corrigir a redação deste texto; as
pessoas da Universidade Estadual de Londrina, pelo apoio que sempre me deram; a
Odete Aparecida Radigonda, pelo excelente trabalho de datilografia; a Eliana Correa
Contiero e Maria Elisa Leite de Oliveira pela atenção que sempre me dispensaram.
5
Resumo
A criança, antes do início de sua escolarização, já possui meios para
lidar com problemas quantitativos, entre outros. Esses meios, que não envolvem
obrigatoriamente a contagem, são algumas vezes ineficazes, outras vezes
elementares e outras ainda, surpreendentemente sofisticados. Assim, quando a
escolarização formal começa, a criança já possui uma etnomatemática que dá uma
espécie de armação, permitindo a ela fazer frente e interpretar a matemática escolar
(acomodação e assimilação).
Numa educação crítica, todos os envolvidos são primeiramente
levados a reconstituir ou a recriar seu conhecimento prévio na colocação e no
manejo das situações que enfrentam. E é nesse conhecimento prévio de matemática
(etnomatemática) de crianças antes do início de sua escolarização, na sua
consideração e no seu ingresso na vida escolar, que estou interessada.
Neste estudo, o grupo pesquisado é constituído por cinco crianças
de 7 anos, da cidade de Rio Claro, São Paulo, Brasil, que freqüentam (1986) a 1ª
série do primeiro grau pela primeira vez, sem nenhuma escolarização anterior. Como
o trabalho é de caráter qualitativo, uma vez que a pesquisa é quase-etnográfica, fica
excluída toda avaliação em termos de respostas certas ou não, bem como a
completa transferência a grupos não investigados. Por outro lado, poderá servir de
subsídio para que a matemática de fora (etnomatemática) possa participar da
construção da matemática de dentro da escola, passando assim, de uma situação
de bloqueio à uma de transição.
6
AABBSSTTRRAACCTT
The child, before the beginning of his education, has already means
to deal which quantitative problems, among others. These means, which do not
involve necessarily couting, are eventually uneffective, other times elementary and
others surprisingly sophisticated. Thus, when formal education starts, the child has
already na etnomathematics which provides a sort of structure allowing the child to
face and interpret school mathematics (accomodation and learning).
In a critical education, all those who are involved are first taken to
reconstruct or recreate his previous knowledge in the place and handling the
situations he faces. And it is in this previous knowledge of Mathematics of children
before school, in his consideration andin his etering school life, that I am interested.
In the study, the group researched consists of five seven-year-old
children, from the city of Rio Claro, São Paulo State, Brazil, who attend (1986) the
first grade elementary school for the first time, without any previous education. As the
work has a qualitative character, considering that the reserch is almost etnographyc,
all evaluation in terms of correct and wrong answers is excluded, as well as a
complete transference to groups which were not investigated. On the other hand, it
can be a subsidy for the etnomethematics to participate of the construction of
mathematics from inside the school, turning from a blocked to a transmition situation.
7
ÍÍNNDDIICCEE
Pág.
CAPÍTULO I
1.1- Revendo o Caminho ............................................................................
1.2- A Paisagem e a Procura ......................................................................
1.3- O Caminho Escolhido e o Início da Caminhada ...................................
1.4- Da composição e da Área ....................................................................
CAPÍTULO II
2.1- Da Escola e da Educação .....................................................................
2.2- Da concepção de ensino da Matemática .............................................
2.3- Da Tarefa .............................................................................................
CAPÍTULO III
3.1- Da Matematização ...............................................................................
3.2- Das Práticas .........................................................................................
3.3- Das Dificuldades na Matematização ....................................................
CAPÍTULO IV
4.1- A Matemática enquanto Bem Cultural ..................................................
4.2- As Etnomatemáticas de Michelle, Jayson, Karina, Rafael e Ricardo ...
CAPÍTULO V
5.1- Considerações Finais ...........................................................................
5.2- Uma Proposta ......................................................................................
BIBLIOGRAFIA ...........................................................................................
ANEXOS .....................................................................................................
8
CCAAPPÍÍTTUULLOO II
1.1 Revendo o Caminho
Vivi toda minha infância numa fazenda de café, onde os colonos calculavam, de
antemão, quantas fileiras de pés de café poderiam colher, quantas sacas seriam
colhidas e quanto ganhariam com a colheita, entre outras coisas.
Meu pai, apesar de ter cursado apenas até a 3ª série do 1º grau, mantinha um
cuidadoso registro de todas as atividades da fazenda. Assim, quando fui pela
primeira vez para a escola, já faziam algumas contas, contava e tinha idéias sobre
algumas medidas. Nunca tive dificuldades na matemática que era ensinada na
escola.
Nunca me esqueci de quando ensinei a “prova dos nove” para meu
pai. Ele fazia sempre “prova real” de todas as contas que fazia para seu registro. E
as contas eram enormes. Quando perguntei a ele porque perdia tanto tempo
refazendo as contas, ele me respondeu que essa era a forma de conferi-las, uma
vez que elas precisavam estar certas. Quando aprendi, na escola, a “prova dos
nove” fiquei encantada com a rapidez com que podia ter a certeza da conta estar
certa. Aí ensinei para meu pai, esperando que assim ele pudesse evitar as enormes
contas da “prova real”. E foi o que aconteceu. Não posso descrever a sensação que
experimentei ao vê-lo fazendo a “prova dos nove” nas contas, e mais, satisfeito com
isso. Acho que assim começou a minha viagem. E ela começou marcada pelo prazer,
coisa que acredito fundamental.
Quando estava já na 8ª série, eu não compreendia onde estava o
erro na demonstração que fazia teoremas, uma vez que o professor sempre me dizia
que, se não estava igual à do livro, então aí estava o erro.
E eu ficava sem compreender porque a gente era obrigada a repetir
a demonstração e porque não se podia fazer uma. E como essa, outras coisas me
intrigavam, como por exemplo:
- meu pai observava o comportamento das formigas (entre outros)
para ter uma idéia da previsão de chuvas e eu, quando estudei
Geografia ou Ciências Naturais, nunca vi nada que falasse disso.
9
Quando ousei perguntar ao Professor sobre esse tipo de coisas
ele me disse que era superstição, coisa de caipira;
- as aulas de História eram uma repetição exaustiva do que estava
no livro; e o que estava no livro era uma seqüência enfadonha de
nomes, datas e fatos. Assim, quando perguntei porque as
histórias de fadas e outras histórias que ouvia (e aprendia após
ouvir uma vez) eram mais interessantes, a resposta dos
professores variava em torno de “porque são meio mágicas, têm
muita fantasia e criança gosta disso, mas a História verdadeira é
real e não tem dessas coisas. É séria.”
Dessa forma, uma idéia veio e instalou-se na minha cabeça: se a
maioria das coisas que as crianças gostam parece estar fora, ou é deixada fora da
escola, e se a maioria das pessoas da escola1 parece não gostar delas, então teria
que haver um jeito de ser diferente. Alguma coisa estava errada com a escola.
Não me lembro quando resolvi fazer o curso de Matemática, mas
está presente na minha memória a decepção que fui tendo ano após ano do curso
ao ver que na Universidade as coisas continuavam do mesmíssimo jeito. Eram
fórmulas e mais fórmulas para decorar, centenas de exercícios repetitivos para fazer,
provas onde eu deveria, de uma certa forma, mostrar o quanto estava adestrada no
tema, e o pior, continuava sem ver nenhuma relação do que aprendia na escola (e
que depois deveria ensinar) com a realidade palpitante que rodeava essa mesma
escola. Digo, rodeava, porque parecia que ela estava proibida de entrar. Sempre
ouvi dizer que “a escola prepara para a vida” (sic) mas a minha preocupação já
andava, nessa época, com a vida das pessoas enquanto estavam, sendo
“preparadas” para viver sem que fosse levado em conta o mundo vivo no qual
estavam.
Percebia que alguns professores estão realmente preocupados com
o fato dos alunos “não aprenderem”. E as tentativas para resolver esse problema
giravam em torno de: mudar o método de dar aulas; dar explicações de vários
1 Quando digo “a maioria das pessoas” estou me referindo a professores, alunos, diretores, zeladores, etc. uma vez que sempre percebi o pouco ou nenhum prazer dessas pessoas: professores sempre reclamando dos alunos, do diretor, do salário...; diretores de “cara feia” falando com os alunos somente quando havia “bronca”; reclamando dos professores, dos superiores...; alunos com medo do professor, do diretor, da prova...
10
modos; mudar a ordem do conteúdo; trocar de livro de texto; usar recursos do tipo
áudio-visual, etc... Mas nada parecia funcionar.
E assim chegou o momento do meu primeiro contato com uma sala
de aula, como professora. Esse contato confirmou a idéia que teimosamente havia
se instalado na minha cabeça: a escola deveria ser muito diferente e o ensino de
matemática também, diferente do que até então eu conhecia.
Fui lecionar numa escola particular, no bairro do Ipiranga na cidade
de São Paulo. Minha turma era uma 5ª série noturna do 1º grau. No primeiro dia de
aula, descobri que eu era a 4ª professora que “passava pela turma”2. Percebi que a
maioria dos alunos era mais velha do que eu. O programa que recebi do diretor dizia
que meu tema era Teoria dos Conjuntos. Peguei o livro texto, li o capítulo
correspondente ao tema, resolvi os exercícios do final do capítulo (aconselhada por
um professor mais experiente, para “não ter surpresas nem demonstrar insegurança”)
e fui para a sala, acreditando estar preparada para a aula. Mas, ao entrar na sala,
fiquei completamente desorientada. Os alunos não “tomaram acordo”, do jeito que
estavam, ficaram. Comecei, como mandava o figurino, colocando o programa no
quadro de giz. Eu me senti tão perdida que para “dar um tempo” para me recompor,
pedi que os alunos se agrupassem, dessem nomes para os grupos e me
entregassem a lista. A confusão foi tanta que o resto do tempo da aula foi gasto
nessa atividade. Quando já em casa, fui ler a lista dos grupos, encontrei nomes do
tipo: Super T, Tesão, Big B.. Passei o tempo que antecedeu a aula seguinte numa
agonia danada, me perguntando o que fazer, como ensinar aquele conteúdo.
Chegou a hora da aula eu não tinha resposta alguma. Achei então que se eu
conversasse com os alunos, talvez eles se convencessem que deveriam prestar
atenção no que, eu considerava ser a aula. Foi o que fiz. Conversando com eles,
descobri que eram balconistas, auxiliares de escritório, frentistas de postos de
gasolina, operários, entre outros. Todos pagavam a escola com pelo menos algum
sacrifício e todos precisavam do diploma porque cada vez mais era escasso
emprego que não exigia 1º grau completo. Continuei conversando com eles durante
algumas aulas, sem “dar” conteúdo algum. Quanto mais conversava com eles,
menos enxergava como dar o conteúdo do jeito que estava programado. Eu me
sentia sem coragem para propor exercícios do tipo:
2 No dizer dos próprios alunos.
11
“Seja: A = {a, b, c, d}
B = {b, d, e}
C = {a, f, g}
D = 0/
Determine: A B, A∪ ∩B, etc...”
Aí pensei em trabalhar com o que cada um fazia quando exercia sua
profissão. Abandonei o livro texto (mais tarde abandonei outras coisas). Comecei
pedindo que cada grupo listasse suas atividades diárias. Discutimos as atividades
para ver que conhecimento cada um precisava para executá-las. Reagrupamos
essas atividades percebendo pontos comuns. Percebemos que algumas eram
comuns e outras específicas de determinada profissão. Agrupamos, separamos,
discutimos e com isso trabalhamos o primeiro tema do programa e muitos outros,
tais como: desde quando existia a profissão, o que era preciso saber para exercê-la,
porque uns ganhavam mais que outros na mesma profissão e em outras, etc.. Todo
o tempo trabalhamos em grupo. Duas semanas mais tarde o pessoal do Big B
comunicou-me a mudança do nome para Flamengo. Depois de algum tempo, alguns
outros grupos também mudaram de nome. Com a discussão se encaminhando para
os salários, discutimos outros temas do programa.
Quando terminou o período letivo, eu não havia cumprido o
programa integralmente, mas havia “ficado” com a turma. Resolvi ficar o ano
seguinte também. E continuei com o mesmo tipo de trabalho, agora com a 5ª e 6ª
séries do 1º grau.
A partir dessa época, comecei a trazer, com os alunos, para dentro
da sala de aula, um pouco de realidade que parecia proibida de entrar. Comecei a
me despreocupar em cumprir programas. No entanto, e a bem da verdade, jamais
cumpri menos de 70% dos temas listados e eram abordados. Isso, sem contar o
envolvimento que havia entre alunos, professora e conteúdo dos temas, evidenciado
pela satisfação que tínhamos durante as aulas.
Oito anos depois, fiquei sabendo que havia um nome para essa linha
de trabalho – Etnomatemática – e que um grupo de professores da UNICAMP –
Universidade Estadual de Campinas – trabalhava nela.
Nessa linha de trabalho fica evidenciado que: o professor trabalha
efetivamente com os alunos e não “para”, “pelo” ou “contra” eles; matemática não é
um amontoado de regras e receitas onde tudo está certo ou errado sem outra
12
alternativa; a matemática serve ao homem na busca de realizar suas possibilidades
enquanto ser humano e, com isso, participa da transformação da realidade.
Com a minha vinda para Rio Claro, para cursar o Mestrado em
Educação Matemática, área de concentração em Ensino e Aprendizagem da
Matemática e seus Fundamentos Filosófico-Científicos, meu interesse por esse tipo
de trabalho ficou fortalecido. O trabalhar com a realidade e com o conhecimento
anterior dos alunos parecia ser um caminho.
1.2 A Paisagem e a Procura
Nessa linha de trabalho, quando começávamos a trabalhar sobre um
tema, os alunos partiam do conhecimento que já possuíam, no caso de matemática.
Percebi que eles conheciam muita coisa de matemática, mas que não estabeleciam
relação entre esse conhecimento e o que era transmitido na escola.
Para D’Ambrosio3 o “analfabetismo matemático” é muito raro, tão
raro quanto a incapacidade da comunicação pela linguagem. Se esse “analfabetismo
matemático” é assim tão raro, como explicar o número assutadoramente alto de
reprovação em matemática? Uma explicação parece ser que, o indivíduo, uma vez
indo à escola, tende a deixar seu “conhecimento original”4 de lado, sem sequer
reconhecê-lo, não sendo, portanto, capaz de recolocá-lo na forma exigida pela
escola e tampouco substituí-lo na escola.
“.. os estágios iniciais de Educação Matemática oferecem um modo muito eficiente de instilar o sentimento de fracasso, de dependência ...”5
Dessa forma, o indivíduo acaba se tornando “incompetente” quanto
à matemática, uma vez que não consegue estabelecer uma ligação entre suas
práticas da vida diária, culturalmente arraigadas e as práticas e modelos de
pensamento de pensamento da escola.
3 D’AMBROSIO, Ubiratan. Da realidade à ação – Reflexões sobre Educação e Matemática. São
Paulo: Summus; Campinas: Ed. da UNICAMP, 1986. 4 Expressão usado por GINSBURG, Herbert. Young Children’s Informal Knowledge of Mathematics.
JCMB, vol.1, nº , Summer, 1975. 5 D’AMBROSIO, Ubiratan. Op. cit. P. 58.
13
“A aptidão numérica ‘erudita’ elimina a assim chamada aptidão numérica ‘espontânea’”.6
A matemática não é algo artificial, ela entra no comportamento
humano da mesma forma que a linguagem. Como a matemática aparece quando o
indivíduo parte para a ação, então aí começa a matematização. Daí meu interesse
no conhecimento das crianças, ou seja, o conhecimento original.
Parece que esse conhecimento original de matemática, uma vez
admitido e conhecido, deva dar algumas pistas sobre a aprendizagem da
matemática na escola e possa ser usado como ponto de partida para a matemática
ensinada na escola. Não me parece que a educação escolar, e em particular a
educação matemática, possa encaminhar-se efetivamente sem levar em conta o
conhecimento original da criança.
Assim, o objetivo deste trabalho é verificar o que as crianças
conhecem de temas tais como: contagem; muito e pouco; meio e metade;
multiplicação; divisão; e como isso se encaixa no contexto escolar.
1.3 O Caminho escolhido e o início da caminhada
Para descobrir qual o conhecimento que a criança tem de
matemática antes de entrar na escola, conhecimento original, criei situações
experimentais a partir de conversas com as crianças, durante as quais elaborei
hipóteses sobre as razões do pensamento delas, provoquei perguntas e criei
situações para testar, no próprio momento, minhas hipóteses. A essas conversas
chamei entrevistas. Uma entrevistas, como Dexter sugeriu é uma conversa com um
propósito.
Escolhi esta forma de pesquisa, dado que é uma das poucas formas
de pesquisa científica que admite a percepção subjetiva, uma vez que
“o modelo (desenho) da investigação não pode ser dado de antemão, ele deve emergir, desenvolver-se, revelar-se durante a própria pesquisa”.7
6 Idem, Ibidem. P. 57. 7 LINCOLN, Yvonna S. e GUBA, Egon G. Naturalistic Inquiry. Beverly Hills: Sage Publications, 1985,
p. 225.
14
Por esse motivo e por não acreditar que seja possível isolar uma
pesquisa num cenário fixo, como se a realidade ficasse estanque esperando que a
investigação fosse feita, é que escolhi a pesquisa etnográfica ou quase-etnográfica8.
A pesquisa etnográfica ou quase-etnográfica não pode ser vista
como um método no sentido de obedecer a uma seqüência do tipo: problema e
hipóteses, definição e controle de variáveis, teoria explicativa, manipulação e
medidas, tratamento estatístico.
Etnografia como um processo é um dos vários modelos gerais de
pesquisa usado por cientistas para estudar o comportamento humano. A etnografia
educacional também representa um processo investigativo, uma forma de estudar o
comportamento humano. De acordo com Goetz e Lecompte, etnografia e outros
desenhos qualitativos dão a pesquisadores educacionais e outros pesquisadores
sociais alternativas para descrever, interpretar e explicar o mundo social e a
operação de fenômenos educacionais dentro desse mundo9. Mundo, aqui, entendido
como o lugar onde cada pessoa está com as outras, suas idéias e com tudo o que
faz sentido para ela.
Desenho, no sentido etnográfico, significa plano para certas
contingências, sem, contudo, indicar exatamente o que será feito em relação a cada
uma. Assim, rever, reciclar e mudar, formam a postura central.
Este trabalho é quase-etnográfico na medida em que tem um curto
período de observação e uma vez que usa conceitos e métodos etnográficos
tradicionais combinados com outros métodos, no caso, o clínico, trabalho
observacional.
O objetivo da pesquisa, neste trabalho, é a tradução das
descobertas geradas e não a completa transferência a grupos não investigados.
Entrevistei crianças da cidade de Rio Claro – SP, provenientes da
região centrar e da periferia urbana.
Rio Claro é uma cidade com um grande número de pré-escolas
municipais (além das particulares), dado esse que ficou evidenciado frente ao
pequeno número de crianças que não freqüentaram escola antes da 1ª série do 1º
grau.
8 GOETZ, Judith P. e LECOMPTE, Margaret D. Etnography and qualitative design in educational
research. Orlando: Academic Press, 1984. 9 Idem. Ibid.
15
O presente trabalho envolveu crianças que freqüentavam em 1986,
a 1ª série do 1º grau e que estavam em contato com a escola pela primeira vez.
Foram visitadas sete escolas que mantêm 1º grau sendo que quatro
públicas (estaduais) e três particulares.
O quadro a seguir mostra o número de crianças matriculadas na 1ª
série do 1º grau, em contato com a escola pela primeira vez, encontrado nas escolas
visitadas:
ESCOLA NNÚÚMMEERROO DDEE CCRRIIAANNÇÇAASS Escola pública central 1 O diretor negou-se a informar
Escola pública central 2 1
Escola pública de bairro 9
Escola pública de periferia 32
Escola particular central 1 0
Escola particular central 2 0
Escola particular de bairro 1
TOTAL 43
Dessas 43 crianças muitas não foram entrevistadas, porque:
• os pais não permitiram (27);
• elas mesmas não quiseram (3);
• elas precisavam ajudar os familiares nos serviços caseiros (8).
Dessa forma, apenas cinco (5) crianças começaram a participar do
trabalho em fevereiro de 1986, logo na primeira semana de aulas. Em abril, uma
dessas crianças parou com as entrevistas porque morava com sua mãe e irmão, na
casa da avó paterna, e esta resolveu não permitir mais a participação da neta
alegando que o irmãozinho ficava chorando a falta da irmã. Tentei convencê-la mas
ela não deixou que eu terminasse nem o primeiro argumento. Assim apenas quatro
crianças continuaram.
Foram conduzidas entrevistas com as crianças, sendo que, algumas
entrevistas com duas crianças, mas a maioria com apenas uma. Essas entrevistas
foram realizadas ora na casa da criança, ora na sala do Laboratório de Ensino de
Matemática da UNESP – Campus de Rio Claro. Eu ia buscar e levar as crianças nas
16
suas casas. Foram realizadas entrevistas com os responsáveis pelas crianças para
elaborar um pequeno histórico de cada uma, que poderá ser de grande valia para se
ter uma idéia do conhecimento original de matemática, ou etnomatemática, que ela
apresenta. Essas entrevistas com os responsáveis servirão como referencial da
obtenção desse conhecimento original, uma vez que este é resultado da própria
atividade do sujeito, no caso, da criança. Parece então importante saber coisas do
tipo:
- onde a criança mora;
- de que ela brinca;
- que tipo de envolvimento ela tem com as atividades das outras
pessoas com quem convive;
- qual o tipo de trabalho das pessoas com quem ela convive;
- a escolarização dessas pessoas, etc..
Enfim, ter uma idéia sobre o tipo de vida que a criança leva e sobre
o meio sócio-cultural em que vive, pois, no dizer de Paulo Freire
“A partir das relações do homem com a realidade, resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criação, recriação e decisão, vai ele dinamizando o seu mundo. Vai acrescentando a ela algo que ele mesmo é o fazedor ... Faz cultura”10.
Foi preciso algum tempo para que se instalasse um clima de
confiança entre as crianças e eu. As entrevistas foram feitas sem o uso do gravador,
uma vez que este inibiu as crianças quando da tentativa de gravar, mesmo
deixando-o inicialmente à disposição das crianças para que o conhecessem. Foi
anotado tudo quanto possível durante cada entrevista e após cada uma era feita sua
redação mantendo a sua forma original, visto que as palavras adquirem nuances no
seu significado de acordo com os interlocutores e a situação de interlocução.
Por nenhum momento houve a intenção de ensinar coisa alguma.
Observações foram feitas quanto às reações das crianças para que pudessem tornar
mais claras as entrevistas.
O centro de interesse dos temas abordados nas entrevistas foi,
sempre que possível tomado a partir das conversas com as crianças.
10 FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p. 43.
17
As entrevistas duraram em média 60 minutos cada uma, sendo que
eram imediatamente interrompidas quando:
• a criança mostrava-se cansada ou aborrecida mesmo
mudando o tema;
• era hora de atividades que a criança tinha em sua própria
casa;
• tema parecia por aquele momento esgotado.
Os temas, muitas vezes, eram abordados em mais de uma
entrevista, tendo-se sempre o cuidado de não torná-lo cansativo.
Com o passar do tempo, as crianças mostraram-se bastante
interessadas chegando mesmo a refletir em casa sobre o tema discutido, como fica
claro em algumas entrevistas quando a própria criança se referia ao tema da
entrevista anterior.
Estas entrevistas foram realizadas de fevereiro a julho de 1986.
1.4 Da composição e da área
A dissertação se insere na área de Tendências em Educação
Matemática e constará de cinco capítulos, Bibliografia e Anexo.
O Capítulo I, a Introdução, falará do meu envolvimento com o tema
do trabalho e suas raízes.
O Capítulo II deter-se-á no que será o “pano de fundo” do
desenvolvimento do trabalho, discorrendo sobre o espaço da escola e do educador
no ensino de Matemática, suas opções, compromisso e possibilidades.
O Capítulo III abordará a matematização11, o tipo de prática pela
qual a criança é iniciada em Matemática, suas dificuldades e possibilidades.
O Capítulo IV tratará da análise e interpretação das entrevistas, que
será referenciada pelos capítulos anteriores.
O capítulo V se constituirá das Considerações Finais do trabalho, as
quais poderão servir de subsídios para professores que trabalham ou não com
matematização, no sentido de encaixarem no contexto escolar o conhecimento 11 Como matemática pode ser vista como uma linguagem que permite comunicar fatos da natureza, então usarei a palavra matematização em paralelo à alfabetização.
18
original dos seus alunos, como sendo um caminho para que a educação matemática
possa de fato acontecer, de forma efetiva, de modo a participar comprometidamente
com a realização do homem enquanto ser humano.
Na Bibliografia estará tudo o material consultado na preparação da
dissertação, desde a fase preparatória.
No Anexo estão as entrevistas com as crianças, reproduzidas na
forma original, mencionadas na dissertação.
19
CCAAPPÍÍTTUULLOO IIII
2.1 Da Escola e da Educação
Vamos analisar a ação educativa vivenciada pelos homens através
da relação dialética reflexão-ação tendo o homem como sujeito e objetivando
“uma nova postura diante dos problemas de seu tempo e de seu espaço. A intimidade com eles”12
Mediante esta íntima relação que acontece através da dialética
reflexão-ação, o homem irá tomando consciência cada vez mais crítica da
realidade13 e não apenas recebendo informações sobre ela. Diante disto, educar é
um ato de opção, compromisso e solidariedade e, pensando assim, a escola só
pode existir na medida em que responde ao anseio de plenitude do ser humano e o
educador, este por ser uma pessoa inteira, empenhado no desenvolvimento das
pessoas (inclusive dele mesmo), não pode deixar de comprometer-se com a
transformação das instituições, crenças, valores, papéis sociais, ou seja, com a
cultura do seu tempo. É nessa busca que estamos empenhados. Como não há
educação neutra, já que uma reivindicação de neutralidade
“ignora o fato de que o conhecimento que agora se introduz nas escolas já é uma escolha de um universo muito mais vasto de conhecimento e princípios sociais possíveis”14
e já que todo processo educativo implica numa certa visão de homem, é preciso
assumir o homem que se educa como ser-de-busca e a escola deve ser uma escola
“com”, e jamais “sobre”, “contra”, “de” ou “para”.
Do ponto de vista da sociedade, a primeira função da escola é a de
manter e de transmitir cultura, na medida em que procura transmitir padrões culturais
básicos para a sobrevivência da sociedade. Ao fazer isto – transmitir cultura- a
12 FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1971, p. 93. 13 Realidade como sendo a dimensão do mundo de componentes naturais do meio ambiente e de componentes elaboradas pelo homem. 14 APPLE, Michael. Ideologia e currículo. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 19.
20
escola age como mantenedora do “status quo”, uma vez que é parte da sociedade,
todo ao qual pertence enquanto grupo social. Seus objetivos são elaborados a partir
e em função desse todo. Segundo Appel
“... as escolas não foram necessariamente construídas para aumentar ou preservar o capital cultural de classes ou comunidades, mas sim dos segmentos mais poderosos da população”15.
Dessa forma, como existe uma diferenciada distribuição social do
capital cultural na sociedade, também existe uma diferenciada distribuição social do
conhecimento nas salas de aula. Assim, diferentes “tipos” de estudantes recebem
diferentes “tipos de conhecimento.
No entanto, a educação do homem existe por toda a parte e não
apenas na escola, sendo esta um dos lugares onde ela pode acontecer. “A
educação é uma prática social entre outras”16. A educação escolar não é, então,
mais do que um dos momentos de uma relação mais abrangente que é a relação
cultural – entendendo cultura como os valores, as crenças, as normas, os papéis
sociais, passados de geração a geração de forma renovada ou não, e mais, como o
conhecimento acumulado em todo o campo de pesquisa do ser humano.
Um dos problemas mais sérios da educação parece ser a relação da
educação com a sociedade, e, no entanto, a escola continua dando ao aluno “tudo
pronto” e incentivando a competição, ou seja, não deixando entrar sala adentro a
dimensão do individual e do coletivo. Dessa forma, o “individualismo” (considerado
aqui como – cada um por si) substitui o individual e o coletivo é substituído pelo
saber cristalizado na forma do “tudo pronto”. O “tudo pronto” impede a entrada na
escola do criar e recriar da comunidade, uma vez que a realidade não é alguma
coisa que está ali parada, ela está sempre em movimento e precisa ser decodificada
e reinventada todo o tempo. Ora, nesse sentido, o “tudo pronto” não faz parte da
realidade uma vez que “está pronto” significa que já foi feito e que apenas vai ser
repetido. Portanto, impede o “pensar sobre” e dá margem ao “faça assim”, muitas
vezes fora do contexto onde foi feito pela primeira vez. Dessa forma, o “tudo pronto”
15 Id., ibid., p. 95. 16 BRANDÃO, Carlos R. O que é Educação. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 68.
21
para a ação dinâmica do conhecer descobrindo, analisando e transformando a
realidade.
Parece que nosso sentido comunitário está desgastado. Na escola o
indivíduo concreto é transformado em abstração e, ao mesmo tempo, é separado
dos movimento sociais mais amplos. Essa separação é em parte sustentada pela
noção da neutralidade, que paira sobre a educação escolar. Tomado como indivíduo
abstrato mantém uma relação acrítica e totalmente parcial com sua realidade social.
A ênfase bastante acentuada no individualismo na vida educacional,
emocional e social é altamente adequada para manter uma ética manipulativa, uma
vez que, enquanto os valores e tendências culturais transmitidos são supostamente
“comportilhados por todos”, “garante” que apenas um número reduzido de
estudantes é selecionado, por sua “competência”, para alcançar níveis mais
elevados de ensino.
As pessoas que passam pela escola saem dela acríticas, não
conseguindo nem mesmo reconhecer seus direitos e muito menos lutar por eles,
mesmo porque o individualismo competitivo as isola do grupo, enfraquecendo a luta.
É a realidade de quem, essa que aparece nos livros didáticos, nos
corredores e nas salas de aula das escolas?
Uma compreensão da realidade existente é condição necessária
para a transformação social. Para isso a formação e o desenvolvimento da
consciência política é imprescindível e implica na compreensão do compromisso do
homem realizando suas possibilidades enquanto ser humano (humanização da vida),
nas lutas pelo bem comum e na efetiva participação nos movimentos que se
destinam a consolidar esse compromisso. Isso porque, segundo Williams17
“A prescrição comum da educação, como a chave para a mudança, ignora o fato de que a forma e o conteúdo da educação são afetados e, em alguns casos, determinados, pelos sistemas reais de decisão [política] e de base [econômica]”.
Portanto, são as pessoas que devem educar-se e a qualidade dessa
educação resulta de melhorar a qualidade das relações humanas. E isso não vai
acontecer numa escola como a que está aí, onde só tem valor o saber transmitido
pelo professor ou o que está nos livros; que não valoriza o que a criança (o aluno em
17 WILLIAMS, Raymond. The long revolution. London: Chatto e Windus, 1961, p. 120
22
geral) já sabe, toda experiência de vida que ela traz; que supõe a criança nada sabe
e que sua maneira de falar, de comportar-se, precisam ser corrigidas. As crianças
dos meios populares sentem-se estranhas num lugar onde a linguagem, as normas,
os valores são totalmente diferentes daqueles a que estão habituadas, sentindo-se
até mesmo inferiorizadas pelo fato de não usarem nem poderem apresentar na
escola, sua maneira de falar, suas experiências familiares, etc.. Portanto, é preciso
uma escola verdadeiramente comunitária, ou seja, onde os educandos que têm
acesso a ela seja os alunos, pais, professores e todas as pessoas que trabalham na
escola.
“É falso imaginar uma educação que não parte da vida real: da vida tal como existe e do homem tal como ele é. É falso pretender que a educação trabalhe o corpo e a inteligência de sujeitos soltos, desancorados de seu contexto social na cabeça do filósofo e do educador, e que os aperfeiçoe para “si próprios”, desenvolvendo neles o saber de valores e qualidades humanas tão idealmente universais que apenas existem como imaginação em toda parte e não existem como realidade (como vida concreta, como trabalho produtivo, como compromisso, como relações sociais) em parte alguma”.18
É preciso que as pessoas tenham a responsabilidade sobre seu dia-
a-dia. Como diz Paulo Freire, pensar a prática é o melhor caminho para pensar certo.
Esse pensar ensina também que o nosso jeito próprio de praticar, fazer e entender
as coisas está inserido num contexto maior que é o da prática social. Aí vem a
questão dos limites a que toda prática está subordinada. É necessário que o
educador, na sua ação educativa, desafie os educandos a que conquistem uma
compreensão crítica dos limites de sua prática. Há limites de todos os lados: limites
sociais, limites históricos, limites pela própria condição do homem se reconhecer
não-onipotente, limites econômicos, limites de conhecimento, etc., e o conhecimento
crítico envolve a descoberta de limites e das possibilidades das nossas ações
transformadoras. E a questão do limite traz consigo a questão do poder. Por isso,
volto a insistir, é preciso que as pessoas tenham a responsabilidade sobre seu dia-a-
dia, para que os muros (limites) existentes entre as “especialidades”
(compartimentos de conhecimento tão reconhecidos atualmente) sejam derrubados.
O lema “cada coisa no seu lugar e um lugar para cada coisa” tão enfatizado na
18 BRANDÃO, Carlos R. O que é educação. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 70.
23
escola que está aí, faz com que as pessoas sejam, cada vez mais cedo,
encaminhadas para uma pré-especialização. Exemplo disso é o primeiro grau que
não se constitui em si mesmo, num verdadeiro processo de aprendizagem. É apenas
uma etapa preparatória para alguma coisa que vem depois e apenas para uma
selecionada minoria.
2.2 Da Concepção de Ensino da Matemática
A Matemática tem sido ensinada, em quase todos os níveis, dando-
se uma ênfase exagerada à linguagem matemática, como se esta fosse aquela.
Parece que a preocupação fica por conta do escrever corretamente, do obedecer
prontamente as ordens de “Resolva” sem nem precisar pensar muito, em lugar de
ficar no desenvolvimento de um pensamento criativo, ordenado e essencialmente
crítico.
Muitos professores de matemática pensam no conhecimento
matemático de seus alunos em termos de respostas certas a um conjunto do que
consideram problemas.
No entanto, muitos professores sabem que é possível tirar 10 (dez)
em matemática sem compreender os “fatos matemáticos” envolvidos nela.
Professores muitas vezes identificam compreensão com a habilidade de organizar
conhecimento relevante do que ter muitos “bits” de informação. Apenas saber os
algoritmos envolvidos em certos fatos matemáticos não garante sucesso na
resolução de problemas, por exemplo. Assim, conhecer fatos matemáticos é uma
condição necessária, mas não suficiente, para a compreensão da matemática. Isso,
porque matemática é algo que o homem criou e, quase sempre, em função de
mandas culturais.
A matemática, tem sido ensinada nas escolas de maneira bastante
intensa. Isso em todos os lugares e quase de forma parecida. Uma das justificativas
dadas é que ela instrumentaliza para a vida. Ora, um indivíduo devidamente
instrumentalizado significa alguém que maneja bem as situações reais, nem sempre
parecidas, que se apresentam a todo o tempo. A matemática, da maneira como é
ensinada, vindo pronta para o aluno nem precisar pensar muito, com “problemas
tipo”, com uma exigência altíssima em termos de memorização e com um absoluto
24
desconhecimento das formas de matematizar do aluno, completamente distanciada
da realidade da comunidade onde a escola está inserida, consegue instrumentalizar
para a vida?
“O que chamamos Matemática é uma forma cultural ... que tem suas origens num modo de trabalhar quantidades, medidas, formas e operações, características de um pensar, de raciocinar e de uma lógica localizada num sistema de pensamentos que identificamos como o pensamento ocidental. ... Cada grupo cultural tem suas formas de matematizar.19
Pensar em uma concepção de ensino da Matemática que seja
instrumentadora para a vida, significa pensar nos aspectos cognitivos presentes na
produção do conhecimento matemático, nos aspectos históricos-sociais que
envolvem esta produção. Esse ensino tem, portanto, que desempenhar um papel
onde esteja presente o desejo de uma sociedade mais justa e humana. Este papel
está vinculado ao resgate da Matemática, presente em qualquer codificação da
realidade vivenciada pelos alunos e pelo professor, e à análise dos diferentes
significados e das diferentes formas de ordenar as idéias na construção desse
conhecimento.
2.3 Da Tarefa
A tarefa, então, possui duas frentes. Por um lado, começar a
desvelar os problemas educacionais associados a uma visão de escolarização
fundada no senso comum e a enveredar por vias conceituais e econômicas que se
mostrem férteis e que abram a possibilidade de ver e influir sobre a complexidade
destes mesmos problemas em lugar de lançá-los fora do mundo real. Por outro lado,
é preciso que a educação escolar aprenda fora da escola, com o viver e o fazer da
comunidade, para se comprometer com ele. Aí, o saber coletivo, construído e
experimentado no processo de transformação da realidade cotidiana, tem que ter um
lugar para ser pensado e recriado, que certamente não será a escola que aí está. Se
a educação escolar sair dessa escola, se efetivamente conviver com a comunidade
19 D’AMBROSIO, Ubiratan. Etnomatemática: Raízes Sócio-Culturais da Arte ou Técnica de Explicar e
Conhecer. Campinas: 1987. P.14.
25
para ser agente desespecializada, então ela vai poder participar da reinvenção da
sociedade.
26
Capítulo III
3.1 Da Matematização
Parece que a criança vai à escola para aprender a escrever os
números, fazer operações com eles, etc... Algumas pessoas até acreditam que a
criança “aprende” número na escola.
O aprender matemática na escola atualmente parece estar muito
ligado a fazer uma representação. Dessa forma a criança aprende a escrever
números, efetuar contas, resolver problemas, tipo, etc... No entanto ela parece não
participar dos contextos desses números, contas, problemas tipo, etc., posto que
essas atividades são apresentadas verbalmente e não se integram em suas
vivências. É imposto a ela um sistema de representação não de uma realidade, mas
de uma outra representação.
Uma representação não é igual à realidade a que se refere, assim
como uma outra representação dessa representação não é igual à representação
inicial.
Pode-se pensar então, em matematização escolar de duas formas:
uma seria a construção ou criação de um sistema de representação a partir de uma
realidade; outra seria a construção de um sistema de representação a partir de um
sistema de representação a partir de uma outra representação, ou seja de uma
codificação20. Dessa segunda forma, a matematização seria aprender a lidar com
um código (linguagem matemática) a partir de elementos e relações já
predeterminados e codificados. Em relação à primeira forma, a construção de uma
representação original a partir de uma certa realidade, parece ser um processo
histórico como também foi a invenção da escrita21.
As dificuldades que as crianças enfrentam com relação ao sistema
de representação dos números são dificuldades conceituais semelhantes às da
construção do sistema, o que permite dizer que a criança reinventa esse sistema.
Isso quer dizer que para uma criança utilizar os elementos do sistema ela deve
compreender seu processo de construção e suas regras.
20 Codificação aqui entendida como representação de uma outra representação. 21 FERRERO, Emília. Reflexões sobre Alfabetização. São Paulo, Cortez Autores Associados. 1985.
27
Estabelecer uma diferença entre sistema de codificação e sistema
de representação significa que se estabelece também uma diferença no tipo de ação
que se pretende quando se admite trabalhar partindo de um ou de outro.
No caso de codificação, tantos os elementos quanto as relações já
estão predeterminados e no caso da criação de um sistema de representação, isso
não acontece. Assim por exemplo, no ensino que enfatiza a codificação, é de
extrema importância a discriminação perceptiva. Exemplo disto é a quantidade de
exercícios tipo “Leia e escreva” encontrados nos cadernos das crianças de 1ª série
do 1º grau. O importante parece ficar por conta de se distinguir esse ou aquele
número tendo em vista sua escrita; de se distinguir a operação que deve ser
efetuada num problema através de um indicativo que o próprio problema apresenta
no seu enunciado. Neste caso, resolver um problema passa a significar reconhecer
no seu próprio enunciado a operação insinuada. A matemática é colocada como
uma série de símbolos e regras e sua aprendizagem é encarada como aquisição de
uma técnica.
Por outro lado, no ensino que enfatiza a compreensão da maneira
de construir um sistema de representação, a discriminação perceptiva é insuficiente
para compreender, por exemplo, que o algarismo 3 em 283 não significa o mesmo
que em 37; que existem alguns exemplos distintos enquanto escrita como 32 e
64
que representam uma mesma porção, etc... Assim, a aprendizagem matemática
acaba sendo uma apropriação de um novo objeto de conhecimento (aprendizagem
conceitual). Nesse caso, não se trata de transmitir um conhecimento que o sujeito
não teria fora desse ato de transmissão, mas sim de fazer com que se conscientize,
amplie e represente um conhecimento que já possui, sem ser, porém, consciente
disso.
A inferência de que espontâneo é sinônimo de inconsciente
transparece com toda a evidência em todos os escritos de Piaget. Ao operar com os
conceitos espontêneos, a criança não tem qualquer consciência desses mesmos
conceitos, pois a sua atenção se encontra sempre centrada no objeto a que o
conceito se refere e nunca no próprio ato de pensamento22.
22 VYGOTSKY, L.S. Pensamento e Linguagem. Lisboa, Ed. Antídoto. 1979. p. 123.
28
De acordo com Piaget, o sujeito é aquele que aprende basicamente
através de suas ações sobre os objetos do mundo e que constrói suas próprias
categorias de pensamento ao mesmo tempo que organiza seu mundo; a criança
desenvolve mecanismos cognitivos para lidar com o mundo e esses são então
expressos na sua linguagem inicial.
O desenvolvimento da matematização ocorre num ambiente social.
“Mas as práticas sociais, assim como as informações sociais não são recebidas passivamente pelas crianças. Quando tentam compreender, elas necessariamente transformam o conteúdo recebido. Além do mais, a fim de registrarem a informação, elas transformam. Este é o significado profundo da noção de assimilação que Piaget colocou no âmago de sua teoria”.23
Se partimos da premissa que a criança aprende matemática, neste
caso, apenas a partir de sua entrada na escola, a partir de um ensino sistemático,
como se apenas o professor (o adulto) porque é professor, possui esse
conhecimento, essa verdade, sem querer passamos também que a verdade só pode
vir do adulto, o que reforça a heteronomia numa aprendizagem que se conforma
com a autoridade do adulto. Mas se partimos da premissa de que uma criança
aprende muito fora e antes da escola, então estamos começando a admitir que ao
entrar para a escola, ela já sabe de muitas coisas. Não só de matemática. Saber a
respeito de um certo objeto significa ter construído alguma concepção que explica
alguma coisa desse objeto, numa certa realidade. Assim, o conhecer é um resultado
da própria atividade do sujeito.
Segundo D’Ambrosio
“Aprendizagem é uma relação dialética reflexão-ação, cujo resultado é um permanente modificar da realidade”.24
Assim, o ponto de partida de toda aprendizagem é o próprio sujeito e
não o conteúdo a ser abordado.
O embasamento epistemológico fundamental à teoria de Piaget é o
de que o conhecimento não é nem uma simples cópia de objetos externos, nem uma
23 FERREIRO, Emília. Alfabetização em Processos. São Paulo, Cortez Editores. 1986, p. 24. 24 D’AMBROSIO, Ubiratan. Da Realidade à Ação – Reflexões sobre Educação e Matemática. São
Paulo, Summus; Campinas, Editora da UNICAMP. 1986. p. 29.
29
exposição de estruturas formadas dentro do sujeito cognoscente, mas envolve um
conjunto de estruturas elaboradas progressivamente por contínuas interações entre
o sujeito e o mundo externo. Existe, pois, uma relação sujeito-objeto, indissolúvel. O
objeto não é um objeto do conhecimento enquanto o sujeito cognoscente não
interage com ele.
Uma criança pode saber dizer uma seqüencia (contar) de 1 até 10
sem que isso signifique que ela saiba distinguir 9 botões de 10 botões. O benefício
das palavras de contagem não garante à criança uma compreensão de número. Por
outro lado, uma criança pode saber que num conjunto de 9 botões existem mais
botões do que num outro conjunto de 8 botões, sem que saiba que num existem 9 e
no outro 8 botões.
3.2 Das Práticas
Há práticas que levam a criança à convicção de que o conhecimento
é alguma coisa que só se pode consegui-lo delas, sem outra participação que não
seja a de receptador passivo. O sujeito, nesse caso a criança, fica de fora, numa
posição de mero receptador passivo e mecânico, sem se atrever a perguntar ou
buscar os “porquês”, já que os donos do conhecimento é que decidem o que ela
deve aprender, como deve aprender e até onde deve aprender. Essas práticas
fazem acreditar que tudo o que existe para ser conhecido já se tornou um conjunto
fechado de coisas, imutável e absolutamente sagrado.
Entramos numa sala de aula qualquer com nossas aulas
“preparadas” segundo nossos esquemas “teóricos” e não nos preocupamos em
momento algum com o que as crianças, os alunos que lá estão, já sabem e como
sabem. Não nos interessa saber o que eles conhecem do mundo, e em especial da
matemática, como conhecem e como se reconhecem nisso. Não nos interessa
entender sua forma de matematizar. O que nos interessa é que eles “conheçam” a
matemática do jeito que conhecemos; e comportando-nos assim somos autoritários
e elitistas. Essas são as práticas que predominam atualmente no contexto escolar.
Toda prática está, de certa forma, apoiada em como se concebe o
processo de aprendizagem e no objetivo dessa aprendizagem. Da relação entre o
30
sujeito e o objeto de conhecimento e da mesma maneira de se caracterizar a ambos
é que surge a necessidade de se apoiar em uma reflexão epistemológica.
“Conhecimento na dimensão humana não é um ato, através do qual, um sujeito, transformado em objeto, recebe, dócil e passivamente, os conteúdos que o outro lhe oferece ou lhe impõe. O conhecimento exige uma posição curiosa do sujeito frente ao mundo. Requer sua ação transformadora sobre a realidade. Exige uma busca constante. Implica invenção e reinvenção. Reclama a reflexão crítica de cada um sobre o mesmo ato de conhecer pelo qual se reconhece conhecendo e, ao reconhecer-se, assim, percebe o “como” de seu conhecer e os condicionamentos a que seu ato está submetido. Conhecer é tarefa de sujeitos e não de objetos. E é, como sujeito e somente enquanto sujeito, que o homem pode realmente conhecer”.25
3.3 Das Dificuldades na Matematização
Do ponto de vista da matematização, uma questão interessante que
se apresenta é: qual o tipo de prática pela qual a criança é iniciada em matemática e
como essa iniciação se encaixa no contexto escolar? Em relação a isso, existem
duas grandes dificuldades que precisam de uma reflexão:
• a maneira pela qual o adulto já iniciado em matemática
enxerga a matematização;
• a confusão que normalmente acontece quando o fazer
corretamente os exercícios de classe é tomado como
conhecer e compreender matemática.
Com relação à primeira dificuldade, parece que o conhecimento da
evolução psicogenética pode nos obrigar a abandonar uma visão “adultocêntrica”
como diz Emília Ferreiro. Parece que o professor acredita mesmo que os primeiros
contatos que a criança faz com a matemática acontecem por seu intermédio e que
portanto, cabe a ele dizer quando, como, o que e quanto ela deve aprender. Ora,
dessa forma, a criança recebe um grande número de informações, que o professor
decidiu que eram importantes, e acaba sem saber o que fazer com elas, uma vez
25 FREIRE, Paulo. Extensão ou Comunicação. Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra. 1979. p. 27.
31
que a importância delas ficou por conta do adulto. A visão do adulto já iniciado em
matemática faz com que ele, entre outras coisas, muitas vezes decida por qual
processo a criança deve resolver certo problema, matando a imaginação criadora de
estratégias para a sua resolução, o que possibilitaria a ela resolver problemas
semelhantes no futuro.
A segunda dificuldade se apoia em uma visão do processo de
aprendizagem na qual a cópia e a repetição dos modelos apresentados são os
procedimentos principais para se obter bons resultados. O conhecimento de
matemática fica reduzido ao saber seguir instruções presentes nos enunciados dos
exercícios e problemas elaborados previamente pelo professor ou tirados de livros-
texto. Como se fazer corretamente os exercícios de classe implicasse em
compreender o que se faz. As crianças acabam se tornando ótimas repetidoras o
que reforça a heteronomia e resulta uma aprendizagem que encoraja a obediência
sem questionamento. Se num enunciado de um exercício escolar está escrito
“calcule tal coisa”, a criança calcula, mas, não é capaz de saber se é isso que deve
fazer numa situação problema que enfrenta no dia-a-dia; se no enunciado está
escrito “determine o volume de um certo paralelepípedo com tais medidas”, o sujeito
determina, mas, não é capaz de usar esse conhecimento para se decidir entre duas
caixas de sabão de tamanhos diferentes, no supermercado. Isto porque os
problemas e demais exercícios apresentados na escola nada têm a ver com a
realidade do aluno. São exercícios construídos com o objetivo de fazer a criança
devolver o conteúdo dado e não de dar espaço para que ela analise, reflita, faça
conjecturas, ou seja, resolva o problema valendo-se de informações recebidas sim,
mas usando imaginação, criando até estratégias sobre o assunto, tomando decisões.
Os adultos já iniciados em matemática, tendem a reduzir o conhecimento ao
exercício de seguir instruções usando as informações dadas na sala de aula (e
quase sempre apenas estas) de sorte que, nos problemas do cotidiano, como não
são fornecidas instruções, as informações dadas na sala de aula de nada, ou quase
nada, valem. Dessa forma a “matemática” vista na escola acaba servindo apenas
para resolver os problemas e exercícios da escola, escolhidos pelo professor com o
objetivo de verificar se o aluno reteve ou não as informações recebidas dele,
professor, e que por sua vez, quase sempre são cópia do livro-texto.
Essa mesma dificuldade se observa na maneira dos professores
trabalharem com as crianças o sistema de numeração decimal. Como eles, os
32
professores, adultos já iniciados em matemática, estão muito acostumados com o
sistema e muitas vezes pouco refletem sobre sua construção e importância para, por
exemplo, efetuar as operações, tendem a reduzir o conhecimento de tal sistema ao
conhecimento de escrever os números numa certa ordem. Para questionar isso,
procuro favorecer uma tomada de consciência usando a seguinte atividade, nos
cursos para professores: coloco no quadro de giz um alfabeto completamente
estranho, formado por símbolos desconhecidos. Em seguida, coloco uma série de
regras relativas à ordenação de elementos a partir daqueles símbolos. Por fim,
coloco uma série de elementos com a orientação de ordená-los. A primeira reação
dos professores é de espanto: como ordenar se não se sabe o que está escrito?
Logo depois eles começam, a conversar uns com os outros. Depois de um tempo,
de ler e reler as regras, de discuti-las, alguns tentam a substituição dos símbolos
pelos algarismos conhecidos.
As pessoas sentem-se um tanto desorientadas e descobrem como
pode ser difícil ordenar elementos mesmo que se tenha as regras todas bem à mão,
mesmo fazendo analogia com fato já conhecidos e mesmo discutindo uns com os
outros. Conversamos então, sobre os fato das crianças se sentirem assim no início
da aprendizagem, ainda mais levando em conta que na sala de aula a discussão é
eliminada. E mais, que o conhecimento que se tem do sistema de numeração
decimal não se resume em conhecer a escrita dos algarismos e ter as regras à mão,
é preciso mais, é preciso a compreensão da sua construção. A linguagem da
contagem pode ser uma ferramenta cultural poderosa, mas a criança só a assimila
através da sua própria construção.
A matemática é um objeto de uso social com uma existência social
que ultrapassa de longe a existência escolar. Em qualquer que seja o meio ambiente
do homem é possível medir, contar, comparar, classificar, juntar, etc.. O homem tem
desenvolvido uma enorme variedade de formas de lidar com vários aspectos do seu
meio ambiente, entre eles, o aspecto quantitativo. Como Wilder bem menciona o
componente cultural que mais certamente se encontra entre todos os seres
inteligentes e construtores de uma cultura é a existência do processo de
contagem.26
26 WILDER, Raymond L. Evolution of Mathematical Concepts: Na Elementary Study. N. York, John
Wiley and Sons Inc. 1968.
33
“A contagem é uma ferramenta cultural poderosa, análoga no seu poder cognitivo à ler e escrever. Contagem é uma tecnologia que dá ao homem enormes recursos”.27
As crianças vivem em um ambiente em que estão presentes noções
como por exemplo a de quantidade – quantos anos têm, quanto irmãos têm, quantos
cômodos tem a casa onde moram, etc.. Será possível que alguém acredite mesmo
que uma criança em contato com seus brinquedos, cartazes de propaganda, TV, etc.
não faça idéia alguma desse objeto cultural que é a matemática até que surja uma
professora28 à sua frente? Nenhuma criança espera receber ordem para começar a
classificar para ordenar os objetos do seu mundo. Mesmo antes de compreenderem
o significado, as crianças são treinadas pelos pais, ou pelas pessoas com as quais
convivem, a mostrar, por exemplo, o número de dedos correspondentes à sua idade.
Não há pois, como dizer que uma criança só toma contato com os números na
escola. E não só com os números. As crianças desde bem cedo, usam, por exemplo,
a palavra “mais”. É comum ouvir crianças bem pequenas dizendo: • mais bala;
• mais brincadeira;
• mais dinheiro.
Uma criança, por volta de 7 anos de idade, na 1ª série do 1º grau, é
obrigada a repetir uma quantidade enorme de vezes a seqüência – 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7,
8, 9, 10 – quando fora da escola recebe informações as mais variadas, em contextos
sociais de uso, tais como preço de coisas, possibilidades ou não de sobrar dinheiro
para os pais poderem comprar determinado brinquedo que custa certa quantia, e,
não raro, no nosso país, uma criança nessa idade já trabalha para ajudar, ou mesmo,
manter, o orçamento familiar, no entanto, na escola, recebe uma informação
repetitiva completamente desarticulada da realidade.
Será que é possível continuar de maneira a obrigar a criança a
ignorar tudo o que ela sabe sobre matemática, a sua etnomatemática, para ensinar-
lhe transcrever essa mesma matemática em um código gráfico padrão? Não haveria
alguma forma de utilizar o conhecimento matemático, adquirido fora da escola, no
27 GINSBURG, Herbert. Young Childrens Informal Knowledge of Mathematics. JCBM. Vol 1, nº 3,
Summer. 1975. 28 Refiro-me a professora uma vez que é muito raro encontrar-se um professor atuando nas primeiras séries do 1º grau.
34
trabalho escolar? Essa é uma alternativa ao que comumente se vê, que é levar em
conta esse conhecimento ignorado pela escola.
35
Capítulo IV
4.1 A Matemática enquanto bem cultural
Matemática é algo que o homem criou e o tipo de matemática que
ele emprega é mais uma função das demandas culturais da época, assim como
alguns de seus outros mecanismos adaptativos.
Os anos de investigação infantil permitem a Piaget afirmar que,
desde os níveis mais elementares de desenvolvimento, o conhecimento não é
jamais mera cópia da realidade externa, como um reflexo superficial da transmissão
social, e sim, uma criação contínua.
Segundo D’Ambrosio, a matemática aparece quando o indivíduo
parte para a ação. Isto mostra que a matemática é inerente ao ser humano, não é
algo superficial e entra no comportamento humano da mesma forma que a
linguagem. Como ele mesmo disse numa de suas aulas29:
“A escola não ensina a falar, geometrizar e a contar, isso faz parte do dia-a-dia do indivíduo”.
Antes de entrar na escola, a criança possui um conhecimento de
matemática que vem sendo chamado de “intuitivo”, “informal”, “original”, entre outros.
Com relação à matemática, a verdade é que através da sua interação com o mundo,
a criança desenvolve a contagem, códigos de interpretação e de linguagem30,
conceitos relativos às operações elementares, etc., ou seja, uma etnomatemática.
Carraher, Carraher e Schiliemann, em pesquisas com crianças e
adolescentes que vendem coisas nas ruas e que são aprendizes de carpintaria
(entre outros) afirmam a existência de uma matemática não-estandatizada, usada
para resolver problemas práticos e apontam como uma das causas do fracasso
escolar a completa ignorância desta matemática por parte do sistema de ensino. 31
29 D’AMBROSIO, Ubiratan. Notas de aula na disciplina Tendências em Educação Matemática, do Curso de Mestrado em Educação Matemática, UNEP – Campus de Rio Claro – SP, 1984. 30 Linguagem aqui entendida como todo sistema de signos que serve de meio de comunicação entre indivíduos e que pode ser percebido pelos diversos órgãos dos sentidos. 31. CARREHER, D.W. Classe social e processos cognitivos. Simpósio da ANPEPP, realizado durante
a Reunião Anual da SBPC em Belo Horizonte, julho de 1985.
36
Com base na experiência diária, na manipulação de quantidades, no
uso de dinheiro e das medidas, etc., a etnomatemática das crianças precisa ser
reconhecida pelos professores, para que eles possam usar esse conhecimento
como ponto de partida para a matemática escolar. Mas, para que isso de fato
aconteça, é preciso que a “matemática de fora” possa entrar na sala de aula, sendo
para tanto, considerada pelo professor. Segundo Wilder32
“... as pessoas que fazem matemática – os matemáticos – não são somente os possuidores do elemento cultural conhecido como matemática, mas também todo grupo portador de uma cultura faz matemática.”
A criança deve poder usar métodos derivados desse fazer
matemático de fora da escola para resolver os problemas apresentados nas tarefas
escolares. Uma compreensão dessa etnomatemática lança luzes, desde o
pensamento quantitativo da criança durante o tempo que antecede a escolarização,
até o seu trabalho com matemática durante o 1º grau.
Neste capítulo, minha preocupação vai ficar por conta de levantar
alguns dos temas de matemática, desenvolvidos ou não nas primeiras séries do 1º
Grau, que já são de algum modo conhecidos pelas crianças que entrevistei, e como
eles aparecem nas entrevistas. Assim, vou buscar a perspectiva sob a qual essas
crianças lidam com esses temas, esperando que esse trabalho sirva para lançar
cada professor com seus alunos no caminho de buscar uma perspectiva própria para
trazer a sua etnomatemática para dentro da escola, passando assim, do bloqueio à
transição. E foi pensando nisso que fiz as entrevistas com as crianças Jayson, karina,
Michelle, Rafael e Ricardo. Gostaria de registrar o prazer que senti conversando com
elas e acredito, vendo as suas expressões e suas respostas, que tiveram sentimento
semelhante. Isso se confirmava quando me atrasava para alguma entrevista e era
cobrada por isso; outras vezes, quando, no término da entrevista, a criança
manifestava desejo de continuar. Creio firmemente que é preciso certa dose de
31. CARREHER, T.N.; CARREHER, D.; SCHILIEMANN, A.D. Na Vida Dez, na Escola Zero: os
contextos culturais da Aprendizagem da Matemática. Caderno de Pesquisa nº 42, São Paulo, agosto de 1982.
31. SCHILIEMANN, A.D. A matemática entre carpinteiros e aprendizes de carpintaria: implicações para o ensino escolar. XIV Reunião Anual da Sociedade de Psicologia de Ribeirão Preto, outubro de 1984.
32 WILDER, R. The Evolution of Mathematica Concepts. England: Open University Press, 1978. Pág. 26.
37
prazer para que um trabalho tenha significado. Gostaria também de deixar claro que,
daqui para frente, neste capítulo, sempre que me referir a criança, estarei me
referindo àquelas que entrevistei.
4.2 As Etnomatemáticas de Michelle, Jayson, Rafael, Karina e Ricardo
Na minha primeira conversa com Ricardo, a idéia dele sobre
matemática era apenas ligada à de contagem. Isso ficou claro quando ele me disse:
“Eu sei de matemática. Sei contar”. Essa parece ser a idéia geral das crianças sobre
matemática no início de sua escolarização. Com o tempo acrescentam o “fazer
contas” à essa idéia.
Observei que no caderno das crianças apareciam páginas e páginas
da escrita do algarismo 1 e depois do 2, do 3 e assim por diante. Aparecem também
páginas e páginas com dois ou três algarismos que a criança já fez anteriormente,
por exemplo, se a criança “está no 4”, como ela mesma diz aparecem páginas
completas com a seqüência
1, 2, 3, 4.
Ricardo “estava no 4” quando da nossa primeira conversa, no
entanto, quando fizemos uma torre empilhando peças afirmou que a sua era mais
alta porque tinha mais peças e para isso contou-as, comparando em seguida os
resultados, que, eram maiores que quatro. Só se preocupou com a altura, quando
questionei sua afirmação. Contudo, para o professor, a contagem não está apenas
ligada a enumeração oral no início da escolarização. É preciso mais, é preciso a
escrita dessa contagem, não uma escrita, um registro, mas a escrita padrão.
Segundo Lovell33
33 LOVELL, Kurt. O desenvolvimento dos conceitos matemáticos e científicos na criança. Porto Alegre: Editora Artes Médicas, 1988, pág. 14.
38
“os professores muitas vezes são enganados porque as crianças podem usar a palavra apropriada, e apesar disso, não tem idéia do conceito relacionado”.
E, em nome dessa escrita, muitas vezes, a contagem em si é deixada de lado.
Ricardo não sabia escrever no início, o numeral 13 mas, registrou 811111. Isso
mostra, de certa forma, que ele domina um aspecto importante do conceito34 de
número natural, que é a idéia de “mais um”. E isso, pelo que acompanhei no
caderno usado por ele na escola, não foi explorado nenhuma vez. Os algarismos
eram apresentados sequencialmente um após o outro, de forma falada e escrita,
mas a idéia subjacente à seqüência era apresentada da seguinte forma: depois do 3
vem o 4; depois do 4 vem o 5; etc.. apenas como uma seqüência de nomes.
Por nenhum momento houve a manipulação, na escola, de algum
tipo de material no trabalho com números naturais. Por sorte, as crianças já haviam
feito isso antes de estarem na escola.
Que as crianças já sabem contar parecer ser o único conhecimento
de matemática que os professores admitem antes do início da escolarização, sem se
dar conta que
“A linguagem é um instrumento vivo de intercâmbios sociais e segue sua evolução fora de escola.”35
Os professores admitem mas não levam em consideração, uma vez
que a apresentação da escrita numérica segue a ordem padrão de 1 depois 2,
depois 3, etc., sem que sejam levados em conta dois aspectos fundamentais:
- a idéia do sucessor
4 = 3 + 1
7 = 6 + 1 por exemplo;
- o significado de alguns desses números (ou de todos) na vida de
cada criança.
Quer dizer, se a primeira palavra que se trabalha com a criança na alfabetização é
seu nome por causa do significado, e, não outra qualquer, por que, na
34 Um conceito pode ser definido como uma generalização a respeito de dados relacionados. 35 FERREIRO, Emília; TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Editora Artes Médicas, 1985, p. 258.
39
matematização, não se apresenta o numeral que representa, por exemplo, a sua
idade?
Parece que muitos professores ainda ignoram que a contagem é
muitas vezes uma atividade auto-regida. Certamente pais, professores ou outros
agentes culturais têm um papel importante, mas de uma certa forma, limitado, e uma
vez que a criança pode Ter um interesse espontâneo e intrínseco na contagem.
Apesar da necessidade das crianças de informações básicas que apenas um agente
cultural pode dar, como por exemplo as palavras numéricas, ela mesma controla
uma grande parte da sua aprendizagem, selecionando certos tópicos segundo seu
interesse, requisitando informações sobre eles quando acha necessário, esforçando-
se por aumentar seus conhecimentos relativos a eles. Além disso, busca certas
regras ou estruturas subordinadas a esses tópicos.
Isso mostrou-se numa entrevista quando uma criança disse que
estava aprendendo (referia-se à escola) até o 10, mas que já sabia escrever mais.
“A gente escreve até o nove e depois o um e o zero faz o dez,
o um e o um faz o onze, e, é só ir seguindo um e dois, um e
três ... assim ó (e foi para o quadro escrever)
1 2 3 4 5 6 7 8 9
10 11 12 13
É bem fácil”.36
Para contar, as crianças algumas vezes usam os dedos das mãos,
outras vezes não. Jayson, por exemplo, é capaz de dizer quantas mãos precisa para
contar uma certa quantidade (noção de multiplicação).
Quando as crianças distribuíam uma certa quantidade de peças, no
final, afirmavam que possuíam a mesma quantidade sem precisar contar novamente
as peças, o que mostra que tinha a noção de divisão e de que as partes repartidas
deveriam ser iguais, já que a distribuição era feita “um para cada um”. Quando
queriam Ter a certeza de que tinha a mesma quantidade, ou contavam ou
enfileiravam as peças fazendo uma correspondência um-a-um.
36 Entrevista constante no Anexo.
40
Numa das entrevistas com Rafael, percebi que a noção de ordinal
ele tinha e também algumas palavras correspondentes, mais precisamente de
primeiro até oitavo. Ricardo sabe até quinto. Quando perguntei onde ele aprendeu,
respondeu que nos jogos, mostrando claramente o papel da transmissão social
presente num conteúdo escolar, fora da escola.
As crianças que entrevistei mostraram a idéia de adicionar ligada à
de juntar, a de subtrair à de tirar e a de dividir à de repartir, de forma bastante clara.
Um tema que chamou muito a minha atenção foi meio e metade.
Para as crianças essa é uma noção bem clara mas não é exatamente como é
passada na escola. Segundo elas, as metades têm que ser iguais ou ter a mesma
quantidade. Acho importante ressaltar aqui, a diferença que as crianças fizeram
entre o que é igual e o que tem a mesma quantidade. Mesma quantidade elas
usavam para coisas que podiam contar como tubos, pinos, bolinhas, etc. e igual para
o que não podiam contar como metade de folhas de papel, metade de caixa, metade
de sala, etc.. Fazendo assim, de certa forma, uma quantidade entre quantidades
discretas e continuas. Ainda segundo as crianças, o jeito de achar as metades pode
ser diferente, mas o resultado tem que ser o mesmo.
A maioria das crianças diz que “a metade é cada lado do meio” e
que “meio é onde divide na metade”. Essas noções foram reafirmadas nos casos de
se lidar com pinos (ou outros materiais semelhantes), folhas de papel, caixas e com
o próprio espaço da sala onde estávamos. Com os pinos a noção se mostrava assim:
No caso de número ímpar
No caso de número par
41
Com a folha de papel
Tentaram a diagonal mas não enxergaram a metade muito
claramente, ou seja, a idéia de fazer a divisão pela diagonal apareceu mas não
convenceu da igualdade.
Com caixas foi muito interessante pois a metade para alguns era o
pedaço da caixa cortada ao meio vertical ou horizontalmente, mas para uma criança
era a metade de cada face da caixa.37 O meio era o lugar do corte e para mostrá-lo
passavam o dedo nas bordas da caixa onde havia sido cortada.
Com o espaço, mais precisamente com a sala onde estávamos, o
meio para algumas das crianças não era apenas uma linha, mas um plano; tanto é
que quando perguntei o que se poderia colocar no meio da sala, uma das crianças
respondeu que apenas uma folha de papel, pois outra coisa “ia passar do meio”.
Essa não é exatamente a idéia de meio e metade trabalhada na
escola. Parece que para as crianças a noção é geométrica e a da escola é aritmética,
37 Entrevista constante no Anexo.
42
uma vez que para aquelas o meio é o “onde” que separa as metades e estas são
“aquilo que” é separado pelo meio. Tanto que, no trabalho com os pinos, o meio não
conta como parte de nenhuma das metades.
Sobre este tema, meio e metade, a leitura das entrevistas já mostra
por si só a noção que as crianças apresentaram.
Com relação a juntar partes iguais (as metades) para ter-se
novamente o todo, uma criança disse que nunca fica novamente inteiro (noção
geométrica novamente pois ela se referiu apenas a “uma” coisa inteira sem
considerar como inteiro, por exemplo, dez pinos) e justificou perguntando “e a cola?”.
Isso mostra o pensar concretamente em partir e em juntar, ou seja, se partiu só se
pode ter novamente um inteiro dependendo do que foi partido. Se é possível
misturar as partes, está bem, se não, aí não fica o todo igual a antes.38
A idéia de metade como o resultado de dividor por dois pode ser
expressa de outra forma que não a usada na escola. Por exemplo:39
“Tem quatro, separa u e fica três.
Separa mais um e fica dois e dois.”
Ou seja, reparte-se de fato em dois, só que usando a distribuição sucessiva até que
se consiga a mesma quantidade. Como Jayson dividiu doze por três usando o
algoritmo:
12
separou
6 3 3
separou
4 4 4
Para dividir quinze por cinco, voltou a fazer uma estimativa mas usando a idéia da
distribuição de pequenas quantidades:
38 Entrevista constante no Anexo. 39 Entrevista constante no Anexo.
43
15
separou
2 2 2 2 2
e acrescentou
1 1 1 1 1
ficando então
3 3 3 3 3
A forma inicial de repartir para as crianças foi a distribuição.
Começando por distribuir de um em um e depois usando uma estimativa para
continuar.
Dessa forma, nas crianças que entrevistei, a divisão como repartição
é a idéia que predomina. Quer me parecer então, que a grande dificuldade
encontrada na escola pelos professores em ensinar divisão esteja também no fato
da criança não identificar aquele algoritmo exigido com o que ela usa para repartir
na sua vida fora da escola.
Acredito que, antes de trabalhar com qualquer assunto, o professor
deva verificar o que as crianças já sabem dele e partir daí, desse conhecimento já
existente, sem jamais tomar como ponto de partida a suposição de que aquele
assunto é completamente novo.
A professora, durante o tempo que passei entrevistando as crianças,
não tocou em nenhum tema ligado a geometria ou a funções, no entanto, percebe-
se claramente que as crianças tinham algum conhecimento deles, bastando para
isso ler as entrevistas.
Certas noções geométricas que as crianças têm, dão pistas
interessantes de como trabalhar com elas na escola. Uma das crianças, que não
sabia o nome de certos sólidos geométricos, disse-me numa entrevista que a peça
44
circular da caixa de Blocos Lógicos é uma fatia do cilindro (não disse cilindro,
mostrou-o) e que a peça triangular parece o cone (não disse cone, mostrou-o) visto
de longe. Isso leva a pensar na noção de perspectiva e na de seção de sólido, tema
que não são abordados nas séries iniciais do 1º grau, mas sobre os quais essa
criança já possuía alguma idéia.
A noção de dimensão também apareceu quando questionei se havia
alguma coisa na sala que não se podia pegar e a criança mostrou o quadrado feito
num papel e acrescentou que só seria possível se ele fosse recortado, mas que “aí
vai ficar chato”.40
Uma outra observação interessante de uma criança foi que o
retângulo é um quadrado comprido. Tudo leva a crer que as noções geométricas e
topológicas, que as crianças possuem como parte de sua etnomatemática, vão muito
além das noções exploradas na sala de aula.
As noções de muito, pouco e mais ou menos estão sempre ligadas
ao que se está falando, até com relação a tempo; isso ficou claro em vários
momentos nas entrevistas. Em algumas crianças, o mais ou menos está sempre em
torno da metade do que elas consideraram muito. Interessante foi uma criança dizer
que zero não é pouco, é nada e que para se ter bem pouco é preciso pelo menos
um.
Algumas vezes muitas perguntas eram respondidas de forma a me
surpreender pela lógica usada. Exemplificando transcrevo um trecho de uma das
entrevistas:
(Rê) ⎯ E flores no vaso, quantas seriam muitas?
(Já) ⎯ Depende do tamanho do vaso.
Esta resposta entre outras, levou-me a refletir no número de vezes
que, além de subestimar a compreensão da criança, deixamos de considerar
respostas por não estarem dentro do que consideramos lógico.
Vou dar um exemplo que não faz parte das entrevistas mas da
minha experiência como professora: uma conhecida procurou-me com uma prova
escrita do filho que estava na 2ª série do 1º grau. Dentre as questões havia um
problema cuja resolução envolveria para a professora da criança, “dois raciocínios”,
no caso duas subtrações. O guri resolveu assim:
40 Entrevista constante no Anexo.
45
45
- 15
7
23
E a professora considerou errado, alegando que “o objetivo da questão era avaliar
os “dois raciocínios” e o guri havia feito um só” (sic).
Muitas vezes fazemos perguntas às crianças levando em conta
apenas o “objetivo” a ser atingido sem pensar em qualquer outra coisa, como, por
exemplo, o sentido próprio da pergunta ou da resposta. Foi o que fiz quando
perguntei sobre o quanto seriam muitas flores no vaso e foi o que a professora
desse guri do exemplo acima fez. Outro exemplo disso: perguntei a uma das
crianças se era possível Ter metade de uma bolinha de gude (porque estava
interessada na idéia de meio e metade) e a resposta foi que sim, mas que estragaria
o brinquedo. Ou seja, a pergunta, para a criança, não teve o menor sentido, pois ela
não poderia jogar com a metade de uma bolinha de gude, então para que parti-la?
Quando mais tarde fui reler a entrevista e me dei conta desse fato, lembrei-me do
menino de rua de Olinda – PE dizendo que a professora dele (estava na 3ªsérie do
1º grau) não sabia elaborar problemas. Tentarei reproduzir aqui nossa conversa, tão
fiel quanto minha memória permitir:
⎯ Minha professora não sabe resolver problema.
⎯ Por que?
⎯ Primeiro porque ela só gosta de comprar, e quando não é ela, é a
mãe dela. Depois, porque faz a pergunta errada.
⎯ Eu não estou entendendo. Você pode me dar um exemplo?
⎯ Outro dia ela mandou a gente comprar cinco coisas com um tanto
de dinheiro e sabe qual a pergunta do problema?
⎯ Não. Qual?
⎯ Quanto sobrou de troco (disse isso rindo).
⎯ E está errado?
⎯ Claro! A pergunta tinha que ser – Deu prá comprar com o dinheiro
que você tinha?
⎯ Por que?
46
⎯ Ora, porque o problema é o dinheiro dar prá você comprar o que
você precisa e não quanto sobrou de troco. O que sobrou é lucro e não problema.41
Com isso quero mostrar que muitas vezes ficamos presos ao
“objetivo” a ser atingido e nos perdemos do que é realmente importante e
significativo. Parece ser esse um dos motivos do bloqueio que existe para impedir a
entrada da etnomatemática da criança na sala de aula: sabemos elaborar atividades
– muitas vezes sem sentido – em função de certos objetivos, mas não sabemos
enxergar objetivos ou até mesmo conteúdo matemático nas atividades que a criança
faz ela mesma, na sua vida diária.
Apareceu uma noção, em algumas entrevistas, que eu não esperada:
a de infinito como algo que não acaba. No entanto, professores usando certos livros
didáticos, continuam a “ensinar” as crianças que exemplo de conjunto infinito é o
conjunto dos grãos de areia das praias, ou o conjunto dos fios de cabelo das
pessoas, etc.. Mostrando claramente que perderam, se é que tiveram, essa noção
que as crianças apresentaram na entrevista. E se foi isso que aconteceu – perderam
uma noção que já possuíam – certamente foi na escola. Nessa mesma escola onde
o saber que não está nos livros, nem nos professores, ou é superstição, ou coisa
semelhante, indigno portanto de ser considerado.
Percebi que a palavra “vezes” não está sempre ligada à idéia de
repetir igualmente. Uma das crianças interpretou “pintar três vezes dois
quadradinhos” como sendo, três vezes o número ligada à ação de pintar e não ao
número de quadradinhos a ser pintado. Seguindo o raciocínio dela, dados
pintar três vezes seria, como ela mesma fez, pintar: uma vez: metade do primeiro
quadradinho; duas vezes: pintar a outra metade do primeiro quadradinho; três vezes:
pintar o segundo quadradinho. Quando terminou, disse-me: “Dá três vezes, não dá?”
E assim ela continuou enquanto durou a entrevista sobre esse tema. Tudo leva a
crer então, que um dos problemas relacionados à multiplicação na escola esteja na
palavra vezes, que o professor quase sempre usa sem verificar qual o significado
dela para as crianças. Isso não quer dizer que as crianças não tenham noção
alguma de multiplicação. 41 Essa conversa aconteceu em 1985, numa visita que o Grupo de Educação do Projeto Alternativas
de Atendimento a Meninos e Meninas de Rua fez a um programa de meninos vendedores em Olinda – PE. Esse menino chama-se Adailton dos Santos e tinha, na época, 11 anos.
47
Duas crianças jogaram um jogo da Memória, formado por trinta e
duas peças, constituídas de dezesseis pares. Quando dispuseram as peças na
forma matricial 8 x 4 e eu questionei a “arrumação”, responderam que era para ficar
mais fácil de lembrar onde estava uma peça já vista. Ou seja, esses crianças já
tinham a noção de que, se o objetivo do jogo é formar pares e se para isso é preciso
lembrar onde estão peças já vistas anteriormente, então a forma de dispor todas as
peças do jogo é muito importante para facilitar a localização de cada uma. E não se
pode negar que o modelo matemático que atende a essa característica é a forma
matricial. O fato foi tão surpreendente como o registro que essas crianças fizeram
dos pontos ganhos e dos perdidos, trabalhando de uma certa forma com soma de
inteiros relativos e com a escolha que fizeram do valor dos pontos, usando
probabilidade. Assim, como não formar pares era mais provável do que formar,
escolheram perder dois pontos no primeiro caso e ganhar dez no segundo.
Com relação à noção de tempo, uma das crianças cobrou um atraso
meu para apanhá-la para uma entrevista, e quando retruquei dizendo que havia me
atrasado apenas dez minutos, ela disse-me que era muito tempo. Nesse mesmo dia,
ao terminar a entrevista, discutimos sobre quantos dez minutos havia durado nossa
conversa, uma vez que a criança comentou que havia sido muito pouco tempo.
Vimos então, quantos dez minutos passamos juntos durante a entrevista e ela se
surpreendeu, exatamente como Lovell afirma:
“Depois que a criança começou a ter um pouco de entendimento de tempo, suas estimativas reais podem ser fracas. Mesmo quando o conceito está mais desenvolvido, a exatidão de suas estimativas pode variar com seu ânimo e interesse, de modo que 20 minutos nos quais ela está muito ativa ou alegremente empenhada em algum trabalho criativo podem ser estimados como um período muito mais curto do que um outro, também de 20 minutos, durante o qual ela se sente aborrecida”.42
É provável então que, olhar com a criança qualquer atividade que
tenha claramente um começo e um fim, tenda a ser uma situação de aprendizagem
relativamente ao conceito de tempo.
42 LOVEL, Kurt. O desenvolvimento dos conceitos matemáticos e científicos na criança. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1988, p. 74.
48
Em resumo, os temas encontrados nas entrevistas foram: contagem;
noções de muito, pouco e mais ou menos; noções de maior, menor, medidas
(inclusive de tempo), geometria, divisão, multiplicação, subtração, adição,
classificação e seriação, meio e metade; e breves noções de probabilidade e
números inteiros relativos.
Evidentemente não considero este capítulo acabado ou definitivo
uma vez que o conhecimento também não é acabado ou definitivo. Creio que cada
pessoa, inclusive eu, ao ler novamente as entrevistas possa desvelar algo novo. E é
exatamente o que espero que aconteça, uma vez que existe sempre um desvelar
por vir.
49
CAPÍTULO V
5.1 Considerações Finais
Estamos tão acostumados a considerar a aprendizagem da
matemática como um processo de aprendizagem escolar que fica mesmo muito
difícil admitirmos que a criança que chega à escola pela primeira vez conhece muita
coisa de matemática. É preciso que, além de aceitar, não se tenha medo desse fato.
A instituição social, a escola, foi criada para controlar o processo de
aprendizagem parece ser vista como devendo realizar-se apenas na escola (sic).
Por sorte, as crianças ignoram este fato, como diz Emília Ferreiro. Desde que
nascem, constróem conhecimento. Tentando compreender esse mundo que as
rodeia e do qual são parte ativa, levantam problemas muitas vezes difíceis e buscam
por si próprios soluções para eles. Estão construindo o conhecimento e
evidentemente a matemática está presente. Através de interações com esse mundo,
desenvolvem técnicas, conceitos, processos de contagem entre outros. Assim, as
crianças não são recipientes vazios quando entram na escola, uma vez que iniciam
sua aprendizagem de matemática quando se dedicam, por exemplo, a ordenar os
mais variados objetos. Classificando-os ou seriando-os, muito antes do início da
escolarização. Iniciam a aprendizagem do uso social dos números, através da sua
participação em diversas situações de cálculo e nas atividades sociais vinculadas à
compra e venda, entre outras.
A matemática tem sido considerada como objeto de uma instrução
sistemática, como alguma coisa que precisa ser “ensinada” e cuja “aprendizagem”
exigiria o exercício de uma série de habilidades específicas. Este trabalho e a minha
experiência anterior43 com crianças, me levam a abandonar em parte essas duas
idéias: as crianças trabalham com matemática muito antes da escolarização, como
parte das atividades próprias do seu dia-a-dia; o conhecimento de matemática não
parece ser um produto escolar, mas sim um objeto cultural, resultado do esforço
coletivo da humanidade. O conhecimento matemático aparece para a criança como
43 Como experiência anterior refiro-me ao tempo que atuei como professora de 1º e 2º grau e como
membro do Grupo de Educação do Projeto Alternativas de Atendimento a Meninos e Meninas de Rua.
50
objeto com propriedades específicas e como suporte de ações e intercâmbios
sociais.
“Imersa em um mundo onde há a presença de sistemas simbólicos socialmente elaborados, a criança procura compreender a natureza dessas marcas especiais. Para tanto, não exercita uma técnica específica de aprendizagem. Como já fez antes com outros tipos de objetos, vai descobrindo as propriedades dos sistemas simbólicos através de um prolongado processo construtivo”44
Assim, o conhecimento matemático deriva essencialmente de ações
exercidas sobre as coisas e as próprias operações também são ações coordenadas
entre si e representadas em lugar de executadas materialmente.
Não se estabelece interação comportamental que não destrua a
criatividade das crianças com quem trabalhamos (ou qualquer outro grupo cultural),
a menos que se entenda e aceite a contextualização em que elas estão inseridas e
na qual enfrentam suas situações-problema que são parte da mesma realidade que
está informando-nos a todos.
Segundo Dantizig45
“Um indivíduo em seu meio, privado de linguagem e de toda oportunidade de trocar impressões com seus semelhantes, não pode construir uma ciência do número”.
Muitos professores sabem que é possível trabalhar com temas
ligados à matemática sem a compreensão deles. Exemplo disso é a tabuada tão
exigida na escola, quando, muitas vezes, a criança não tem absolutamente
compreensão da própria palavra vezes. Outro exemplo são os algoritmos das
operações fundamentais, que as crianças usam quase sempre mecanicamente;
acertam por vezes a “conta”, é verdade, mas dificilmente compreendem o que
fizeram. Muitos professores pensam no progresso de seus alunos não em termos de
respostas certas a um conjunto de exercícios repetitivos e muitas vezes do tipo “siga
44 FERRERO, Emília. Reflexões sobre alfabetização. São Paulo: Cortez, 1985, p.43. 45 DANTIZIG, Tobias. Número: a linguagem da ciência 4.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1970, p.210.
51
o modelo”. No entanto, compreensão pressupõe organização de conhecimento.
Segundo Byers46
“Compreender algo significa assimilar esse algo através de um esquema apropriado.”
Afirma ainda que compreensão matemática é essencialmente a habilidade de fazer
matemática e que, portanto, é necessário identificar os fatores cognitivos que
explicam uma habilidade – ou a ausência dela – do indivíduo tratar vários aspectos
da matemática. Para ele o termo “esquema” refere-se a uma estrutura cognitiva.
Para Piaget, compreender é incentivar ou reconstruir através da
reinvenção, e será preciso curvar-se ante essa necessidade se o que se pretende é
termos indivíduos capazes, no futuro, de produzir ou de criar e não apenas de repetir.
“Na teoria de Piaget, o conhecimento aparece como uma aquisição e não como um dado inicial. O caminho em direção a este conhecimento objetivo não é linear: não nos aproximamos dele passo a passo, juntando peças de conhecimento umas sobre as outras, mas sim através de grandes reestruturações globais, algumas das quais são “errôneas”, porém “construtivas”.47
Os professores, em geral, identificam o saber real de uma criança
sobre um tema particular com seu desempenho numa situação particular. No entanto,
para que a educação matemática seja emancipadora é necessário partirmos da
realidade, ou seja, é preciso colocar a realidade diante das pessoas, problematizá-la.
Dessa forma, reforçadas por estratégias culturais, sociais e individuais-coletivas, a
matemática servirá de fato para capacitar cada pessoa a usá-la como um
instrumento importante no processo da compreensão da realidade e da sua
transformação a serviço da humanidade. Mas, para isso, é preciso que a
etnomatemática das crianças tenha um lugar durante a escolarização, uma vez que
“em certa medida todos são matemáticos e fazem matemática conscientemente. Comprar no supermercado, medir um rolo
46 BYERS, Victor. What does it mean to undestand mathematics? Int. J. Math. Educ. Sci. Technol.
1980, vol. II, nº 1, 1-10. 47 FERREIRO, Emília; TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1986, p. 30.
52
de papel de parede ou decorar uma jarra de cerâmica com um desenho regular é fazer matemática”.48
Esse essa fazer matemática continuar sem permissão para entrar sala de aula
adentro, a visão de matemática apresentada pelos professores na escola continuará
irrealista e, o mais importante, não mostrará como o debate e o conflito intergrupal e
interpessoal críticos se deram em favor do progresso da ciência. De fato, o
progresso mais importante no desenvolvimento das áreas do conhecimento foi
ocasionado por conflito intenso, tanto intelectual quanto interpessoal e por revolução
conceitual; para perceber isso basta olhar para a própria história.
As crianças não podem pois aprender por meras observações, por
cópias e repetições. Segundo Lovell
“suas próprias ações primeiramente têm de criar sistemas e operações mentais e, quando estas se tornam coordenadas entre si, as crianças podem começar a interpretar o mundo físico”. 49
No capítulo anterior vimos como a matemática está presente e que
ela já é, de certa forma, conhecida das crianças antes do início da escolarização,
mas não apenas isso, vimos que podemos esperar um entendimento melhor dos
conceitos matemáticos.
“à medida que melhoram os conhecimentos matemáticos dos nossos professores, e à medida que a experiência das crianças se torna mais rica em relação a estes conceitos”. 50
Isto porque, que a criança tem sua etnomatemática é inegável, como também, que o
professor precisa Ter “olhos” para enxergar essa etnomatemática. É preciso que o
professor faça uma leitura matemática das experiências cotidianas, não apenas das
crianças, mas e antes, das dele próprio, pois 51
“quanto mais as idéias matemáticas se introduzem na vida e na experiência cotidiana, tanto mais provável é que as crianças as absorvam em extensão crescente”.
48 DAVIS, P.J.; HERSH, P. A experiência matemática. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1985, p. XI. 49 LOVELL, Kurt. O desenvolvimento dos conceitos matemáticos e científicos na criança. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1988, p. 17. 50 id. ibid., p. 127. 51 id. ibid.
53
5.2 Uma Proposta
A tarefa dos professores é trabalhar competentemente os conteúdos
com as crianças de modo que, ao fazê-lo, se obriguem a desvelar o mundo tal como
ele se apresenta, para que esse desvelar se situe como o início da possibilidade de
participar da invenção da sociedade com o qual se sonha. Essa tarefa implica, de
um lado, na luta pela escola pública, e de outro, no esforço para fazê-la melhor, no
sentido dela ser de fato um dos lugares onde o conhecimento é construído. Isso
porque o grupo que queremos é formado por pessoas ativas, descobrindo o objeto
de seu conhecimento, desenvolvendo sua cultura e nela, neste caso, a matemática.
O professor atualmente é só um agente de transmissão, de
informação. É um sujeito que “possui” o conhecimento. O professor que queremos é
o que seja um coordenador, que possibilite a pesquisa do conhecimento, um “criador
de ambiente”.52
A escola que queremos é para o homem que está seu meio
ambiente e que é rico de experiências; que nela seja permitido ao aluno ser crítico,
político e criativo frente à realidade; que os alunos, juntos com seus professores,
com a participação de toda a comunidade escolar, descobrissem e organizassem
informações. A escola atualmente apenas transfere mecanicamente um amontoado
de informações já organizadas e pré-selecionadas, recorrendo à memorização e à
repetição. No entanto, sonhamos com a escola onde o processo educativo seja feito
através do descobrimento, do conhecimento, recorrendo à observação, à análise e à
interiorização. Assim, a comunidade seria a fonte inicial de informação para o estudo
e, no caso da matemática, a etnomatemática seu ponto de partida.
Assim, este trabalho pretende servir de subsídio para uma proposta
pedagógica que vê o homem como um ser real situado num mundo real, que produz
conhecimento, que gera saber matemática, dentre outros; para uma proposta que
pretende, a partir da etnomatemática da comunidade, praticada e elaborada por
crianças e adultos dentro e fora da escola, ou de outros temas (não
necessariamente ligados à matemática) que se mostrem relevantes na sua cultura,
52 Expressão usado pelo Prof. Dr. Mario Tourasse nas suas aulas na disciplina Idéias Essenciais da
Matemática do curso de Mestrado em Educação Matemática em Rio Claro, SP, em 1984.
54
proporcionar condições de, através do diálogo, manter uma interação entre
etnomatemática e a matemática escolar com a qual o professor se expressa. Daí sim,
teríamos uma escola que seria um dos lugares onde primeiro sonharíamos com o
mundo no qual queremos viver, para, também nela e fora dela, lutarmos por ele.
55
BBIIBBLLIIOOGGRRAAFFIIAA
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59
ANEXOS
60
IINNTTRROODDUUÇÇÃÃOO
Neste anexo estão as entrevistas que fiz com as crianças. Optei por
colocá-las na seqüência em que foram feitas porque minha percepção evoluiu nessa
mesma ordem; também porque não analisei todas as entrevistas de uma criança
para depois analisar todas as de outra; analisei-as de forma simultânea.
Gostaria de destacar que a leitura das entrevistas mostra que a
experiência pedagógica53 não termina no momento em que se encerra a entrevista
uma vez que: algumas vezes a criança continuava a pensar em temas da entrevista
em casa, retomando o assunto em outra entrevista; as crianças demonstravam
interesse pela experiência da qual participavam já que, por exemplo, reclamavam
quando me atrasava, tinham medo que eu não fosse, entre outros.
Quero chamar a atenção para a riqueza deste material – as
entrevistas – uma vez que existem muitos outros aspectos que podem ser
analisados.
Finalmente, creio que este trabalho representa uma contribuição
nessa linha de pesquisa, uma vez que encontrei dificuldade no aspecto
metodológico do tratamento da pesquisa quase-etnográfica e são poucos os
exemplos que se tem nessa linha no Brasil.
Nas entrevistas, usei a seguinte notação:
(Mi) – fala da Michelle;
(Ja) – fala do Jayson;
(Ka) – fala da Karina;
(Ra) – fala do Rafael;
(Rê) – minha fala;
(Ri) – fala do Ricardo.
Não destaquei minha fala usando uma anotação diferenciada, já que,
segundo Dexter, sendo a entrevista uma conversa com um propósito, todos
participam igualmente dela.
53 Digo experiência pedagógica porque todas as crianças sabiam que sou uma professora e que as
entrevistas faziam parte de um trabalho ligado à escola.
61
22.02.86 Ricardo
Fui buscar Ricardo na casa dele. Ele já estava pronto.
Entrou no carro e eu comecei a contar-lhe do trabalho que pretendia
fazer. Escutou interessado e disse:
(Ri) ⎯ Eu sei de matemática. Sei contar.
Perguntei sobre a escola. Ele disse que gosta de ir porque tem
muitos amigos, mas a professora grita um pouco.
Quando chegamos à sala onde funciona o Laboratório de Ensino de
Matemática, ele entrou e começou a olhar as coisas. Bastante curioso, busca o som
das coisas (a mãe é professora de música), passa a mão pela superfície dos objetos,
examina, mexe, tira, põe novamente. Pega as peças de uma caixa de encaixe de
ladrilhos, tenta mudar para ver se encaixa de outro jeito.
Dei a caixa de blocos lógicos. Ele pegou as peças e tentou construir
uma casa. Quando construiu, desmanchou e disse:
(Ri) ⎯ Ah! dá prá construir uma melhor.
Pôs-se a cantar e construiu outra.
Conversamos sobre as cores das peças.
(Ri) ⎯ Gosto de azul e amarelo porque vermelho é de mulher. Minhas irmãs são
chatas.
Perguntei qual era a maior peça. (Ri) ⎯ O (apontou a forma retangular grande) é maior que o (apontou a
forma triangular grande) e o (apontou a forma quadrada grande) porque é mais alto.
Fizemos cada um, uma torre, colocando um certo número de peças empilhadas. (Rê) ⎯ Qual é mais alta?
Ricardo contou as peças.
(Ri) ⎯ A minha. Porque tem mais peças.
(Rê) ⎯ É mais alta mesmo?
Ricardo olhou sua torre e meio enfadado disse:
(Ri) ⎯ Vamos medir então.
E botou as duas lado a lado. Constatou que eram iguais.
(Rê) ⎯ Ué, você não disse que a sua tinha mais peças?
(Ri) ⎯ É... (pensou um pouco)... como pode?
Examinou as peças. Recontou-as. E disse:
62
(Ri) ⎯ É que tem peças grossas e finas. Você só usou grossas e eu usei
finas também.
E mais que depressa botou mais peças na torre dele.
Segundo ele os nomes são:
(Ri) ⎯ Essa peça tem dois lados (e mostrou as duas faces paralelas).
Coloquei
(Rê) ⎯ Quantas peças?
(Ri) ⎯ Cinco.
(Rê) ⎯ E agora?
(Ri) ⎯ Cinco.
(Rê) ⎯ E agora?
63
(Ri) ⎯ Cinco ainda.
(Rê) ⎯ Por quê?
(Ri) ⎯ Porque você não tirou nenhuma.
Propus que ele guardasse as peças na caixa de modo que coubessem todas.
Demorou uns 10 minutos e desistiu (sobraram duas peças).
Fomos embora então, pois já havia terminado o tempo que tínhamos
combinado.
Ricardo foi falando o tempo todo do caminho de volta. Contou-me
que suas irmãs são chatas porque são mulheres e porque falam muito.
(Rê) ⎯ Todas as mulheres são chatas?
(Ri) ⎯ Quase todas.
(Rê) ⎯ Você conhece alguma que não é chata?
(Ri) ⎯ Minha mãe, mas as minhas irmãs vive grudada nela até a hora que ele tá
comigo e só quer ficar comigo.
Marcamos a segunda entrevista e deixei-o em casa.
64
07.03.86 Ricardo
Quando cheguei para buscá-lo Ricardo estava me esperando.
Entrou no carro e começou a me contar do seu cachorro e de uma briga que houve
na escola na véspera. Fala rápido e sua fala é muito rica em detalhes.
Chegamos ao Laboratório.
(Rê) ⎯ Tem alguma coisa diferente na sala?
Ele olhou com cuidado para os lados e disse que não.
(Rê) ⎯ Ricardo o dia da mentira é dia 1º de abril, né?
(Ri) ⎯ É.
(Rê) ⎯ Você sabe contar mentira?
Ricardo ficou brabo e disse que não, pois não é mentiroso. Insisti
mas não adiantou.
Quando eu me propus a contar uma, os olhos dele brilharam. Aí eu
contei que havia visto um cachorro com 5 patas, chifre na testa, com rabo de porco e
grande feito um cavalo. Ele riu e contei outra: que meu carro voa.
(Rê) ⎯ Qual é maior, a mentira do cachorro ou a do carro?
(Ri) ⎯ A do cachorro.
(Rê) ⎯ Por quê?
(Ri) ⎯ Porque cachorro não tem 5 pés, nem chifre, nem rabo de porco e
é pequeno. Essa do cachorro é mais comprida.
Pegamos a caixa de blocos lógicos. Ele separou por cores. Aí eu propus que eu
separaria e ele descobriria a regra que usei. Ele topou. Separei as peças circulares,
as retangulares, as quadradas e as triangulares. Ele descobriu. Separei as peças
circulares das outras e ele não descobriu. Aí resolvemos guardar as peças. A regra é
guardar na caixa e a tampa fechar.
Ele conseguiu depois de 5 tentativas.
Fomos embora então.
65
06.03.86 Michelle
A mãe de Michelle foi conosco para a UNESP. No caminho fomos
conversando. Expliquei como seriam as entrevistas e o motivo delas. Ela falou-me
sobre Michelle e que mora com ela, o irmãozinho menor na casa da avó paterna. O
pai é presidiário. Que Michelle é tímida e tem 7 anos.
Segundo a mãe, ela é pouco curiosa, tem facilidade para aprender,
conversa como se fosse adulta, brinca bastante, adora bicicleta, gosta de cartas,
prefere ficar com os adultos e prefere coisas de adultos. Tem bom relacionamento
com a mãe e no dizer dela (mãe) “Tudo o que agente conversa com ela, ela
entende”. Sabe a verdade sobre o pai.
Quando chegamos a mãe deixou-nos e foi para a biblioteca estudar.
Ela faz colegial no período noturno.
Pedi a Michelle que olhasse as coisas do laboratório.
Aí pegamos a caixa de blocos lógicos, espalhamos as peças sobre a
mesa e ela começou a construir algo.
(Rê) ⎯ O que você está fazendo?
(Mi) ⎯ Uma casa.
Lembrei-me que ela mora com os avós.
É bastante meticulosa. Percebe bem as diferenças de forma, cor,
espessura e tamanho.
Pergunto se ela sabe o nome de alguma peça.
Ela pega a peça quadrada e diz:
(Mi) ⎯ Esse é um quadrado.
Pedi para ela distribuir as peças entre ela e eu. Distribuiu todas
dando uma prá mim e outra prá ela.
(Rê) ⎯ Se você tivesse que arrumar as peças, como faria?
Michelle começou pelas peças quadradas, depois as triangulares, as
retangulares e as circulares colocando as cores sempre na mesma ordem –
vermelho, azul, amarelo – as espessuras – grossa antes da fina – tamanho, as
grandes antes das pequenas.
(Rê) ⎯ Agora vamos guardar as peças na caixa, mas a tempa
tem de fechar.
66
(Mi) ⎯ Acho que não vai caber.
Guardou todas em 4 tentativas.
Fomos então buscar a mãe dela na biblioteca.
No caminho de volta, assim como no de vinda ela falou pouco.
Marcamos a segunda entrevista.
67
01.04.86 Karina
Essa é a primeira entrevista com a Karina. Ela faz 7 anos dia 26.06,
nasceu em 1979.
Vou conversar com ela na casa dela. A mãe preferiu que a primeira
vez fosse lá.
Mora numa casa “parede meia”.
Quando cheguei ela, a mãe e a irmã foram me receber. A mãe
sugeriu que a entrevista poderia ser feita na sala e foi com a irmã de Karina para a
cozinha.
Karina sentou-se e olhou prá mim com tanta curiosidade que eu sorri.
(Ka) ⎯ Por que você está rindo?
(Rê) ⎯ Estou achando engraçado você me perguntar o que
vamos fazer com os olhos e não com a boca.
Ela riu. Falei que a gente iria conversar e perguntei sobre os quadros
que estão pendurados na parede.
(Rê) ⎯ Todos são do mesmo tamanho?
(Ka) ⎯ Esse é o mais grande, depois vem este, aquele, este e
por último o mais pequeno que é aquele ali.
(Rê) ⎯ Tem bastante coisa aqui, não é?
(Ka) ⎯ É.
(Rê) ⎯ O que tem bastante ali na estante?
(Ka) ⎯ Livro.
(Rê) ⎯ Quantos?
Imediatamente e sem contar ela respondeu:
(Ka) ⎯ 10.
Na verdade tem 23.
(Rê) ⎯ E se tivessem poucos, quantos seriam?
(Ka) ⎯ 3.
Para contar ela aponta com os dedos.
Mostrei um quadro retangular e perguntei qual lado é maior. Ela
apontou
68
Karina é muito inibida. Responde mais por gesto do que falando.
Nesse quadro mostrei que havia um rio. Aí perguntei:
(Rê) ⎯ O que tem no rio?
(Ka) ⎯ Dentro do rio tem peixe.
(Rê) ⎯ Só?
(Ka) ⎯ Tem pedra e sapo.
(Rê) ⎯ Só?
(Ka) ⎯ Tem um monte de coisa.
(Rê) ⎯ O que, por exemplo?
(Ka) ⎯ Vaca bebendo água, barro,... bosta.
(Rê) ⎯ Tem gente bebendo água?
(Ka) ⎯ Gente não. Bebe no copo. Mas tem cavalo.
(Rê) ⎯ Vaca come o quê?
(Ka) ⎯ Capim.
(Rê) ⎯ Peixe também come isso?
(Ka) ⎯ Não, mas sapo come peixe, gato também e homem
também.
(Rê) ⎯ O que mais gato come?
(Ka) ⎯ Bicho que voa.
(Rê) ⎯ Qual?
(Ka) ⎯ Passarinho, corvo...
(Rê) ⎯ Corvo não é passarinho?
(Ka) ⎯ Não.
69
(Rê) ⎯ Por quê?
(Ka) ⎯ Passarinho é pequeno, corvo é grande. Corvo como
carniça, passarinho não.
(Rê) ⎯ O que você mais gosta na escola?
(Ka) ⎯ De escrever. Estou aprendendo as letra.
Como já estava na hora, marquei outra entrevista e me despedi.
70
03.04.86 Ricardo e Michelle
Comecei conversando com eles sobre o dia 1º de abril, dia da
mentira.
(Ri) ⎯ Eu enganei um colega meu. Disse que o tênis estava
desamarrado e era mentira.
(Rê) ⎯ E você, Michelle?
(Mi) ⎯ Eu não.
(Rê) ⎯ Ah! Eu falei prá um menino que havia visto um
cachorro com chifre na testa e com cinco patas.
As crianças riram.
(Rê) ⎯ E para uma moça eu disse que havia encontrado um
cavalo listrado.
Ai perguntei, qual a mentira maior e por que.
(Ri) ⎯ A do cachorro porque você usou mais letras.
(Mi) ⎯ Elas são iguais porque foram no mesmo dia.
Hoje trabalhamos com material Multibase 10.
Coloquei dez tubos alinhados.
Peço para Ricardo me mostrar a metade. Ele pensa por algum
tempo olhando atentamente para os cubos e mexendo os dedos sobre a mesa e em
seguida tira os dois do meio.
(Ri) ⎯ Pronto.
(Rê) ⎯ E o que você tirou?
(Ri) ⎯ O meio. Aí ficou quatro desse lado e quatro do outro.
Coloco então doze tubos. Ele repete o procedimento.
Coloco dessa vez nove cubos. Ele olha, retira o 5º cubo e diz:
71
(Ri) ⎯ Pronto.
Michelle ficou olhando.
Coloco dez cubos alinhados e pergunto prá ela:
(Rê) ⎯ E prá você, como é?
Ela separa cinco de um lado e cinco de outro, de um em um
começando pelas extremidades.
(Mi) ⎯ A metade é cinco. (Rê) ⎯ Por quê? Ela não responde, apenas olha para os cubos. (Rê) ⎯ Como você sabe? (Mi) ⎯ Porque ficou cinco igual de cada lado. Coloco agora quatorze cubos alinhados. (Rê) ⎯ E agora? Mais que depressa ela separa nessa seqüência
Daí ela conta e diz: (Mi) ⎯ Os dois tem sete. Coloco treze cubos alinhados e novamente pergunto sobre metade. Michelle repete a seqüência anterior
72
E aí me diz: (Mi) ⎯ Esse não dá metade. Só se pegar mais um dado. Pergunto então: (Rê) ⎯ Ricardo o seu jeito de achar a metade é igual ao jeito da Michelle achar a metade? (Ri) ⎯ É parecido. Repito e pergunto para Michelle. (Mi) ⎯ Quase igual. (Rê) ⎯ E não fica diferente a metade se o jeito não é igualzinho? (Mi) ⎯ Claro que não (disse rindo). (Ri) ⎯ Metade é metade. Guardamos o material e fomos embora.
73
07.04.86 Rafael Fui até a casa do Rafael, uma vez que a mãe preferiu a primeira entrevista lá. Contei pra ele sobre meu trabalho e do motivo das entrevistas. Ele ouviu bem atento e quando terminei disse: (Ra) ⎯ Não sei se vou querer fazer. (Rê) ⎯ Por quê? (Ra) ⎯ Porque não quero ficar fazendo mais coisa de escola. (Rê) ⎯ Como você sabe que é coisa de escola? (Ra) ⎯ Porque você é professora, então vai perguntar coisa de escola e eu já fico todo dia de tarde na escola e não quero fazer coisa de escola de manhã porque já tem a tarefa. (Rê) ⎯ Você não quer ver primeiro e depois você resolve se quer ou não continuar? Ele pensou um pouco e respondeu: (Ra) ⎯ Tá bom. A gente faz três entrevista e daí eu vou ver se quero continuar. Mas tem que ser curta, tá? (Rê) ⎯ Tá combinado. (Rê) ⎯ O que você gosta de fazer na escola? (Ra) ⎯ Escrever na lousa. (Rê) ⎯ Tem meninos na sua turma? (Ra) ⎯ Tem. E tem meninas também. (Rê) ⎯ Tem mais menino ou mais menina? (Ra) ⎯ Mais menino. (Rê) ⎯ Como você sabe? (Ra) ⎯ Porque são colegas. Mais meninos.
74
(Rê) ⎯ Quantos colegas você acha que são muitos colegas? (Ra) ⎯ Uns vinte. (Rê) ⎯ E poucos? (Ra) ⎯ Menos de dez. (Rê) ⎯ Quantos cômodos tem na sua casa? Pensa, gesticula com o dedo enumerando os cômodos. (Ra) ⎯ Nove. (Rê) ⎯ Moram quantas pessoas? (Ra) ⎯ Cinco. (Rê) ⎯ Quantas pessoas fariam a casa ficar apertada? (Ra) ⎯ Se morasse nove pessoas. (Rê) ⎯ Você sabe contar mentira. (Ra) ⎯ Claro! (Rê) ⎯ Conta prá mim uma bem pequena. (Ra) ⎯ Eu vi o Papai Noel. (Rê) ⎯ Eu tenho um carro que quando eu aperto o botão vermelho ele voa. Foi assim que cheguei aqui. Voando. Ele riu. (Rê) ⎯ Qual mentira é maior, a minha ou a sua? (Ra) ⎯ A do carro porque onde já se viu carro voar!?! (Rê) ⎯ Faz tempo que foi a Páscoa? (Ra) ⎯ Faz. (Rê) ⎯ E o que faz pouco tempo? (Ra) ⎯ Que você chegou. (Rê) ⎯ Do que você gosta de brincar? (Ra) ⎯ De esconde-esconde. (Rê) ⎯ Quantas pessoas precisa prá brincar? (Ra) ⎯ Quatro. (Rê) ⎯ Quando acaba a brincadeira?
75
(Ra) ⎯ Quando a mãe chama. (Rê) ⎯ E se a mãe não chamar? (Ra) ⎯ Aí não acaba. (Rê) ⎯ Quando a gente pode se ver de novo para a outra entrevista? (Ra) ⎯ Achei que você viesse falar de escola, das coisas de lá. (Rê) ⎯ E não é? (Ra) ⎯ Não. (Rê) ⎯ Podemos marcar a segunda entrevista? (Ra) ⎯ Pode. E eu não vou querer parar não. Pode marcar um monte. (Rê) ⎯ Legal! Marcamos então a outra entrevista.
76
17.04.86 Karina Fui buscar a Karina na casa dela e fomos para o Laboratório. Chegamos na sala e peguei a caixa de blocos lógicos. Tiramos as peças da caixa e elas foram espalhadas sobre a mesa. (Rê) ⎯ Se você tivesse que arrumar as peças como você arrumaria? Karina arrumou assim, escolhendo apenas algumas peças grossas.
(Rê) ⎯ Reparta agora as peças entre você e eu. Aí Karina começou dando uma pra mim, uma pra ela, sem se preocupar com tamanho, cor, espessura ou forma e assim foi até distribuir
77
todas as peças e não apenas as que havia arrumado. (Rê) ⎯ Eu vou botar uma peça e você bota outra só que tem que ser diferente, tá? (Ka) ⎯ Tá.
78
Quando questionei ela disse: (Ka) ⎯ A diferença é a cor.
79
80
Aí ela disse que não eram diferentes, que eram iguais. Perguntei sobre os nomes das peças e ela respondeu: (Ka)
81
Juntei as amarelas e antes que eu perguntasse qualquer coisa ela disse: (Ka) ⎯ Só as amarelas. (Rê) ⎯ E se eu juntasse essas (e mostrei as grossas grandes ou pequenas). (Ka) ⎯ Tem azul, tem amarelo, tem vermelho então... são misturadas. Ela não reconheceu apenas a espessura como critério. Está fixada na cor. Quando nos propusemos a fazer um trem ela fez:
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Nós pegamos o cilindro e o cone. Aí ela me diz que a peça “redonda” dos blocos lógicos é uma fatia do cilindro e que a peça triangular parece o cone de longe. Não sabe o nome do cone nem do cilindro. Guardamos as peças e fui levá-la para casa.
83
18.04.86 Jayson A primeira entrevista feita com o Jayson foi na casa dele mesmo. Ele conta até duzentos e acha muito, pouco seria até quarenta. Conta nos dedos, disfarçadamente. Mentira maior é a mais comprida. Perguntei se a mão dele era maior que a minha. (Ja) ⎯ Não. A sua é maior. (Rê) ⎯ Por quê? (Ja) ⎯ Porque você é mais velha. (Rê) ⎯ Só por isso? (Ja) ⎯ Porque também você também é maior. (Rê) ⎯ Tem certeza? Aí ele botou a mão dele encostada na minha, palma contra palma, e disse: (Ja) ⎯ Tá vendo? (Rê) ⎯ Tô. (Rê) ⎯ De que você gosta de brincar? (Ja) ⎯ De pegador. (Rê) ⎯ Quando acaba a brincadeira? (Ja) ⎯ Quando a mãe chama ou quando cansa. Jayson conta nos dedos. Estima bem. (Rê) ⎯ Uma hora é um tempo que dá pra brincar de pegador? (Ja) ⎯ Uma hora dá. (Rê) ⎯ É pouco ou muito.? (Ja) ⎯ Depende. Prá brincar é pouco e prá esperar é muito. Pergunto se ele sabe o nome dessa figura
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(Ja) ⎯ Triângulo. (Rê) ⎯ E dessa?
(Ja) ⎯ Retângulo. (Rê) ⎯ E dessa?
(Ja) ⎯ Quadrado. (Rê) ⎯ O retângulo é diferente do quadrado? (Ja) ⎯ É. É mais comprido. Conversei com ele sobre contar nos dedos. Perguntei como faz pra contar mais de dez nos dedos. Ele disse que contava mais de duas mãos. Falei: (Rê) ⎯ E prá contar trinta e cinco? Ele pensou um pouco e disse: (Ja) ⎯ Preciso de 7 mãos. Marquei outra entrevista e despedi-me.
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22.04.86 Karina e Rafael Combinei com Karina e Rafael uma entrevista com os dois juntos. Combinei também quem eu iria pegar primeiro. Fomos então para a sala do Laboratório. Foram colocadas trinta e cinco peças na mesa para Karina distribuir entre ela e Rafael. Começou dando um para cada um e assim foi até o fim. Sobrou um. (Rê) ⎯ Como faz? (Ka) ⎯ Guarda na caixa. (Rê) ⎯ Tá certo, Rafael? (Ra) ⎯ Tá.. A peça foi então guardada. (Rê) ⎯ Vocês tem a mesma quantidade de peças? (Ka) ⎯ Sim (não contou). (Ra) ⎯ Sim (mas antes contou as dele e as dela). (Rê) ⎯ Eu gostaria de jogar também e preciso de peças. (Ra) ⎯ Eu te dou cinco. (Ka) ⎯ Eu também. (Ra) ⎯ Aí ela fica com mais (referindo-se a mim). (Ka) ⎯ Não fica. Fica menos. E enfileirou as três quantidades. (Ka) ⎯ Aí, ó! (Ra) ⎯ Eu te dou mais um (referindo a mim). (Ka) ⎯ Eu dou também.
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(Rê) ⎯ E agora temos a mesma quantidade? (Ka) ⎯ Vou ver. E conta. (Ka) ⎯ Não. Você tem mais (referindo-se a mim). (Rê) ⎯ Quantas a mais? (Ka) ⎯ Um. (Rê) ⎯ E daí, como fazer? (Ra) ⎯ Guarda uma na caixa. (Ka) ⎯ Ou bota uma pro Rafael e mais uma prá mim. Rafael e Karina optaram por guardar uma das minhas na caixa. O jogo foi iniciado. Era assim: cada um colocava um cubo sobre o cubo que jogou antes. O que derrubasse perdia os cubos para o anterior. Karina e Rafael começaram com dez cubos cada um.
. Karina derrubou ao colocar o 7º cubo. (Rê) ⎯ Quantos cubos você tem Rafael? Ele conta e diz: (Ra) ⎯ Quinze. (Rê) ⎯ E você Karina? Karina conta e diz: (Ka) ⎯ Sete.
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Rafael derrubou e Karina pegou as peças dizendo: (Ka) ⎯ Tenho doze peças. (Rê) ⎯ Por quê? (Ka) ⎯ Tinha sete então (e apontou as peças ganhas) oito, nove, dez, onze e doze. (Rê) ⎯ O que você acha Rafael?
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Ficou olhando as peças por alguns segundos e respondeu: (Ra) ⎯ Tá certo. Senti que eles se desinteressaram e dei por terminada a entrevista.
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24.04.86 Ricardo Fui buscar Ricardo e fomos para o Laboratório. Chegando lá perguntou se havia algum quebra-cabeça pra montar. Eu disse que havia vários e mostrei as caixas para ele. Escolheu um, olhou bem antes de desmanchar, depois espalhou as peças sobre a mesa e começou a montar. Quando terminou, quarenta minutos depois disse: (Ri) ⎯ Eu estou aprendendo a escrever até o dez. Mas eu escrevo mais. (Rê) ⎯ E como é? (Ri) ⎯ A gente escreve até o nove e depois o um e o zero faz o dez, o um e o um faz onze e é só ir seguindo um e dois, um e três... assim ó (e foi pro quadro escrever)
(Ri) ⎯ É bem fácil. (Rê) ⎯ Tem alguma coisa aqui na sala que não dá pra pegar? (Ri) ⎯ Tem. (Rê) ⎯ O que. (Ri) ⎯ O desenho (era o desenho de um quadrado). Só se recortar o papel mas aí vai ficar chato. Aí quis montar o quebra-cabeça na caixa para guardar. Como o tempo havia terminado fomos embora.
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25.04.86 Jayson Fui para a casa do Jayson e levei quinze pinos, uma caixa vazia de sabonete e uma folha de revista. Conversamos um pouco e eu pedi a ele que me mostrasse o meio da seqüência de dez pinos enfileirados.
(Ja) ⎯ Estes são os do meio. (Rê) ⎯ Quantos são? (Ja) ⎯ Os do meio, dois. (Rê) ⎯ E no total? (Ja) ⎯ Dez. (Rê) ⎯ Como você sabe que esses são os do meio? (Ja) ⎯ Porque ficou quatro de lado de cá e quatro do outro. Metade de cada lado. Enfileirei quinze pinos. E pedi para ele repartir na metade. Ele separou o pino central assim.
(Rê) ⎯ Tem quantos pinos? (Ja) ⎯ Quinze. (Rê) ⎯ E a metade? (Ja) ⎯ Sete. (Rê) ⎯ E aquele (apontando o do meio). (Ja) ⎯ Aquele é o do meio.
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(Rê) ⎯ Não conta? (Ja) ⎯ Não. Fizemos com nove, doze, dezoito, vinte e seis, trinta e um e trinta e cinco. O procedimento se repetiu. Peguei então a folha de revista e ele disse: (Ja) ⎯ Que bom que você entendeu eu já tava cansado. Eu ri e dei a ele a folha de revista e perguntei qual era o meio.
Perguntei da metade e ele disse. (Ja) ⎯ È só cortar no meio. (Rê) ⎯ Dos dois jeitos? (Ja) ⎯ Não. De um ou de outro. Se cortar dos dois jeitos dá metade da metade. Coloquei a ponta da caneta na dobra que ele havia feito e perguntei se estava no meio. Fui mudando na figura e ele me disse que estava no meio (em todos os pontos).
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Aí mostrei a caixa e pedi a ele que me mostrasse o meio
Conversamos sobre meio e metade. Aqui vão as conclusões dele:
meio é onde divide na metade.
Metade é cada lado do meio.
As metades tem de ser iguais.
Desmontou a caixa, separando as faces. Comparou os tamanhos e concluiu que ela tem três faces diferentes e duas de cada uma. Pedi para que ele me desse metade da caixa. Ele parou. Pensou um pouco. Pegou duas faces iguais, sobrepôs as duas e repartiu no meio. Ficou com uma metade e me deu a outra. Fez assim com todas as faces.
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Conversei com ele sobre a sala em que estávamos. Pedi que me mostrasse o meio e ele fez com a mão um movimento que me fez entender que o meio era um “plano”.
(Já) ⎯ A lâmpada fica no meio. Quer dizer, num lugar do meio. Perguntei o que dava prá botar no meio. (Já) ⎯ Uma folha de papel. (Rê) ⎯ Por que? (Já) ⎯ Se for mais grosso passa do meio. Um amiguinho veio chamá-lo para brincar pois havia terminado o tempo.
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02.05.86 Jayson Começamos a conversar sobre a festa de aniversário do irmão dele. Eu perguntei se o irmão havia ganho muitos presentes. (Ja) ⎯ Ganhou uns seis. (Rê) ⎯ É bastante? (Ja) ⎯ É. (Rê) ⎯ E pouco, quanto seria? (Ja) ⎯ Uns três. (Rê) ⎯ Para uma festa, quantas pessoas você acha bastante? (Ja) ⎯ Duzentas. (Rê) ⎯ E pouco? (Ja) ⎯ Uma. (Rê) ⎯ E mais ou menos? (Ja) ⎯ Cem. Perguntei sobre muito, pouco e mais ou menos e com as respostas fui preenchendo esta tabela:
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(Rê) ⎯ E flores no vaso, quantas seriam muitas? (Ja) ⎯ Depende do tamanho do vaso. Começamos a falar de bolinhas de gude. (Rê) ⎯ Se você tiver dez e ganhar três ficará com quantas? Jayson contou nos dedos. (Ja) ⎯ Onze, doze, treze. Com treze. (Rê) ⎯ Ganha mais sete. (Ja) ⎯ Vinte (sempre contando nos dedos). (Rê) ⎯ Perde duas. (Ja) ⎯ Tinha vinte tirou uma ficou com dezenove, tirou outra – dezoito. (Rê) ⎯ Ganha dez. (Ja) ⎯ Vinte e oito (sem pestanejar). (Rê) ⎯ Perde cinco. (Ja) ⎯ Bom, vinte e oito tirou uma, vinte e sete. Vinte e sete tirou uma, vinte e seis. Vinte e seis tirou uma, vinte e cinco. Vinte e cinco tira uma, vinte e quatro. Vinte e quatro tirou a última vinte e três. (Rê) ⎯ Perde três. (Ja) ⎯ Aí eu faço direto, vinte. (Rê) ⎯ Ganha dez. (Ja) ⎯ Faço direto, também, trinta. (Rê) ⎯ Quando você faz direto? (Ja) ⎯ Faço direto quando que nem: oito tira quatro fica quatro
cem tira cinqüenta fica cinqüenta
vinte tira dez fica dez
dez tira cinco fica cinco.
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ntendeu? (Rê) ⎯ Entendi. Por hoje é só, tá? (Ja) ⎯ Tá. Mas tava legal dava prá ir mais. Você volta logo? (Rê) ⎯ Volto. E despedi-me.
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29.05.86 Jayson (Rê) ⎯ Hoje vamos conversar sobre meio e metade. (Ja) ⎯ De novo? Fiz que sim com a cabeça e entreguei a ele umas folhas. Pedi que ele pegasse uma e dobrasse no meio. Ele dobrou:
Fig. 1
Perguntei se havia outro jeito e ele dobrou:
Fig. 2
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Perguntei se havia outro jeito e ele pensou uns instantes. Tentou dobrar na diagonal mas depois de um tempo achou que não era igual e respondeu que não havia jeito. Perguntei o que era o meio e ele mostrou-me a linha de dobradura, quer dizer a marca da dobradura. Aí eu perguntei sobre o que era metade. Ele rasgou a folha na marca da dobradura, pegou uma parte e me disse que aquilo era uma metade. Perguntei se as folhas eram do mesmo tamanho. (Ja) ⎯ São. (Rê) ⎯ Se você pegar uma metade dessa (figura 2) e outra metade dessa (figura 1), elas são diferentes? (Ja) ⎯ Não. São metades só que uma de uma folha e outra da outra folha. Conversamos sobre “muito”, “pouco” e “mais ou menos” e fui preenchendo a seguinte tabela:
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Aí perguntei se seis era muito ou pouco. Ele respondeu que era pouco. (Rê) ⎯ Mas você disse que seis quilos de ouro é muito. (Ja) ⎯ É, mas o número depende da coisa que a gente tá falando. (Rê) ⎯ E o zero é pouco? (Ja) ⎯ O zero não é nada. Para ter bem pouco tem que ter pelo menos um. Conversamos então sobre carrinhos e brinquedos que são quebrados. Perguntei o que era meio. (Ja) ⎯ É o lugar que separa as metades. Dei a ele oito pedaços iguais de papel. Pedi metade. Ele me deu quatro. Dei então nove pedaços iguais de papel e novamente pedi a metade. Ele pegou quatro e me deu quatro. Ficou com o que sobrou na mãos por uns instantes. Em seguida dobrou no meio, rasgou e me deu uma das partes e ficou com a outra. (Ja) ⎯ Quatro e meia pra cada um. Perguntei se ele tinha muita tarefa. (Ja) ⎯ Às vezes.
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(Rê) ⎯ Se você tivesse dez cópias pra fazer, seria muito, pouco ou mais ou menos? (Ja) ⎯ Muito. (Rê) ⎯ Se você tem três contas pra fazer e já fez duas, você fez muitas contas ou poucas? (Ja) ⎯ Muitas. (Rê) ⎯ E se você tem vinte contas pra fazer e já fez três? (Ja) ⎯ Ah! fiz poucas. Terminando o tempo, fui embora.
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29.05.86 Rafael e Ricardo Começamos a entrevista conversando sobre o que as crianças tinham feito nesses últimos dias. Espalhei onze cubos de madeira e perguntei: (Rê) ⎯ Como faço para saber a metade? (Ra) (Contou) ⎯ Se você pegar cinco e der cinco fica um. (Rê) ⎯ E daí? (Ri) ⎯ Bota na caixa esse que sobrou. (Ra) ⎯ É. Bota na caixa. (Rê) ⎯ E o meio dessas peças?
Rafael (Ra) e Ricardo (Ri) apontaram. (Rê) ⎯ E o que sobra? (Perguntei apontando as outras peças). (Ra) ⎯ É os cantos. Coloquei doze cubos alinhados e perguntei:
(Rê) ⎯ E agora? Rafael contou e disse – agora não tem meio (Rê) ⎯ E o que é o meio de uma coisa? (Ra) ⎯ É o que fica no meio e fica a mesma coisa nos cantos. (Rê) ⎯ Não dá mesmo para achar o meio? (Ra) ⎯ Vamos ver (e fez)
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aí pensou, olhou e mudou para
(Ra) ⎯ Pronto. Só se pode ficar dois no meio. Coloquei então cone cubos e perguntei sobre o meio. Como os cubos estavam desalinhados, Ricardo alinhou-os e puxou o 5º cubo ficando
Com quatorze cubos o procedimento foi: 1º) alinharam os cubos
2º) ”chutaram” o meio
3º) contaram e ao perceber seis de um lado e sete de outro puxaram mais um
Dei então uma folha de papel sulfite pra cada um e perguntei sobre o meio. (Rê) ⎯ E dessa folha, qual é o meio? Rafael dobrou a folha (figura 3).
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Fig. 3
Fig. 4 Ricardo disse que havia outro jeito e dobrou (figura 4). Perguntei se havia outro jeito. Rafael tentou unir as pontas pra dobrar na diagonal (Ra) ⎯ Não fica igual (disse referindo-se às duas partes). Dei uma caixa de sabonete para cada um. Pedi que cada um achasse a metade da caixa. Deixei uma tesoura e uma régua sobre a mesa. Rafael cortou a caixa nesse sentido (figura 5) e Ricardo preferiu cortar (figura 6).
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Fig. 5
Fig. 6 Perguntei se havia outro jeito e a resposta foi não. Peguei uma parte da caixa e perguntei se aquilo era uma caixa. (Ra) ⎯ Não. Isso é um canto da caixa. Perguntei qual era o meio. Ricardo juntou os dois pedaços da sua caixa e disse: (Ri) ⎯ Aí onde eu cortei é o meio. (Rê) ⎯ Meio é a metade? (Ri) ⎯ Não. Meio é pra frente e metade é pros lados. Peguei um dos pedaços da caixa e perguntei se o meio não dava prá ver. (Ra) ⎯ Dá sim. É aqui e (passou os dedos sobra as bordas da caixa do lado que cortou mostrando o contorno do corte). Aí fomos embora.
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02.06.86 Ricardo No caminho para o Laboratório, começamos a conversar sobre o cachorro de Ricardo. Perguntei se ele gostava de cachorro e respondeu-me que gostava muito. Perguntei: (Rê) ⎯ Você gosta de todos os animais igual você gosta do seu cachorro? (Ri) ⎯ Não. Tem uns que gosto menos e uns que não gosto. (Rê) ⎯ Qual o que você gosta mais? (Ri) ⎯ O meu cachorro. (Rê) ⎯ E o que você gosta menos? (Ri) ⎯ De cobra. Se ela morde você pode até morrer. (Rê) ⎯ E tem algum bicho que você gosta mais ou menos? (Ri) ⎯ Tem. Gato. Chegamos então ao Laboratório e depois de entrar perguntei, como sempre, se havia alguma coisa diferente. (Ri) ⎯ O quadro está todo escrito. (Rê) ⎯ Tem muita coisa escrita, pouca, ou, mais ou menos? (Ri) ⎯ Tem muita. (Rê) ⎯ Por quê? (Ri) ⎯ Porque está todo escrito. Aí comecei a conversar sobre muito, pouco e mais ou menos e da conversa saiu esse quadro abaixo. Enquanto eu montava o quadro para anotar as perguntas e respostas, perguntei: (Rê) ⎯ O que é bastante? (Ri) ⎯ Muita coisa. (Rê) ⎯ O que é pouco? (Ri) ⎯ Pouquinho. (Rê) ⎯ E o que é mais ou menos?
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(Ri) ⎯ Não sei... (Pensou um pouco) Que tem o meio.
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E dei por terminada a entrevista.
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03.06.86 Rafael Rafael estava me esperando no portão. Falo com Sonia sua mãe, ele entra no carro e vamos para a sala do Laboratório de Ensino em Matemática – UNESP. Conversamos um pouco sobre o fim de semana. Rafael não quis continuar a conversa e disse: (Ra) ⎯ Hoje você demorou pra chegar. (Rê) ⎯ Por que você acha isso? (Ra) ⎯ Porque eu já estava pronto faz tempo. (Rê) ⎯ Muito tempo? (Ra) ⎯ Muito. Da outra vez vê se não demora, tá? (Rê) ⎯ Tá. Mas eu me atrasei só 10 minutos. (Ra) ⎯ E é muito tempo. Rafael permaneceu quieto até chegarmos ao Laboratório. (Rê) ⎯ Vamos conversar sobre muito? (Ra) ⎯ Tá. (Rê) ⎯ O que é muito? (Ra) ⎯ É quando demora muito. (Rê) ⎯ E pouco? (Ra) ⎯ É quando não demora. (Rê) ⎯ E mais ou menos? (Ra) ⎯ ... Achei melhor perguntar sobre coisas que ele conhecia e montei a seguinte tabela com as respostas dele.
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(Rê) ⎯ Você sabe a metade de quatro? Ele pensou e disse: (Ra) ⎯ Dois. (Rê) ⎯ Como você faz para saber que a metade é dois? (Ra) ⎯ Tem quatro. Separa um e fica três e um. Separa mais um e fica dois e dois. Daí dois. (Rê) ⎯ E a metade de seis? (Ra) ⎯ Tem seis e tira um. Fica cinco e um. Tira mais um. Fica quatro e dois. Tira mais um. Fica três e três. (Rê) ⎯ E de oito? (Ra) ⎯ É quatro.
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(Rê) ⎯ Por quê? (Ra) ⎯ Porque quatro mais quatro é oito. (Rê) ⎯ E de um número muito grande? (Ra) ⎯ Feito dez? A metade é cinco. Porque cinco mais cinco é dez. (Rê) ⎯ E de dezesseis? Ele contou nos dedos: (Ra) ⎯ Dez mais seis é dezesseis. (Rê) ⎯ A metade é dez ou seis? (Ra) ⎯ É seis. (Rê) ⎯ As metades têm que ser iguais? (Ra) ⎯ Tem. Como Rafael demonstrou não se interessou mais e começou a dar mostras desse desinteresse, perguntei: (Rê) ⎯ Qual é o maior número de coisas que você já viu? (Ra) ⎯ Vinte e dois passarinhos. (Rê) ⎯ Onde? (Ra) ⎯ Na chácara. (Rê) ⎯ Em dinheiro, vinte e dois é bastante? (Ra) ⎯ É. (Rê) ⎯ Uma pessoa bem velha quantos anos tem? (Ra) ⎯ Vinte. (Rê) ⎯ E uma bem nova? (Ra) ⎯ Quatro. (Rê) ⎯ E uma mais ou menos? (Ra) ⎯ Dez. Enquanto nos preparávamos para sair, perguntei: (Rê) ⎯ Sabe quanto tempo faz que agente tá conversando? (Ra) ⎯ Pouco. (Rê) ⎯ Mais de dez minutos ou menos?
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(Ra) ⎯ Menos. (Rê) ⎯ Faz uma hora. (Ra) ⎯ Uma hora?! (Rê) ⎯ Uma hora tem muitos dez minutos? (Ra) ⎯ Acho que tem uns... uns... três dez minutos. Regina, quantos dez minutos faz que estamos aqui certinho? (Rê) ⎯ Seis dez minutos. (Ra) ⎯ Credo!! Não parece. (Rê) ⎯ Você hoje me esperou dez minutos e achou muito e agora está achando seis dez minutos pouco, como é isso? (Ra) ⎯ É que conversar com você não cansa. Fomos então embora.
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17.06.86 Rafael Rafael estava na loja, pronto e me esperando. Entramos no carro e puxei conversa: (Rê) ⎯ Você gosta mais de brinquedo de jogos ou livro de estória? (Ra) ⎯ Livro de estória. (Rê) ⎯ E na escola o que você mais gosta de fazer? (Ra) ⎯ Ler. (Rê) ⎯ Você gosta de música? (Ra) ⎯ Gosto. (Rê) ⎯ Qual instrumento você gostaria de tocar? (Ra) ⎯ Sanfona. (Rê) ⎯ Qual outro mais? (Ra) ⎯ Violão. (Rê) ⎯ Eu gosto muito de piano. (Ra) ⎯ Você toca piano? (Rê) ⎯ Um pouco. Chegamos ao Laboratório. Peguei uma caixa com cubos. Peguei um cubo e botei na mesa e disse: (Rê) ⎯ Primeiro! Rafael pegou outro cubo, botou perto do meu e disse: (Ra) ⎯ Segundo! Repetindo o procedimento: (Ra) ⎯ Terceiro! Quarto! Quinto! Sexto! Sétimo! Oitavo! ... Pensou um pouco: (Ra) ⎯ Não sei mais. (Rê) ⎯ Qual está na frente do quinto? (Ra) ⎯ O quarto. (Rê) ⎯ E na frente do oitavo? (Ra) ⎯ É o sétimo. (Rê) ⎯ Como você fez pra saber?
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(Ra) ⎯ Fui contando primeiro, segundo, ... assim. (Rê) ⎯ O quinto está no meio de quem? Rafael pensou, contou, pensou de novo: (Ra) ⎯ Do quarto e do sexto. (Rê) ⎯ O que é ficar no meio? (Ra) ⎯ É assim: tem dois cubos
aí você põe um no meio
Fomos para a lousa.
(Rê) ⎯ Tem dois pontos, faça um no meio.
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(Rê) ⎯ Tem um risco, faça um no meio. (Rê) ⎯ O que agente tem no meio do corpo? (Ra) ⎯ Osso. (Rê) ⎯ O que o cachorro tem no meio do corpo? (Ra) ⎯ Não sei. (Rê) ⎯ O que o carro tem no meio? (Ra) ⎯ Motor. (Rê) ⎯ Tenho bastante sabonete. Quantos tenho? (Ra) 10 (escreveu na lousa). (Rê) ⎯ Tenho pouco sabonete. Então, quantos tenho? (Ra) 5 (escreveu na lousa). (Rê) ⎯ No circo tem bastante elefante. Quantos tem? (Ra) 8 (escreveu na lousa). (Rê) ⎯ E poucos? (Ra) 4 (escreveu na lousa). (Rê) ⎯ Ah! eu vi um gato enorme, monstruoso de tão grande. Rafael levantou a mão acima da cabeça e disse: (Ra) ⎯ Assim. Dei uma quantidade de pedaços de papel para arrumar do grande até o bem pequeno. São sete pedaços de papel mantendo a mesma largura e de comprimentos diferentes. Rafael ordenou. Quando dei pedaços de papel variando também a largura não se importou e comparou apenas a altura. Os pedaços de papel tinham a mesma forma.
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Quando variei a forma também, Rafael continuou levando em conta a altura. Ficou assim:
Terminamos porque senti que ele estava cansado.
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17.06.86 Ricardo Fui buscar Ricardo. Ele não estava pronto pois havia esquecido que faríamos a entrevista. Aprontou-se rápido. Chegou no carro e disse (Ri) ⎯ Oi. Eu tinha esquecido. (Rê) ⎯ Você quer ir? (Ri) ⎯ Claro! Eu gosto dessas entrevistas. Entramos no carro e continuamos a conversar enquanto eu dirigia. (Rê) ⎯ Por quê? (Ri) ⎯ Porque é legal. (Rê) ⎯ Legal? (Ri) ⎯ É legal, gostoso. E também gosto de conversar com você e andar no seu carro. (Rê) ⎯ Eu também gosto de conversar com você. (Ri) ⎯ É. Então fica faltando você andar no meu carro. (Rê) ⎯ É. (Ri) ⎯ Mas eu já estou crescendo e quando eu ficar bem grande vou trabalhar, comprar um carro e levo você andar nele. (Rê) ⎯ Eu vou gostar muito. Ficamos em silêncio o resto do percurso. No Laboratório, perguntei: (Rê) ⎯ Quem entra primeiro? (Ri) ⎯ Eu e você em segundo. (Rê) ⎯ E quem entrar depois é o quê? (Ri) ⎯ É o terceiro. (Rê) ⎯ E depois? (Ri) ⎯ É o quarto. (Rê) ⎯ E depois? (Ri) ⎯ É o quinto. Depois não sei mais. Mas acho que não vai entrar tanta gente assim.
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(Rê) ⎯ Onde você aprendeu isso? (Ri) ⎯ Isso de primeiro, segundo? (Rê) ⎯ É. (Ri) ⎯ Nos jogos. Quando tem jogo, um é o primeiro (o que ganha mais) e depois tem o segundo terceiro. (Rê) ⎯ Num jogo quem vem na frente do quinto colocado? (Ri) ⎯ Não sei. (Rê) ⎯ E na frente do segundo colocado? (Ri) ⎯ O campeão. (Rê) ⎯ Quem é o campeão? (Ri) ⎯ É o primeiro lugar. Eu já fui campeão. (Rê) ⎯ De que? (Ri) ⎯ No jogo, ué! (Rê) ⎯ E... (Ri) ⎯ Ah! lembrei. Na frente do quinto vem o quarto. (Rê) ⎯ Como você fez pra saber? (Ri) ⎯ Fui contando: 1º, 2º, ... (Rê) ⎯ O quinto colocado está no meio de quem? (Ri) ⎯ Do quarto e do seis. (Rê) ⎯ O que é ficar no meio? (Ri) ⎯ Não sei. (Rê) ⎯ Tem dois pontos (desenhei no quadro)
Faça um no meio. Ricardo parou e fez.
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(Rê) ⎯ Tem um risco (fiz um no quadro) Faça um no meio. Ricardo fez Perguntei: (Rê) ⎯ O que a gente tem no meio do corpo? (Ri) ⎯ Osso. (Rê) ⎯ O que um cachorro tem no meio do corpo? (Ri) ⎯ Não sei. (Rê) ⎯ O que um carro tem no meio? (Ri) ⎯ Não sei. (Rê) ⎯ Eu tenho um gato enorme, grande, super-grande, você imagina o tamanho dele? (Ri) ⎯ Já vi o que tem de novo (na sala). É uma caixa de bebida. Levantou-se e foi me mostrar. Como não se interessou pela pergunta que eu havia feito não voltei a ela. No quadro haviam palavras escritas: semelhança ângulo lado Eu li para ele. Ricardo disse: (Ri) ⎯ Ângulo eu sei o que é (e desenhou um triângulo no ar). A gente vai brincar com as peças? (Rê) ⎯ Hoje eu gostaria de trabalhar com papel. Pode ser? (Ri) ⎯ Pode.
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Dei a ele uma certa quantidade (sete) de pedaços de papel e pedi para ele arrumar como se fosse um trem. Ricardo fixou-se na altura, uma vez que os pedaços possuiam mesma forma (retangular) e mesma largura. Ordenou do mais comprido ao mais curto, segundo sua fala.
Dei um outro nas mesmas condições e ele achou o lugar onde deveria ficar, por tentativa. Dei uma forma triangular. Ricardo ainda fixou-se na altura. Só que a altura para ele era o meio comprimento do papel triangular,
Dei outro, da forma de um trapézio e Ricardo colocou
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ainda considerando como altura o maior comprimento. Dei outro, e ele ainda observou a altura.
Terminamos por aí porque senti que ele havia se cansado.
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23 07.86 Ricardo
Ricardo estava na sala quando cheguei. Ouviu o barulho do carro e
foi ao meu encontro.
Fomos para a sala do Laboratório na UNESP.
No caminho, Ricardo me contou que havia ganho uma luta na escola.
(Rê) ⎯ Com quem você brigou?
(Ri) ⎯ Eu não briguei. Eu lutei. Com um colega da na outra turma?
(Rê) ⎯ De outra classe?
(Ri) ⎯ É. Mas na turma dele tem gente da minha classe também.
(Rê) ⎯ E por que foi a luta?
(Ri) ⎯ Pra ver quem ganhava. Minha turma sempre luta. Agora estamos
arrumando um plano secreto para ganhar deles.
(Rê) ⎯ Em que turma tem mais gente?
(Ri) ⎯ Na deles. Na minha tem cinco e na deles sete. Acho que hoje a
gente acaba acaba o plano.
(Rê) ⎯ E como é o plano?
(Ri) ⎯ Já te disse: é secreto. Depois de acontecer eu te conto. Mas tem
uma condição – você não pode contar prá ninguém, nem prá mãe.
(Rê) ⎯ Tá bom.
Chegamos à universidade. Entramos na sala e Ricardo olhou para todos os lados com cuidado e me disse:
(Ri) ⎯ Tudo igual. Não tem nada novo.
Peguei uma caixa de blocos coloridos de madeira. Enquanto pegava a caixa perguntei:
(Rê) ⎯ Se eu dividir uma coisa o que vou fazer?
(Ri) ⎯ Cortar ao meio.
(Rê) ⎯ Tem que ser sempre no meio?
(Ri) ⎯ Não. Pode ser mais de dois pedaços.
Peguei oito blocos vermelhos e disse:
(Rê) ⎯ Se vou dividir essa quantidade em três como faço?
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(Ri) ⎯ Pego três (e pegou).
(Rê) ⎯ Já ficou dividido em três?
(Ri) ⎯ Já.
(Rê) ⎯ Agora, me diz uma coisa: se eu tivesse que repartir em três ...
(Ricardo não me deixou continuar e perguntou:)
(Ri) ⎯ Prá quem?
(Rê) ⎯ Bom, prá você, prá mim e faz de conta que o Rafael estivesse
aqui.
(Ri) ⎯ Daí ... daí eu ia dando um para cada um.
(Rê) ⎯ Você pode me mostrar como?
Ricardo distribuiu
depois
ficou com os dois restantes na mão, olhando prá eles e olhando as peças
distribuídas. Depois de um tempo disse:
(Ri) ⎯ Sobram dois.
(Rê) ⎯ E se chegassem mais duas pessoas?
(Ri) ⎯ Junta tudo de novo e reparte.
Pegou os oito blocos e distribuiu
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e ficou com três na mão. Novamente olhava para os blocos. Parecia indeciso.
Perguntei.
(Rê) ⎯ O que você fará com esses que sobraram?
(Ri) ⎯ Nada.
(Rê) ⎯ Por que?
(Ri) ⎯ Porque quando reparte tem de repartir igual.
(Rê) ⎯ Repartir e dividir é a mesma coisa?
(Ri) ⎯ Não ... é ... é sim.
(Rê) ⎯ Você disse primeiro: não.
(Ri) ⎯ Mas depois eu pensei e lembrei que era igual.
(Rê) ⎯ Lembrou?
(Ri) ⎯ É.
(Rê) ⎯ Lembrou de quê?
(Ri) ⎯ Que era igual.
(Rê) ⎯ Da onde você lembrou?
(Ri) ⎯ ...
(Rê) ⎯ Do que você lembrou para saber que era igual?
(Ri) ⎯ De repartir as coisas em casa. Outro dia eu e minhas irmãs
repartimos as balas.
(Rê) ⎯ De repartir as coisas com suas irmãs?
(Ri) ⎯ É.
Dei um papel quadriculado e pedi que ele pintasse quatro vezes dois
“quadradinhos”.
Ele fez:
Aí pedi para pintar três “quadradinhos” duas vezes.
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Agora, disse eu, pinte duas vezes cinco “quadradinhos”.
(Rê) ⎯ Agora pinte cinco “quadradinhos” duas vezes.
E pintou:
quando estava pintando o terceiro quadradinho, disse:
(Ri) ⎯ Ah! Tô começando a entender. É prá pintar cinco quadradinhos
pula um e pinta mais cinco.
E fez
Aí eu pintei quatro vezes três quadradinhos e perguntei a ele o que
eu havia feito.
(Ri) ⎯ Cê pintou três quadradinhos mais três quadradinhos mais três
quadradinhos mais três quadradinhos e pintou doze quadradinhos.
Dei a ele vinte e cinco peças vermelhas e seis brancas, onde cada
branca mede metade da vermelha. Pedi que ele repartisse em quatro grupos.
Ele juntou as trinta e uma peças e distribuiu sem levar em conta a
cor.
145
1ª etapa
2ª etapa
3ª etapa
4ª etapa
5ª etapa
e disse:
(Ri) ⎯ Dá sete para cada um e sobra três.
Terminamos a entrevista porque ele disse:
(Ri) ⎯ Vamos guardar as peças? Quero ir brincar com o meu cachorro.
146
23 07.86 Jayson
Jayson me esperava no portão. Conversamos sobre as férias que
nesse ano estavam parceladas: uma semana agora em julho e duas semanas em
setembro por causa dos jogos abertos.
Dei quatorze botões e pedi que ele separasse a metade.
Conversamos sobre meio e metade e ele me disse que meio é um lugar metade é
uma parte, um pedaço. Assim, nos quatorze botões ele explicou:
ou então,
(Rê) ⎯ Qual é então a metade de quatorze botões?
(Ja) ⎯ Sete botões.
(Rê) ⎯ Como você sabe?
(Ja) ⎯ Porque são sete de cada lado.
(Rê) ⎯ E dividir e repartir é a mesma coisa?
Ele pensou um pouco e disse que sim.
(Rê) ⎯ Como seria dividir doze botões em três?
147
Ele pegou os doze botões e distribuiu
Depois
e disse:
(Ja) ⎯ Dá quatro.
Dei então quinze botões para repartir em cinco. Foi botando de dois
em dois.
Depois acrescentou mais um.
(Ja) ⎯ Três para cada um.
(Rê) ⎯ E se eu cortasse cada botão no meio?
Depois de contar as metades, disse:
(Ja) ⎯ Dava quatro metades para cada um.
(Rê) ⎯ Seria igual a dar dos botões inteiros?
(Ja) ⎯ Se juntasse as metades aí seria quase.
(Rê) ⎯ Por que quase?
(Ja) ⎯ Porque sempre fica um pouco diferente. A cola sempre aparece.
148
Dei um livro.
(Rê) ⎯ Esse livro tem metade?
(Ja) ⎯ Tem.
(Rê) ⎯ Qual?
Ja) ⎯ Se cortar assim
ou assim
(Rê) ⎯ Tem outro jeito?
Pensou um pouco e disse:
(Ja) ⎯ Tem. Assim
(Rê) ⎯ Esse livro tem trezentas e sessenta páginas. Qual a metade.
Ele olhou bem e abriu o livro no que ele considerou o meio, leu o
número da página:
(Ja) ⎯ cento e noventa e quatro.
(Rê) ⎯ É a metade?
(Ja) ⎯ É.
(Rê) ⎯ E uma bolinha de gude, tem meio?
(Ja) ⎯ Claro!
149
(Rê) ⎯ Dá prá dividir na metade?
(Ja) ⎯ Se quebrar dá mas não serve prá nada uma metade só da
bolinha. Não dá prá jogar.
Dei uma folha de papel quadriculado e pedi para ele pintar três
vezes dois quadradinhos. Ele pintou uma metade de um quadradinho, depois outra
metade e depois um quadradinho inteiro. Quando ele acabou eu perguntei o que
havia feito?
(Ja) ⎯ Pintei uma metade, outra metade e um quadradinho. Dá três
vezes não dá?
(Rê) ⎯ E como ficaria duas vezes dois quadradinhos?
Aí ele pintou dois quadradinhos juntos e depois mais dois
quadradinhos juntos.
(Rê) ⎯ E dois quadradinhos três vezes?
Pintou metade de um quadradinho, outra metade e um inteiro.
(Rê) ⎯ Pinte dois quadradinhos.
Ele pintou.
(Rê) ⎯ Agora, outra vez.
Ele pintou.
(Rê) ⎯ Quantas vezes você pintou dois quadradinhos?
(Ja) ⎯ Quatro porque estou contando as duas vezes.
(Rê) ⎯ Pinte um quadradinho.
Ele pintou.
(Rê) ⎯ Outra vez.
Pintou.
(Rê) ⎯ De novo.
Pintou.
(Rê) ⎯ Quantas vezes você pintou um quadradinho?
(Ja) ⎯ Três.
(Rê) ⎯ Pinte então três vezes um quadradinho.
Ele novamente pintou como no início, ou seja, dividiu o quadradinho
em três e pintou cada parte separadamente.
Parei porque ele começou a brincar com o livro e compreendi que
ele havia se cansado disso.
150
Perguntei:
(Rê) ⎯ Quanto é muito dinheiro?
(Ja) ⎯ Dinheiro prá ser muito tem que ser infinito.
(Rê) ⎯ E o que é infinito?
(Ja) ⎯ Que não acaba mais.
(Rê) ⎯ Dinheiro que não acaba mais existe?
(Ja) ⎯ Não, Dinheiro acaba.
(Rê) ⎯ E o que você acha que não acaba mais?
(Ja) ⎯ O mundo.
(Rê) ⎯ E o que é o mundo?
(Ja) ⎯ é tudo. O sol, a terra, as estrelas, a lua, tudo.
(Rê) ⎯ E a Terra?
(Ja) ⎯ Também não acaba.
(Rê) ⎯ Se a gente saísse de Rio Claro e fosse andando ... andando ...
(Ja) ⎯ Nunca teria fim.
(Rê) ⎯ E o que mais não acaba?
(Ja) ⎯ Número. Também é infinito.
(Rê) ⎯ E a gente?
(Ja) ⎯ A gente não, porque a gente vive uns anos e depois morre.
(Rê) ⎯ E árvore?
(Ja) ⎯ Não. Mas água nunca acaba porque tem tanto rio e tanto mar que
nunca acaba.
(Rê) ⎯ E o que mais?
(Ja) ⎯ Não lembro mais nada.
(Rê) ⎯ Ah! e a palavra ACABA tem meio?
(Ja) ⎯ Tem.
(Rê) ⎯ Qual?
E mostrei a palavra
ACABA Ele disse aqui e apontou a letra A.
(Rê) ⎯ E metade?
(Ja) ⎯ Assim:
151
ACABA ou assim ACABA
Dei então por terminada a entrevista.
152
25.07.86 Karina
karina, corno sempre estava arrumadinha, recém-banhada,
esperando que eu fosse buscá-la. Cheguei 10 minutos atrasada e a mãe dela contou
que Karina já estava preocupada, temendo que eu não fosse.
Entrou no carro quieta como sempre e fomos para a universidade.
Perguntei sobre suas brincadeiras e ela disse que gosta mais de brincar de
bicicleta. Propositadamente, havia deixado um livro de estórias no carro. Ela
interessou-se, começou a vê-lo e eu calei-me.
Na sala, ela disse que gostaria de fazer um desenho no quadro.
(Rê) ⎯ Por que não faz?
Ela fez um desenho de uma casa e apagou em seguida.
Perguntei se ela queria continuar desenhando e ela disse que não e
dirigiu-se à mesa onde eu havia colocado uma caixa com blocos de madeira.
Perguntei:
(Rê) ⎯ O que é mio?
(Ka) ⎯ É o que separa nos pedaços.
Dei seis blocos e ela enfileirou. Perguntei:
(Rê) ⎯ Qual é o meio?
E ela mostrou:
E depois separou:
Botei sete blocos. Ela separou e disse:
153
(Ka) ⎯ Mas não é o meio.
(Rê) ⎯ Por que?
(Ka) ⎯ Porque não é igual o pedaço.
Aí ela colocou outro bloco ficando
(Ka) ⎯ Agora é.
Botei então quinze blocos desalinhados. Ela enfileirou.
depois foi botando um bloco de cada lado.
Ao ver que sobrava um ela disse:
(Ka) ⎯ Só se cortasse ao meio.
(Rê) ⎯ como?
(Ka) ⎯ Assim: (e passou como se cortasse o bloco no sentido
154
(Rê) ⎯ Tem outro jeito?
(Ka) ⎯ Não.
Dei suas folhas de papel do mesmo tamanho, uma de sulfite e outra
quadriculada. Pedi para que me mostrasse o meio. Ela com o dedo mostrou.
Na quadriculada ela estimou o meio e preocupou-se em passar o
dedo sobre a linha que ela considerou como sendo meio.
Depois, pedi para que repartisse na metade. Ela pensou durante
pouco mais de um minuto e começou a rasgar a folha mais ou menos no meio, mas
não dobrou a folha ao meio como eu esperava.
Comparou as partes e percebeu que não eram iguais. Mesmo assim
disse:
(Ka) ⎯ Pronto.
(Rê) ⎯ Ficou bem no meio?
(Ka) ⎯ Não.
(Rê) ⎯ Tem um jeito de você fazer ficar no meio?
Escolheu o papel quadriculado e foi rasgando, seguindo uma linha
que considerou a do meio, sem contar, sem medir. Comparou e me entregou?
(Rê) ⎯ Ficou bem no meio?
(Ka) ⎯ Não.
155
(Rê) ⎯ Essa parte (mostrei uma das duas partes) é uma metade?
(Ka) ⎯ Não.
(Rê) ⎯ Por que?
(Ka) ⎯ Porque o rasgo não ficou no meio.
Começamos a conversar sobre muito porque perguntei se ela
dormia muito (ela acabara de bocejar).
(Ka) ⎯ Mais ou menos.
(Rê) ⎯ Para brincar de esconde-esconde, se muitas crianças vão brincar,
quantas são?
(Ka) ⎯ Dez.
(Rê) ⎯ E se forem poucas?
(Ka) ⎯ Cinco.
(Rê) ⎯ E mais ou menos?
(Ka) ⎯ Oito.
(Rê) ⎯ Uma pessoa que tem muitas bicicletas, quantas tem?
(Ka) ⎯ Dez.
(Rê) ⎯ E mais ou menos?
(Ka) ⎯ Oito.
(Rê) ⎯ E poucas?
(Ka) ⎯ Seis.
(Rê) ⎯ Se você tivesse muitos irmãos quantos irmãos teria?
(Ka) ⎯ Dez.
(Rê) ⎯ E poucos?
(Ka) ⎯ Cinco.
(Rê) ⎯ E mais ou menos?
(Ka) ⎯ Sete.
(Rê) ⎯ No sítio que você vai (sítio da avó) tem muitas galinhas?
(Ka) ⎯ Tem bastante.
(Rê) ⎯ Quantas?
(Ka) ⎯ Trinta e três.
(Rê) ⎯ E se tivesse pouca?
(Ka) ⎯ Aí era dez.
156
(Rê) ⎯ E mais ou menos.
(Ka) ⎯ Acho que onze.
Mostrei uma caixa de fósforos cheia de palitos.
(Rê) ⎯ São muitos?
(Ka) ⎯ São.
(Rê) ⎯ Quantos você acha que tem?
(Ka) ⎯ Quarenta e dois (disse mostrando nos dedos, ou seja quatro
vezes as duas mãos mais dois dedos).
(Rê) ⎯ e se fossem poucos?
(Ka) ⎯ Era cinco.
(Rê) ⎯ E mais ou menos?
(Ka) ⎯ Dez.
Dei a ela dezoito blocos e pedi que ela repartisse para nós duas. Ela
distribuiu uma para cada uma até terminar os blocos. Perguntei:
(Rê) ⎯ Quantos para cada uma?
Ela enfileirou assim
os delas
os meus
contou e disse:
(Ka) ⎯ Nove.
Propus que jogássemos o seguinte jogo. Uma de nós colocaria uma
peça no centro da mesa. A outro colocaria um em cima. A outra, colocaria outra em
cima. Quem derrubasse perdia as peças que havia colocado na pilha. Ela
concordou. Perguntei:
(Rê) ⎯ Quem começa?
(Ka) ⎯ Tem que sortear.
(Rê) ⎯ Como?
(Ka) ⎯ Não sei.
157
(Rê) ⎯ Quando precisa sortear nas brincadeiras como você faz?
(Ka) ⎯ No “jóqueipô”.
Ela ganhou no “jóqueipô” e começou. Fomos colocando, quando fui
colocar minha Quarta peça, a pilha desmoronou e ela satisfeita puxou para si todas
as peças. Perguntei:
(Rê) ⎯ Quantas peças você tinha no começo do jogo?
(Ka) ⎯ Nove.
(Rê) ⎯ E agora?
Ela contou quantas peças havia puxado para si e verificou que eram
oito. Contou nos dedos com bastante dificuldade e disse:
(Ka) ⎯ Dezoito.
(Rê) ⎯ Conte todas as suas peças agora.
Ela contou e disse.
(Ka) ⎯ Treze.
Pensou um pouco. Contou de novo e disse.
(Ka) ⎯ Da outra vez acho que não contei direito.
(Rê) ⎯ E?
(Ka) ⎯ São treze.
(Rê) ⎯ Por que? Por que não são dezoito?
(Ka) ⎯ Não sei. Acho que misturei as peças.
Continuamos o jogo que terminou com a vitória de Karina.
Coloquei então sobre a mesa, vinte peças brancas e duas
vermelhas. Cada duas brancas formam uma vermelha.
Pedi a ela que contasse. Ela contou e perguntei se fazia diferença o
tamanho das vermelhas. Ela disse:
(Ka) ⎯ Para contar não.
(Rê) ⎯ Faz diferença para alguma coisa?
(Ka) ⎯ Faz.
(Rê) ⎯ Para que?
(Ka) ⎯ Se for jogar, você tem que ficar com uma vermelha e eu com a
outra.
(Rê) ⎯ Por que?
158
(Ka) ⎯ Para ficar igual.
Karina contou-me que no sítio de sua avó tem um riacho. Perguntei:
(Rê) ⎯ Sua avó tem muitos sítios?
(Ka) ⎯ Não, ela só tem um.
(Rê) ⎯ Uma pessoa que tem cinco sítios, tem muitos ou poucos?
(Ka) ⎯ Muitos.
(Rê) ⎯ E quem tem cinco cadeiras?
Ela pensou um pouco e respondeu:
(Ka) ⎯ Pouco.
(Rê) ⎯ Mas duas têm cinco, não é igual?
(Ka) ⎯ é. Mas sítio não é igual a cadeira.
(Rê) ⎯ Então, explica mais.
(Ka) ⎯ É que depende do que a gente tá falando.
Mostrei uma caixa com cinco divisões. Perguntei qual era a do meio.
Ela me mostrou a terceira. Perguntei:
(Rê) ⎯ Por que essa é a do meio?
(Ka) ⎯ Porque ficou duas de cada lado.
Perguntei sobre o meio da sala e ela apontou uma linha imaginária
no chão. Depois pensou um pouco e disse.
(Ka) ⎯ Não. Aí é só o meio do chão. O meio da sala é (e fez um sinal
com a mão como se fosse um plano, indicando para cima, para baixo e para os
lados).
Pedi que ela ficasse no meio. Ela pensou e disse:
(Ka) ⎯ No chão?
(Rê) ⎯ É.
Colocou-se num ponto que ela considerou o meio. Pedi que ela
fosse para trás, na mesma direção. Ela foi e eu perguntei:
(Rê) ⎯ Você ainda está no meio?
(Ka) ⎯ Tô.
Pedi que ela visse bem para a frente, na mesma direção. Ela veio e
perguntei:
(Rê) ⎯ Ainda está no meio?
159
(Ka) ⎯ Tô.
(Rê) ⎯ Para eu botar uma lâmpada bem no meio, onde eu poria?
Ela indicou com bastante clareza o meio do teto e disse:
(Ka) ⎯ Tem que ter um fio comprido para ficar bem no meio.
(Rê) ⎯ Karina, o que é dividir?
(Ka) ⎯ É cortar ou quebrar. Feito dividir um chocolate com a minha irmã.
(Rê) ⎯ E depois?
(Ka) ⎯ Come.
Dei um papel quadriculado e pedi que ela pintasse dois
quadradinhos (a). Depois pedi que pintasse duas vezes dois quadradinhos (b). Pedi
então que pintasse dois quadradinhos duas vezes (c).
(a)
(b)
(c)
160
28.07.86 Rafael e Ricardo
Combinamos por telefone essa entrevista com os dois para que
pudessem jogar. Resolveram que eu pegaria primeiro o Rafael e depois o Ricardo e
depois na volta, levaria o Rafael e depois o Ricardo. É que um queria conhecer o
lugar onde o outro mora.
Chegamos no laboratório e arrumamos sobre a mesa, um jogo da
memória. O jogo consiste em dezesseis pares de cartelas quadradas onde cada par
possui a mesma figura. As cartelas são colocadas sobre a mesa com as figuras para
baixo e cada jogador levanta duas quaisquer. Se formar o par tira-o da mesa. Ganha
quem conseguir mais pares. Só que nós mudamos algumas regras. E ficou assim:
cada par formado, o jogador ganha dez pontos, cada par não formado perde dois
pontos. Os meninos que escolheram o valor dos pontos e dispuseram as cartelas na
forma matricial 8 x 4. Começou o jogo pelo Rafael que ganhou no “jóqueipô”.
Rafael levantou duas cartelas não formou par e marcou dois no
marcador (figura) que era uma folha com o nome dos dois.
O jogo continuou e o registro dos pontos ganhos ou perdidos foi feito
da seguinte forma pelas crianças:
1ª jogada:
Rafael Ricardo
2 2
161
2ª jogada:
Rafael Ricardo
2 2 2
2
3ª jogada:
Rafael Ricardo
2 2 2 2
2
2
4ª jogada:
Rafael Ricardo
2 2 2 2 2
2
2
2
162
5ª jogada:
Rafael Ricardo
2 2 2 2 2 2
2
2
2
2
6ª jogada:
Rafael Ricardo
2 2 2 2 2 2 2
2
2
2
2
2
7ª jogada:
Rafael Ricardo
2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2 2
2
2
2
2
2
2
163
8ª jogada:
Rafael Ricardo
2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2 2 2 2
2
2
2
2
2
2
9ª jogada:
Rafael Ricardo
2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2 2 2 2 2
2 2
2
2
2
2
2
10ª jogada:
Rafael Ricardo
2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2 2 2 2 2 2
2 2
2
2
2
2
2
164
11ª jogada:
Rafael Ricardo
2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2 2 2
2 2
2 2
2 2
2
2
2
12ª jogada:
Rafael Ricardo
2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2
2/ 2
2/ 2
2/ 2
2/
2/
2
13ª jogada:
Rafael Ricardo
2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2 2/ 2/
2/ 2/
2/ 2/
2/ 2
2/
2/
2/
165
14ª jogada:
Rafael Ricardo
2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 8 2/ 2/
2/ 2/
2/ 2/
2/ 2/
2/ 8
2/
2/
15ª jogada:
Rafael Ricardo
2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 8/ 18 2/ 2/
2/ 2/
2/ 2/
2/ 2/
2/ 8/
2/ 18
2/
16ª jogada:
Rafael Ricardo
2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 8/ 18
2/ 2/
28 2/ 2/
2/ 2/
2/ 2/
2/ 8/
2/ 18
2/
166
17ª jogada:
Rafael Ricardo
2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 2/ 8/ 18
2/ 2/
28
38 2/ 2/
2/ 2/
2/ 2/
2/ 8/
2/ 18
2/
Pararam de jogar porque chegou a hora que as mães pediram para
que eles voltassem. Perguntei:
(Rê) ⎯ Quem ganhou?
(Ri) ⎯ Ninguém por que não acabou o jogo.
(Ra) ⎯ é, mas por enquanto eu estou ganhando, né?
(Ri) ⎯ É.
Guardaram as peças e fomos embora.
167
08.08.86 Karina
Hoje fiquei sentado no carro, na frente à casa de Karina.
Conversamos sobre quantas folhas tem uma seringueira que está na esquina da sua
casa e o quanto de folhas cai no chão. Percebemos que caem muitas folhas e que
elas vão se acumulando. Fui perguntando sobre muito, pouco e mais ou menos,
sempre colocando as perguntas num contexto da conversa. Resultou a seguinte
tabela:
coisa muito mais ou menos pouco
balas que a gente compra 12 5 3
pintinhos de cada galinha 15 10 4
pilhas de tijolos (referente aos tijolos) 18 6 5
blusas que a gente tem 8 10 5
bonecas que a gente tem 8 10 5
carros que a gente tem (brinquedos) 9 10 6
folhas de árvore que caem 15 10 5
anéis para usar 11 7 3
Perguntei:
(Rê) ⎯ Muito é mais do que pouco?
(Ka) ⎯ Claro!
(Rê) ⎯ E pouco é mais do que mais ou menos?
(Ka) ⎯ As vezes.
(Rê) ⎯ Como assim?
(Ka) ⎯ Não sei.
Terminei a entrevista uma vez que ela perguntou se eu podia ler o
livro de estória que estava no carro. Li e aí deu sua hora de almoço.
168