[Livro UFSC] Estudos Linguisticos II

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Estudos Linguísticos II Adriana Kuerten Dellagnelo Rosana Denise Koerich (in memoriam) Mary Elizabeth Cerutti-Rizzatti Maria José Damiani Costa Vera de Aquino Vieira Florianópolis, 2009. Período

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Estudos Linguisticos II

Transcript of [Livro UFSC] Estudos Linguisticos II

  • Estudos Lingusticos IIAdriana Kuerten Dellagnelo

    Rosana Denise Koerich (in memoriam)Mary Elizabeth Cerutti-Rizzatti

    Maria Jos Damiani CostaVera de Aquino Vieira

    Florianpolis, 2009.

    3 Perodo

  • Governo Federal

    Presidente da Repblica: Luiz Incio Lula da SilvaMinistro de Educao: Fernando HaddadSecretrio de Ensino a Distncia: Carlos Eduardo BielschowkyCoordenador Nacional da Universidade Aberta do Brasil: Celso Costa

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    Curso de Licenciatura em Letras-Espanhol na Modalidade a Distncia

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    Projeto Grfico

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  • Comisso Editorial

    Adriana Kerten DellagnelloMaria Jos Damiani CostaMeta Elisabeth ZipserRosana Denise Koerich (in memoriam)Vera Regina de Aquino Vieira

    Equipe de Desenvolvimento de Materiais

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    Copyright@2009, Universidade Federal de Santa CatarinaNenhuma parte deste material poder ser reproduzida, transmitida e gravada sem a prvia autorizao, por escrito, da Universidade Federal de Santa Catarina.

    Ficha catalogrfica

    Catalogao na fonte elaborada na DECTI da Biblioteca Universitria da Universidade Federal de Santa Catarina.

    E82

    Estudos lingsticos II/ Adriana Kuerten Dellagnelo... [et al]. Florianpolis : LLE/CCE/UFSC, 2009.

    92 p.ISBN 978-85-61483-13-5

    1. Estudos lingsticos. 2. Macrolingstica. 3. Disciplinas. I.

    Dellagnelo, Adriana de Carvalho Kerten. II. Ttulo.

    CDU: 801

  • Este livro dedicado Rosana Denise Koerich.

  • Sumrio

    Apresentao .......................................................................9

    1 Sociolingustica: Novas Reflexes .................................131.1 Sociolingustica: consideraes iniciais.......................................141.2 Norma padro e norma culta: em busca de

    um refinamento conceitual. ...........................................................151.3 Uma breve discusso sobre polticas lingusticas

    e estrangeirismos ..............................................................................191.4 Contnuos de variao lingustica .................................................211.5 Uma tentativa de sntese ..................................................................24Referncias .................................................................................................. 25

    2 Psicolingustica: Uma Viso Introdutria Acerca de Objeto de Estudo, Mtodo e Modelos Tericos ............272.1 Psicolingustica: origens, objeto de estudo e

    mtodo de investigao. .................................................................272.2 Modelos tericos em Psicolingustica ..........................................302.3 O processo de aquisio e desenvolvimento

    da linguagem oral ..............................................................................352.4 O processo de apropriao/aprendizado/aquisio

    da escrita ...............................................................................................38Consideraes finais do Captulo .........................................................39Referncias ................................................................................................. 40

    3 Lingustica Textual: Uma Viso Panormica ...............433.1 Introduo .............................................................................................433.2 Origem e o contexto mundial da Lingustica Textual ............433.3 O reflexo da Lingustica Textual no Brasil ...................................473.4 Princpios de construo textual: coeso e coerncia. ..........503.5 O re-dimensionamento do objeto de estudo da

    Lingustica Aplicada: o texto. .........................................................543.6 Gnero textual ou discursivo como prticas

    scio-histricas ..................................................................................57Referncias .................................................................................................. 62

  • 4 Pragmtica: Uma Breve Introduo .............................634.1 A Pragmtica ........................................................................................644.2 Significado do falante ........................................................................654.3 Significado contextual .......................................................................664.4 Contexto .................................................................................................684.5 Mas o que pragmtica, afinal? ....................................................684.6 Conceituando pragmtica ...............................................................714.7 A teoria dos atos de fala ..................................................................724.8 O significado intencional .................................................................744.9 O modelo de Grice: as mximas conversacionais. ...................754.10 A teoria da relevncia ......................................................................76Consideraes Finais .................................................................................78Ler Mais: ....................................................................................................... 78Referncias .................................................................................................. 79

    5 Anlise do discurso: Uma viso introdutria .............81Introduo ....................................................................................................815.1 Definindo discurso ..............................................................................815.2 Origens da Anlise do Discurso .....................................................825.3 A Anlise Crtica do Discurso ..........................................................845.4 Uma tentativa de sntese ..................................................................89Referncias .................................................................................................. 91

  • Apresentao

    Caro(a) aluno(a):

    Este livro-texto corresponde disciplina de Estudos Lingusticos II, cuja

    ementa focaliza discusses acerca do objeto de estudo e dos eixos terico-

    metodolgicos das seguintes disciplinas: Sociolingustica, Psicolingustica,

    Lingustica Textual, Pragmtica e Anlise do Discurso. Trata-se da tematiza-

    o de algumas das reas do todo que Weedwood (2002) chama de macro-

    lingustica, em oposio microlinguststica.

    A microlingustica, como j estudamos em disciplina anterior, corresponde a

    uma viso mais restrita da lngua, ocupando-se com nveis de anlise como

    fontica, fonologia, sintaxe, morfologia, lexicologia e semntica. A macro-

    lingustica, por sua vez, traduz uma viso ampliada do escopo da lingusti-ca, ocupando-se com disciplinas de estudo, entre as quais aquelas que constituem foco deste livro-texto, mencionadas no pargrafo anterior.

    Uma abordagem macrolingustica, diferentemente de uma abordagem mi-

    crolingustica, estuda os fenmenos da lngua em referncia funo so-

    cial dessa mesma lngua e sua aquisio por parte das crianas, dimenso

    psicolgica subjacente aos processos de produo e compreenso da fala

    entre outros focos (WEEDWOOD, 2002). dessa abordagem ampliada que

    nos ocuparemos neste livro-texto.

    Com relao Sociolingustica, voc seguramente j domina alguns conceitos

    bsicos, dado que tratamos dessa disciplina nas discusses de Introduo aos

    Estudos da Linguagem. Assim, vamos proceder, aqui, retomada do objeto e

    dos eixos tericos sobre os quais se sustentam tais estudos, ampliando a dis-

    cusso. Aprofundaremos nossa reflexo sobre o conceito de norma padro,

    distinguindo-o do conceito de norma culta e estabelecendo uma interface

    com uma breve reflexo sobre polticas lingusticas e estrangeirismos. Tpico

    final de estudo sero particularidades do fenmeno de variao lingustica

    atinentes aos contnuos de variao propostos por Bortoni-Ricardo (2004).

    Em se tratando de Psicolingustica, estaro implicadas discusses acerca do

    objeto de estudo dessa disciplina e da metodologia de abordagem dos fe-

  • nmenos a ela relacionados, tanto quanto consideraes sobre modelos

    terico-epistemolgicos em que se fundamentam as pesquisas nesse cam-

    po. O processo de aquisio e desenvolvimento de linguagem item impor-

    tante nos estudos psicolingusticos e ser aqui tematizado, assim como dis-

    cusses sobre aprendizado da lngua escrita e letramento. Trata-se de uma

    abordagem introdutria cujo objetivo apresentar a voc essa disciplina e

    suas tantas possibilidades de estudo e pesquisa.

    A Lingustica Textual, outra disciplina que compe a ementa-base deste li-

    vro-texto, em nosso entendimento, passa por um momento de transio.

    O ponto alto dos estudos nessa rea situa-se na dcada de 1980, ocasio

    em que nomes como M. Charolles e R. Beaugrande contriburam significati-

    vamente para a ruptura com uma lingustica da frase, introduzindo o texto

    como objeto de estudo. No Brasil, pesquisadores como I.G.V. Koch e L. A.

    Marcuschi produziram estudos que marcaram expressiva mudana nas for-

    mas de abordagem textual em todo o pas. Atualmente, a Lingustica Textual

    parece oscilar para duas importantes reas: os estudos de gnero, com base

    em Bakhtin e/ou os estudos das cincias cognitivas. Discutir essas questes,

    em especial a origem da Lingustica Textual, sua representao no exterior

    e no Brasil, sua proposta de texto como objeto de estudo, os princpios de

    construo textual do sentido e os gneros textuais com base em Bakhtin,

    so nosso objetivo em se tratando dessa disciplina em particular.

    A Pragmtica, tida por alguns como um dos nveis de anlise da Lingustica,

    assumida por ns, com base em Weedwood (2002), como uma disciplina

    de estudo, parte da macrolingustica e no da microlingustica. Nesse cam-

    po, importam reflexes sobre as distines e interfaces entre a Semntica e

    a Pragmtica, tanto quanto entre a Pragmtica e a(s) Anlise(s) do Discurso.

    Entendemos relevante tratar dos diferentes momentos dos estudos prag-

    mticos, a exemplo dos smbolos indiciais, da bipolaridade sentido literal X

    sentido comunicado e, finalmente, da teoria dos atos de fala. Nomes como

    Austin, Searle e H.P. Grice parecem fundamentais nessa discusso.

    Finalmente, cabe-nos tratar da Anlise do Discurso, uma rea com vrias filia-

    es tericas. Optamos por traar um breve panorama acerca do seu surgi-

    mento e das correntes de pensamento com maior expressividade e reper-

    cusso no campo da Lingustica. Assim, fazemos referncia a abordagens

  • no-crticas, dentre as quais citamos estudos em anlise da conversao e

    o trabalho de Sinclair e Coulthard (1975) acerca do desenvolvimento do dis-

    curso de sala de aula; e abordagens crticas, aludindo a Anlise do Discurso

    de filiao francesa, conhecida como AD francesa e ancorada nos estudos

    de M. Pcheux; e debruando-nos sobre a Anlise Crtica do Discurso, de

    filiao inglesa, ancorada nos estudos de Fairclough e, em grande medida,

    na Lingustica Sistmico-Funcional de base hallidayana. Nosso propsito

    delinear um traado que permita a voc compreender que os estudos nes-

    sa disciplina podem ganhar conotaes diferentes dependendo da escola

    a que estejam filiados, tanto quanto oferecer uma viso mais ampla de, ao

    menos, uma dessas abordagens.

    Com tais contedos, esperamos apresentar a voc algumas das principais

    reas da macrolingustica. Como se trata de uma discusso breve, neces-

    sariamente muitos tpicos tero tratamento apenas pontual, convidando

    voc a aprofundar-se nas temticas medida que se identificar com elas

    ou a partir das necessidades que lhe forem impostas pelo andamento do

    curso. Esse processo de estudo ficar facilitado porque, na plataforma vir-

    tual, indicaremos obras que podero contribuir para tal aprofundamento.

    Desejamos, assim, a voc um percurso enriquecedor por esta disciplina.

    Adriana Kuerten Dellagnelo Rosana Denise Koerich (in memoriam)

  • Sociolingustica: Novas Reflexes

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    Captulo 01

    Sociolingustica: Novas Reflexes

    Adriana Kuerten Dellagnelo

    Rosana Denise Koerich (in memoriam)

    A Sociolingustica j foi objeto de discusso em nosso curso, na disciplina Introduo aos estudos da Linguagem, ocasio em que to-picalizamos fenmenos como variao e preconceito lingusticos, dis-tines entre gramtica normativa e Lingustica como cincia, noes preliminares de norma padro e implicaes escolares desses fenme-nos em seus diferentes recortes. Assim, sugerimos a voc que, antes de iniciar a leitura deste captulo, retome o captulo 1, da Unidade B, no livro-texto daquela disciplina e resgate esse conjunto conceitual do qual, seguramente, voc j se apropriou.

    Nesta nova etapa, vamos aprofundar reflexes sobre norma padro, a partir de estudos de Faraco (2008), distinguindo-a, de norma culta, de modo a dar maior preciso a esses conceitos. Trataremos, tambm, de polticas lingusticas, com base em Calvet (2002), incluindo uma discus-so sobre a questo dos estrangeirismos no Brasil, valendo-nos de Gar-cez e Zilles (2004) e, finalmente, registraremos noes sobre contnuos de variao lingustica, luz de teorizaes de Bortoni-Ricardo (2004), na tentativa de compor um conjunto de questes adicionais quelas so-bre as quais j refletimos em disciplina anterior.

    Esperamos, com esses novos temas, contribuir para que voc cons-trua um aparato terico mnimo acerca das questes mais intensamente discutidas no plano dos estudos sociolingusticos. Trata-se de um cam-po frtil, que repercute no dia-a-dia dos usurios de uma lngua e que, de um modo ou de outro, suscita reflexes tericas e empricas nos dife-rentes idiomas; afinal, onde h seres humanos em interao verbal oral e/ou escrita, haver os dois eixos fundamentais sobre o qual se erige a Sociolingustica como disciplina: uma lngua e uma sociedade.

    1

  • Estudos Lingusticos II

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    1.1 Sociolingustica: consideraes iniciais

    Segundo Calvet (2002), o ano de 1964 marcou o nascimento da So-ciolingustica. Nos dias 11 a 13 de maio daquele ano, 25 pesquisadores se reuniram em Los Angeles EUA, em conferncia sobre esse ramo do conhecimento, dentre eles, nomes, hoje clebres, como William Labov, Dell Hymes e John Gumperz. Na sntese desse evento, feita por William Bright, guisa de definio do que seria a nova disciplina, consta que se trataria de um campo de estudos referentes s relaes entre linguagem e sociedade. Bright (apud CALVET, 2002) escreve que uma das maio-res tarefas da Sociolingustica seria mostrar que a variao no livre, mas correlata s diferenas sociais sistemticas. Como consequncia da emerso desses estudos, a dcada de 1970, prossegue Calvet (2002), trouxe consigo uma ecloso de pesquisas e publicaes na rea, em fla-grante luta, segundo o autor, por uma concepo social da lngua, dife-rentemente de como a viam os tericos formalistas at ento.

    Em relao a definies para essa disciplina, autores, ao longo dos mais de quarenta anos de estudos na rea, tm conceituado a Sociolin-gustica em relao Lingustica uma disciplina, parte da macroestru-tura de uma cincia. Sobre isso, escreve Calvet (2002, p. 161):

    Ora, o inverso que se deve fazer. Se se leva a srio a afirmao, muito

    amplamente aceita, de que a lngua um fato (ou um produto) social,

    ento a lingustica s pode ser definida como o estudo da comunida-de social em seu aspecto lingustico. E, por sua vez, a sociolingustica s pode ser definida como a lingustica. [...] bem difcil manejar os termos

    sociolingustica e lingustica quando se pensa que o primeiro engloba o segundo. (Grifos do autor)

    Como podemos observar, Calvet (2002), a exemplo do que fez Labov e do que defendem outros tantos estudiosos desse campo, entende que a Lingustica, necessariamente, traz consigo uma dimenso social, da por que o prprio termo Sociolingustica no teria razo de ser, dado que os es-tudos da lngua seriam necessariamente estudos da lngua em sociedade.

    Trata-se de uma questo polmica que, em nosso entendimento, deixa visvel a contraposio desse tipo de pensamento aos eixos dos

    A propsito dessa conceituao, retomar diagrama de Weedwood (2002), na pgina 66 do livro-texto da disciplina Introduo aos estudos da linguagem.

  • Sociolingustica: Novas Reflexes

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    Captulo 01

    estudos formalistas, aos quais j nos referimos em disciplinas anteriores. As vertentes saussuriana e chomskyana, por exemplo, no focalizam a lngua sob a perspectiva de seus usos em sociedade teramos, para es-sas vertentes formalistas, uma Lingustica que no estaria contemplada no mbito de uma Sociolingustica.

    Se, enfim, a Lingustica h de ter, em sua imanncia como cincia, dimenso social, essa uma questo cuja resposta depende do lugar terico em que se inscreva o sujeito. Um estudioso funcionalista que se contraponha ao formalismo tender a conceber os estudos lingusticos como naturalmente erigidos sob uma perspectiva social. No podemos, porm, dizer o mesmo sobre um estudioso de filiao formalista. Para os saussurianos, por exemplo, o adjetivo social refere-se ao pluriindividual e no ao interacional.

    Feita essa breve incurso sobre a origem da Sociolingustica, pas-semos, em seguida, a uma tentativa de refinamento dos conceitos de norma padro e norma culta, com base em Faraco (2008).

    1.2 Norma padro e norma culta: em busca de um refinamento conceitual.

    Na disciplina Introduo aos estudos da linguagem, registramos que a norma padro corresponde a um tipo especfico de fala, privilegiado historicamente em razo do status socioeconmico e educacional dos usurios dessa mesma fala. Tal modo de falar escolhido como padro seria o que chamamos de norma culta, ou seja, a fala urbana dos usu-rios da lngua que so escolarizados.

    Estudos de Faraco (2008) permitem-nos, hoje, refinar essa discusso, esclarecendo esses dois conceitos que tm tido sobreposio nas reflexes acadmicas: norma padro e norma culta. O autor procede a uma interessante anlise sobre a apropriao desses conceitos e a amplitude de cada um deles. Agora, estando voc em etapas mais avanadas do curso, entendemos como pertinente aprofundar o estudo dessas distines.

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    No Brasil, acostumamo-nos a conceber esses dois conceitos como sinnimos. Em nossa disciplina anterior, optamos pelo uso de norma padro porque entendemos, de h muito, que adjetivar uma determina-da forma de falar como culta implicaria estar desqualificando da condi-o de cultos os falares diferentes dessa norma, e acreditamos no haver comunidades destitudas de cultura. No seria possvel, pois, tomar como culto o falar das elites escolarizadas e como no-cultos os falares dos usurios da lngua de menor nvel de letramento.

    Nossas consideraes vo ao encontro do que Faraco (2008, p. 56) registra sobre tal adjetivao:

    O qualificativo culta [...] tomado em sentido absoluto, pode sugerir que essa norma se ope a normas incultas, que seriam faladas por grupos

    desprovidos de cultura. Tal perspectiva est muitas vezes presente no

    universo axiolgico dos falantes da norma culta, como fica evidenciado

    pelos julgamentos que costumam fazer dos falantes de outras normas,

    dizendo que estes no sabem falar, falam mal, falam errado, so in-

    cultos, so ignorantes etc.

    E prossegue o autor: [...] no h grupo humano sem cultura, como bem demonstram os estudos antropolgicos. Por isso preciso traba-lhar criticamente o sentido do qualificativo culta [...] ele diz respeito especificamente [...] cultura escrita. (p. 56) Para o autor, norma culta deve ser entendida como designando a norma lingustica que pratica-da pelos grupos sociais de maiores nveis de letramento, em sua opinio, minimamente aqueles formados no ensino mdio.

    No , porm, apenas o qualificativo culta que Faraco (2008) ques-tiona. Suas reflexes transcendem o uso do adjetivo para distinguir norma padro de norma culta, ou seja, no se trata de duas expresses sinnimas como propem muitos estudiosos. Segundo ele, a norma pa-dro um construto scio-histrico que serve de base para o processo de uniformizao lingustica, o qual visa atenuar a diversidade regional, sobremodo na escrita.

    Trata-se de uma codificao relativamente abstrata porque se ba-seia em um determinado tipo de falar, mas o faz para servir a projetos polticos de uniformizao lingustica. Assim, norma padro no um

    O autor, em lugar de culta, prope a posposio de nor-

    ma culta/comum/standard.

  • Sociolingustica: Novas Reflexes

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    Captulo 01

    tipo de falar, mas uma tentativa artificial de uniformizao dos falares de uma lngua, a qual privilegia o falar de um determinado grupo social, mas no idntica a ele. Expliquemos isso melhor.

    Tenhamos presente que a norma padro a forma de falar e escre-ver normatizada nos manuais de gramtica e nos dicionrios de lngua. Parece visvel, como aponta Faraco (2008), que essa norma, dada sua natureza esttica, tem se distanciado, progressivamente, do modo de fa-lar das elites escolarizadas, se que foi efetivamente prxima dele um dia. H vrios exemplos disso no uso das lnguas. No caso do portugus, podemos apontar os seguintes: (a) a colocao dos pronomes oblquos tonos, como na forma dir-se-ia, prevista nos manuais de gramtica, mas inexistente no uso efetivo da lngua por falantes escolarizados; (b) a regncia de alguns verbos, como em assistir ao filme e obedecer ao regimento, formas em que os usurios escolarizados tendem a omitir a preposio a; e (c) a concordncia em casos de voz passiva, como em alugam-se casas, uma estrutura em que tais usurios normalmente man-tm o verbo no singular, entre muitos outros casos. No espanhol, segu-ramente, o fenmeno no diferente.

    Como parece evidente, a norma padro, ao contrrio do que sua prpria lgica prev, no corresponde com exatido forma de falar das elites escolarizadas. Isso, porque, segundo Faraco (2008), no Brasil, a partir da segunda metade do sculo XIX, a norma padro foi cons-truda de forma artificial porque no tomou, de fato, como base, a fala de tais elites escolarizadas, mas um modelo de escrita do portugus de Portugal. Por trs dessa atitude, segundo o autor, estaria o desejo de viver em um pas branco e europeu, denegando a condio multirracial da populao brasileira.

    Essa reflexo relevante, aqui, por uma razo, alis, registrada pelo autor. O objetivo da norma padro assegurar uma relativa uniformi-dade no uso da lngua em um determinado territrio, isso por finali-dades polticas, de unidade nacional. Para tanto, essa norma, em tese, deve ser construda com base na fala das elites urbanas escolarizadas. Se isso verdadeiro, preciso que tal norma traduza de fato como essas elites falam, ao invs de manter regras em desuso e no mais verificveis no falar dessas elites. Tomemos como exemplo disso prescries como

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    a impossibilidade de contrao da preposio com o artigo em casos como A necessidade do povo agir/ A necessidade de o povo agir, estrutura em franco desuso dentre as elites escolarizadas.

    Assim, seria fundamental que, a exemplo do que tm feito alguns dicionaristas e alguns gramticos de formao na rea da filologia, hou-vesse bom senso por parte dos normativistas de modo geral para atua-lizar as normas que eles preconizam como usos corretos da lngua. Tal atualizao poderia contribuir para a diminuio do fosso que hoje se verifica entre o falar da populao, mesmo da populao de maior nvel de letramento, e a prescrio normativa da norma padro.

    Alguns tericos, a exemplo de Signorini (2004), no entanto, so mais radicais e entendem que deveria haver uma desregulamentao lingustica. Escreve a autora:

    Ao invs [...] da referncia ao construto lngua nacional ou lngua ma-

    terna, como uma objetivao do que nos usos se acredita (ou se proje-

    ta) ser comum e compartilhado por uma comunidade/um povo/uma

    nao, interessa-nos a referncia multiplicidade das prticas de uso

    da lngua e o que nelas se constri como comum e no comum, com-

    patvel ou antagnico, legtimo ou no legtimo, possvel e inaceitvel

    etc. Dessa forma, ao invs da referncia a um padro, lngua franca ou

    norma culta, contrapondo-se a uma no-padro [...] interessa-nos a no-

    o de ordem lingustica como configurao sempre transitria do que,

    no jogo sociocomunicativo e tambm poltico-ideolgico das relaes

    sociais, se constri como diviso, borda ou fronteira nos usos da lngua.

    (p.93 e 94)

    A autora evoca a figura de uma tapearia, referindo os diferentes fa-lares, ou seja, uma composio, que constitui um todo porque as partes so solidrias entre si; o todo do tapete, no entanto, no torna uniformes as partes; da distino entre elas que se faz a harmonia da pea intei-ra. Assim, a autora questiona a relevncia da dicotomia norma padro X outros falares. Trata-se, como voc pode ver, de uma questo muito instigante, que remete a discusses de poder, de ideologia, de polticas lingusticas, do que trataremos na prxima seo.

    Bons exemplos so o Dicio-nrio Houaiss e manuais de gramtica como o de Celso Cunha e Lindley Cintra.

  • Sociolingustica: Novas Reflexes

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    Captulo 01

    1.3 Uma breve discusso sobre polticas lingusticas e estrangeirismos

    Importa reiterar, neste incio de seo, que uma norma padro em uma lngua parece se justificar por questes que no so apenas lin-gusticas, mas de natureza poltica, a exemplo da unidade nacional, to cara a gestores de modo geral e a posturas nacionalistas. Faraco (2008) pergunta se necessrio haver uma norma padro e entende que a res-posta deva passar pela seguinte reflexo: A natural diversidade lingus-tica nacional est pondo em risco a relativa unidade da lngua culta? Sua resposta negativa. Diferentemente de outras naes em que h comunidades de fala que no se compreendem mutuamente, no Brasil, a expanso dos meios de comunicao e a ampliao do acesso esco-laridade favorecem a manuteno de uma relativa unidade na forma de falar urbana dos usurios escolarizados. Logo, por que no deixar prpria norma culta que se auto-regule?

    notria, porm, a existncia de preocupaes de natureza poltica com o andamento da lngua em um pas. Segundo Calvet (2002), as polticas lingusticas incidem sobre um idioma por razes de moderni-zao, depurao ou defesa. Como exemplo de modernizao, o autor cita a reforma na escrita chinesa feita pelo governo comunista em me-ados do sculo passado, simplificando 515 de um conjunto de milhares de caracteres que constituem aquele cdigo escrito. A simplificao re-duziu o nmero de traos e favoreceu o aprendizado e a memorizao, como mostra o exemplo a seguir (CALVET, 2002, p. 150):

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    A iniciativa chinesa trouxe consigo uma disposio de facilitao do aprendizado de to complexo sistema escrito, o que uma questo poltica porque implica maior socializao desse conhecimento. O pro-cesso constituiu, pois, uma interveno intencional, motivada por uma postura poltica.

    Em se tratando, ainda, de polticas em defesa da lngua, bom exemplo a tentativa do parlamento brasileiro de incidir sobre emprsti-mos, por meio de projetos de lei antiestrangeirismos, especialmente do Projeto de Lei 1676/1999, de autoria do Deputado Federal Aldo Rebelo. Tal projeto se arvora proteger e defender a lngua portuguesa, coibindo e multando o uso abusivo de estrangeirismos, especialmente anglicismos palavras que tm origem na lngua inglesa , sob o argumento de que seriam incompreensveis para boa parte da populao.

    Trata-se de um instrumento legal amplamente criticado por socio-linguistas renomados do Brasil inteiro, sustentados por vrios contra-argumentos. O principal deles possivelmente seja o fato de que uma ln-gua se constitui eminentemente de emprstimos, que so incorporados ao idioma ao longo de sua histria; ou seja, no h origens puristas no lxico de uma lngua, o que se verifica o desconhecimento de grande parte da populao acerca da origem dos termos que hoje so tomados como parte do vocabulrio do portugus ou de qualquer outro idioma.

    Outro contra-argumento poderoso a inexistncia de unidade lingustica em um pas, o que j estudamos anteriormente, a partir do fenmeno da variao lingustica; isso, alm do fato de as lnguas mu-darem constantemente, incorporando ou excluindo emprstimos, inde-pendentemente de suas origens. Tais emprstimos, como mostram os linguistas, tm, na maioria das vezes, razes de natureza socioeconmi-ca, poltica e cultural e no meramente razes lingusticas; ou seja, trata-se de relaes sociais mais amplas sobre as quais a legislao no pode incidir. No -toa que os termos que tm origem no ingls prevalecem dentre as mais recentes incorporaes lexicais ao portugus; afinal, no desconhecida a influncia dos Estados Unidos no mundo moderno.

    Quanto argumentao do Deputado sobre a dificuldade de com-preenso de determinados estratos da populao em se tratando de

  • Sociolingustica: Novas Reflexes

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    Captulo 01

    anglicismos, sociolinguistas justificam que tais estratos no compre-endem, tambm, boa parte dos textos legais que no contm tais es-trangeirismos, sem mencionar a no-compreenso de inmeros outros textos com os quais tm contato. Assim, a soluo possivelmente esteja na expanso da escolarizao de qualidade e no na proibio do uso de anglicismos, uma medida incua.

    H casos, porm, em que os movimentos de defesa da lngua ga-nham contornos mais significativos e, sob vrios aspectos, justificam-se, a exemplo do empenho dos galegos, moradores da regio da Galcia Espanha , para muitos dos quais a manuteno e a defesa do direito de falar portugus e de sentir-se parte da comunidade lusfona uma maneira de resistir ao domnio espanhol, que lhes d independncia histrica, mas no independncia poltica, coibindo veladamente sua identidade cultural. Dessa forma, a Academia de Letras da Galcia em-penha-se por normatizar usos da lngua, objetivando resgatar ou man-ter a identidade cultural lusfona, o que, em grande medida, parece uma ao legtima de defesa, no s da lngua, mas das origens de toda uma populao.

    Tendo discutido essas questes, parece interessante que reflitamos um pouco mais sobre mobilidades verificveis no uso de uma lngua a partir da ancoragem social desse uso. Para tanto, legtimo evocarmos o conceito de contnuo proposto por Bortoni-Ricardo (2004), tema da prxima seo.

    1.4 Contnuos de variao lingustica

    Muito temos discutido sobre o fenmeno da variao lingustica. Bortoni-Ricardo (2004) prope um construto terico que, sob vrios aspectos, inova essa discusso, contribuindo para que compreendamos melhor a forma como os usurios da lngua se comportam e se movem em espectros lingusticos distintos.

    A autora refere trs contnuos: contnuo da urbanizao; contnuo da oralidade-letramento; contnuo da monitorao estilstica. Antes de discutirmos em que consiste cada contnuo, entendamos o que significa

  • Estudos Lingusticos II

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    esse conceito que, para a autora, constitui uma linha imaginria com dois extremos definidos. Contnuo vem do latim continuum e, segundo o dicionrio Houaiss (2001, p. 818) diz respeito a

    [...] uma srie longa de elementos numa determinada sequncia, em

    que cada um difere minimamente do elemento subsequente, da resul-

    tando diferenas acentuadas entre os elementos iniciais e finais da se-

    quncia (o bem e o mal so dois extremos de um mesmo continuum),

    Com relao ao contnuo da urbanizao, em uma das extremidades estariam situados falares rurais mais isolados e, na outra extremidade, estariam falares urbanos [...] que, ao longo do processo scio-histrico, foram sofrendo influncia de codificao lingustica [...] de dicionrios e gramticas. (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 51). Segundo a autora, o desenho do contnuo deve-se ao fato de os falares rurais ficarem, de algum modo, mais isolados, em razo, por exemplo, de dificuldades geogrficas, como montanhas, rios, distncias de centros urbanos, ou seja, teriam permanecido distantes das influncias sofridas pelas comu-nidades urbanas, mais sistematicamente expostas ao marcante da imprensa e s influncias da escola.

    A autora (p. 52) representa assim este contnuo:

    variedadesrurais isoladas

    variedadesurbanaspadronizadas

    reaurbana

    Poderamos questionar essa proposta com base na globalizao, mas parece evidente que, a despeito dela, o grafocentrismo, ou seja, a centralizao maior ou menor na escrita, difere da realidade urbana para a rural, e a escrita tem influncia expressiva sobre a forma de falar dos usurios da lngua. Do mesmo modo, a exposio mdia, parece mais variada e mais intensa na realidade urbana. Assim, os falantes de reas urbanas estariam, em tese, mais expostos s influncias da norma pa-dro, colocando-se em extremo oposto, no contnuo, em relao aos fala-res rurais. No centro do contnuo, haveria uma rea chamada urbana.

  • Sociolingustica: Novas Reflexes

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    Captulo 01

    A relevncia da proposta da autora seguramente est no espectro que a noo de contnuo cria, sugerindo uma mobilidade maior ou me-nor em direo a ambos os extremos e no dicotomizando duas realida-des opostas; ao contrrio, estabelecendo uma interface entre elas.

    Quanto ao contnuo da oralidade-letramento, valem as mesmas ob-servaes, s que, neste caso, o critrio para categorizar os falares ao longo da linha imaginria o maior ou menor domnio da lngua escri-ta. Bortoni-Ricardo (2004, p.62) representa assim esse contnuo:

    eventos deoralidade

    eventos deletramento

    Segundo a autora, no h fronteiras bem marcadas nesses contnu-os, ao contrrio, as fronteiras so fluidas, podendo haver sobreposies. O fato, aqui, parece-nos ser a considerao de que, em um dos extremos estariam usos da lngua marcados pela oralidade, a exemplo de uma conversa no muro entre vizinhos; j, no outro extremo, estariam usos da lngua marcados pela presena expressiva da escrita, a exemplo de uma conferncia em um encontro cientfico formal. No meio-termo, es-tariam usos em que oralidade e escrita se mesclam, a exemplo de rituais religiosos.

    O ltimo dos trs contnuos de que trata Bortoni-Ricardo (2004) o contnuo da monitorao estilstica, que envolveria desde os usos da ln-gua totalmente espontneos at aqueles previamente planejados e que exigem muita ateno do falante. A autora (p. 62) representa assim este contnuo:

    - monitorao + monitorao

    Escreve Bortoni-Ricardo (2004, p. 62):

    [...] os falantes alternam estilos monitorados, que exigem muita ateno

    e planejamento, e estilos no-monitorados, realizados com um mnimo

    de ateno forma da lngua. Ns nos engajamos em estilos monitora-

    dos quando a situao assim exige, seja porque nosso interlocutor po-

  • Estudos Lingusticos II

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    deroso ou tem ascendncia sobre ns, seja porque precisamos causar

    uma boa impresso ou ainda porque o assunto requer um tratamento

    muito cerimonioso.

    Segundo a autora, o ambiente, o interlocutor e o tpico da conversa determinam, em boa medida, o nvel de monitorao de que nos de-vemos valer. Outra questo levantada por ela o cruzamento entre os contnuos, sobre o que escreve Faraco (2008, p. 46):

    Adotando o modelo dos trs continua [proposto por Bortoni-Ricardo (2004)], podemos caracterizar estas [do Brasil] variedades como aquelas

    que se distinguem no entrecruzamento do plo urbano (no eixo rural-

    urbano) com o plo de letramento (no eixo oralidade-letramento). No

    eixo da monitorao estilstica, essas variedades conhecem, como todas

    as demais, diferentes estilos, desde os menos at os mais monitorados.

    A relevncia, aqui, de uma discusso dessa ordem parece estar no fato de que no se mostra possvel classificar os usos da lngua de uma forma estanque, dicotomizando-os. H uma movimentao nesses usos, mais para um dos plos ou mais para outro e os usurios da lngua tran-sitam no interior dessas linhas imaginrias, ao longo do tempo, consi-derando o espao social que ocupam, assim como determinaes am-bientais, de interlocuo, de intencionalidade etc. Isso porque, afinal, a lngua, sob a perspectiva dos estudos sociolingusticos, tem mobilidade, no esttica, dado que atende s necessidades de seus usurios e se modifica tanto quanto se modificam tais necessidades.

    1.5 Uma tentativa de sntese

    Os estudos sociolingusticos ganharam projeo a partir da se-gunda metade do sculo XX e desde ento, grandes contribuies vm sendo dadas compreenso de como as lnguas variam, como se modi-ficam e a que se prestam na realidade interacional humana.

    Trata-se de um campo de estudos muito enriquecedor, que tem, na escola, territrio especialmente frtil, dado que escola cabe, por dele-gao da sociedade, a legitimao do aprendizado da lngua escrita e das formas orais de prestgio. Assim, a exemplo do que discutimos na dis-

  • Sociolingustica: Novas Reflexes

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    Captulo 01

    ciplina Introduo aos estudos da linguagem, o educador deve conhecer os fundamentos dos estudos sociolingusticos, de modo a empreender uma ao consequente contra qualquer tipo de preconceito lingustico e em favor da compreenso da mobilidade, variedade e complexidade que caracterizam uma lngua em uso.

    A discusso das diferenas entre norma padro e norma culta, tanto quanto as aluses a polticas lingusticas, bem como a discusso sobre os contnuos de variao, ainda que breves, justificam-se aqui como aportes seminais para a sua formao docente na licenciatura em Letras. Cabe-lhe aprofundar esses conhecimentos em nome de uma maior autonomia para lidar com os conceitos aqui discutidos e, sobretudo, com as impli-caes desses conceitos na atividade cotidiana do professor de lnguas.

    RefernciasBORTONI-RICARDO. Stella Maris. Educao em lngua materna: a sociolin-gstica na sala de aula. So Paulo: Parbola, 2004.

    CALVET, Louis-Jean. Sociolingstica: uma introduo crtica. So Paulo: Parbola, 2002.

    HOUAISS, Antonio (Ed.). Dicionrio Houaiss de lngua portuguesa. So Paulo: Objetiva, 2001.

    FARACO, Carlos Alberto. Norma culta brasileira: desatando alguns ns. So Paulo: Parbola, 2008.

    GARCEZ, Pedro M.; ZILLES, Ana Maria S. Estrangeirismos: desejos e ame-aas. In: FARACO, Carlos Alberto (Org.). Estrangeirismos: guerras em torno da lngua. 3. ed. So Paulo: Parbola, 2004. p. 15-36.

    SIGNORINI, Ins. Por uma teoria da desregulamentao lingstica. In: BAGNO, Marcos (Org.). Lingustica da norma. 2. ed. So Paulo: Loyola, 2004. p. 93-125

    WEEDWOOD, Brbara. Histria concisa da lingstica. So Paulo: Parbola, 2002.

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    Captulo 02

    Psicolingustica: Uma Viso Introdutria Acerca De Objeto De Estudo, Mtodo E Modelos Tericos

    Mary Elizabeth Cerutti-Rizzatti

    Este Captulo est estruturado para que, tendo-o lido atentamente, voc seja capaz de identificar o objeto de estudo da Psicolingustica, o mtodo que prevalece nas pesquisas desse campo e os principais mo-delos tericos sob os quais tal objeto investigado. Os estudos de aqui-sio de lngua oral tm especial relevncia no mbito dessa disciplina, a qual pode ser tomada tambm pelo vis aplicado, a Psicolingustica Aplicada, recorte em que os estudos da apropriao da escrita ganham relevncia.

    Discutiremos, aqui, temas dos estudos psicolingusticos, objetivan-do facultar a voc uma viso introdutria no que respeita a esse campo cientfico. Para tanto, o presente Captulo divide-se em quatro sees distintas: a primeira delas traa um breve panorama das origens da Psi-colingustica, apresentando seu objeto e seu mtodo; a segunda descre-ve os principais modelos tericos que embasam as pesquisas na rea; a terceira trata de aquisio e desenvolvimento da oralidade; e a ltima focaliza brevemente o processo de apropriao da escrita e os estudos de letramento. Vamos, ento, a elas.

    2.1 Psicolingustica: origens, objeto de estudo e mtodo de investigao.

    Importa iniciar esta discusso com um breve panorama histrico do processo de formao da Psicolingustica. Essa disciplina o que chamamos de disciplina hbrida, dado que se originou de duas cincias distintas, a Psicologia e a Lingustica. O termo Psicolingustica parece ter surgido pela primeira vez no ano de 1946, em um artigo de N.H. Proncko, com sentido que prenunciava a constituio dessa disciplina, cujos estudos originalmente eram concebidos sob a denominao de Psicologia da Linguagem e tinham como foco as relaes entre pensamento e linguagem.

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    Na primeira metade do sculo XX, havia uma evidente dissociao entre os focos de interesse de psiclogos e linguistas. Aqueles procuravam relacionar o sistema lingustico e a organizao do pensamento valendo-se da pesquisa lingustica para tal, enquanto estes recorriam ao associacionismo psicolgico para explicar as mudanas lingusticas; foi um perodo de amplificao do estruturalismo, na Lingustica, e do comportamentalismo, na Psicologia. Tais escolas de pensamento contriburam para que cada qual das reas, Psicologia e Lingustica, se desenvolvessem em paralelo e no em convergncia, o que dificultou a criao de um novo campo. Tratava-se, segundo Scliar-Cabral (1991), de uma Psicologia que no aceitava estudar a mente e de uma Lingustica que no estudava o significado; ou seja, as possibilidades de troca pareciam pouco promissoras.

    As discusses que culminaram com a organizao da Psicolingustica como disciplina tiveram lugar no seminrio de vero da Universidade de Cornell, no perodo de junho a agosto de 1951, consolidando-se dois anos aps, em encontro anlogo, desta vez na Universidade de Indiana (SCLIAR-CABRAL, 1991). Nessa poca, havia, ainda, muita disperso terica, no se verificando um empenho efetivo de consolidao da disciplina hbrida. No final da dcada de 1950, porm, com os estudos de Chomsky, deu-se uma mudana expressiva nesse quadro, o que influenciou a Psicolingustica ao longo de toda a segunda metade do sculo XX, projetando-a significativamente no cenrio cientfico internacional, em especial, por meio do que chamamos cognitivismo. Voltaremos a essas questes na segunda seo, em que discutiremos os modelos tericos.

    Desde o seu surgimento, a Psicolingustica tem como objeto de estudo as relaes entre pensamento e linguagem. Tal objeto, no entanto, pode assumir diferentes feies, sob forma de questes e problemas de investigao distintos, os quais, no entanto, convergem, uma vez que evocam discusso de processamentos / habilidades / esquemas mentais ou cognitivos implicados na linguagem humana. Dentre essas questes e/ou problemas, podemos citar estudos acerca da forma como a fala percebida e produzida, bem como acerca da constituio do lxico (dicionrio) mental, da memria, da aquisio e desenvolvimento da

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    Captulo 02

    linguagem, do processamento da escrita, entre muitos outros. Trata-se de um conjunto de temas que focalizam as relaes entre linguagem e crebro, o que inclui fundamentos biolgicos da linguagem e, hoje, muito explicitamente, implicaes neurofisiolgicas do processamento lingustico.

    Quanto ao mtodo de investigao, prevalece nos estudos psicolingusticos o chamado mtodo experimental, no qual psicolinguistas ocupam-se da realizao de experimentos para levar a termo suas pesquisas, envolvendo relaes entre linguagem e pensamento/crebro. Fundamentalmente, o mtodo experimental consiste na elaborao de testes com rigor e controle de variveis, processo em que a coleta de dados feita mediante a manipulao de certas condies e a observao dos efeitos produzidos por essa manipulao. Em linhas gerais, o mtodo consiste em determinar um objeto de estudo, selecionar as variveis que seriam capazes de influenci-lo e definir as formas de controle e de observao dos efeitos que cada varivel poder produzir no objeto, sendo tido como exemplar na construo de conhecimentos rigorosamente verificados e cientificamente comprovados (CHIZZOTTI, 2001).

    Vamos a um exemplo para que fique mais claro em que consiste o mtodo experimental. Em Psicolingustica, so comuns experimentos no campo da leitura. Para testar capacidades de leitura de um grupo de sujeitos, por exemplo, o pesquisador escolhe a populao de informantes e faz um rigoroso controle de variveis que possam intervir no desempenho desses sujeitos, como, por exemplo, idade, nvel de escolarizao, dificuldades de aprendizagem, insero social etc. Quanto ao teste, precisa ser elaborado com cuidado para avaliar efetivamente as habilidades de interesse do investigador. Antes de aplicar o experimento, feita uma testagem piloto para fazer ajustes nos testes. Em geral, nos casos de leitura, os experimentos envolvem textos, que devem ser lidos, e questes, que so objetivamente construdas, s quais os informantes devem responder. Aps a aplicao dos testes na populao-alvo, o pesquisador, na maioria das vezes, d tratamento quantitativo aos dados obtidos, tendo por base categorias de anlise bem definidas; nesse caso, por exemplo, organiza grficos estatsticos sobre capacidades dos informantes para decodificao, tempo de leitura, realizao de inferncias etc.

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    Os experimentos em Psicolingustica so muito interessantes e tm produzido importantes conhecimentos no campo das relaes entre a linguagem e o aparato mental que a viabiliza. Vrias so as tendncias tericas e os modelos epistemolgicos a partir dos quais tais estudos so realizados. Discutiremos isso na prxima seo.

    2.2 Modelos tericos em Psicolingustica

    Os estudos psicolingusticos, como registramos anteriormente, sofreram, na primeira metade do sculo XX, uma influncia do pensamento comportamentalista. A obra Verbal behaviour, de Skinner, publicada no ano de 1957, tratava do processo de aquisio e desenvolvimento da linguagem como marcado pela imitao e pelo reforo. Segundo essa perspectiva, no processo aquisicional, a criana seria reforada por seu desempenho, quer positiva, quer negativamente e, a partir desse reforo, generalizaria seu padro de comportamento lingustico futuro. Ainda sob a perspectiva desse modelo terico, a criana adquiriria novas formas lingusticas pela imitao da fala dos adultos, no entorno social em que se estivesse inserida (SLOBIN, 1980). Esse tipo de argumentao nos levava a considerar que uma criana, ao aprender, por exemplo, o paradigma dos verbos de sua lngua, imitaria os adultos. Ao dizer fazi, em uma supergeneralizao do padro que ouve para os verbos no pretrito perfeito comi, corri, pedi, senti etc. , receberia reforo negativo, sendo corrigida, de modo a aprender a forma irregular desse verbo: fiz.

    No ano de 1959, Noam Chomsky, importante linguista ao qual j fizemos referncia em nosso curso, escreveu uma resenha para a obra Verbal behaviour de Skinner, contrapondo-se ao modelo terico ali proposto. Chomsky argumentou que a imitao no fator determinante do processo aquisicional, dado que a criana produz enunciados nunca antes ouvidos em seu meio, alm do que crianas no imitam formas que estejam muito alm de seu alcance. Assim, a imitao desempenha, sem dvida, um papel na aquisio da linguagem, mas tal papel no inserir novas estruturas no sistema de regras da criana. (SLOBIN, 1980, p. 148). Outra questo importante, sob o olhar de Chomsky,

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    Captulo 02

    que a criana, em sua insero social, no tem contato com todas as possibilidades combinatrias que a gramtica que sua lngua prev o autor chama essa limitao de input degradado , mas mesmo assim adquire tal gramtica, o que fica evidenciado na forma otimal como faz uso dessa mesma lngua.

    Com relao ao reforo, Chomsky (apud SLOBIN, 1980, p. 144) argumentou:

    Descobrir que h erro em um dado enunciado no informa criana

    exatamente o que ela fez de errado ao produzi-lo e certamente no lhe

    diz como corrigi-lo da prxima vez. Nem o reforo positivo d qualquer

    informao discriminativa acerca do que era correto sobre a construo

    gramatical que ela acabou de enunciar.

    Outra questo que emerge nessa discusso o fato de que os pais, ao que parece, do pouca ateno correo formal da fala de seus filhos, preocupando-se, na maioria das vezes, com o contedo dessas falas por ocasio do processo de aquisio e desenvolvimento da linguagem. Esse argumento levantado por Slobin (1980), na discusso da contraposio de Chomsky ao modelo skinneriano, apenas mais um item na crtica efetiva que Chomsky lanou s idias de Skinner, a partir do que um novo modelo terico ganhou legitimidade: o cognitivismo, contrrio ao comportamentalismo skinneriano. A grande diferena entre esses modelos o fato de o cognitivismo realar o papel da mente no processo de aquisio e desenvolvimento da linguagem, o que era lacunar no modelo comportamentalista, no qual havia a preocupao com a entrada e com a sada da informao no crebro, sendo desconsiderado o processamento mental interno dessa informao: a conhecida base terica da tbula rasa.

    Dentre os estudiosos cognitivistas que seguramente merecem ateno nos estudos psicolingusticos, esto Chomsky, Piaget e Vigotski, ainda que este ltimo tenha tido sua produo terica ao longo das trs primeiras dcadas do sculo XX, dado que faleceu na dcada de 1930; ou seja, no foi contemporneo de Chomsky e Piaget. Importa, aqui, detalharmos, ainda que brevemente, o pensamento desses trs importantes cognitivistas, os quais fundamentam grande parte dos estudos psicolingusticos ainda hoje.

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    O pensamento de Chomsky sobre o processo de aquisio e desenvolvimento da linguagem caracteriza-se fundamentalmente pela proposio de que os sujeitos nasceriam com o que ele chama de Gramtica Universal, [...] entendida como a soma dos princpios lingusticos geneticamente determinados, especficos espcie humana e uniformes atravs da espcie. (RAPOSO, 1992, 46). Trata-se, como podemos ver, de uma viso inatista.

    Podemos conceber a Gramtica Universal como um rgo biolgico,

    que evolui no indivduo como qualquer outro rgo. O resultado

    dessa evoluo a gramtica final que caracteriza os conhecimentos

    lingusticos do falante adulto. Nos termos de Chomsky, a Gramtica

    Universal o estado inicial da faculdade da linguagem [...], e a gramtica

    do indivduo adulto constitui seu estado final, firme e estvel [...]

    (RAPOSO, 1992, p. 46-47)

    O fato de o sujeito nascer de posse da Gramtica Universal explicaria como ele aprende tanto, em to pouco tempo, sobre a lngua de sua comunidade de falantes, considerando a natureza degradada do input a que fizemos aluso anteriormente; ou seja, uma criana de quatro anos consegue enunciar, por exemplo, O homem que voc disse que tinha falado com a mulher que comprou o brinquedo que eu trouxe para casa veio aqui., sem ter nenhuma dificuldade para mapear quem o sujeito de veio aqui, a despeito das poucas experincias de seu contato com o uso da lngua. Essa habilidade teria uma explicao inata.

    Importa acrescentar, ainda, que a Gramtica Universal conteria um conjunto de princpios rgidos, invariveis a exemplo do conhecimento de que as oraes das lnguas humanas possuem necessariamente um sujeito e um predicado e um conjunto de princpios abertos, os parmetros, uma espcie de comutadores lingusticos cuja marcao dependeria de informaes obtidas do meio ambiente lingustico. Uma criana nascida no Brasil, por exemplo, saberia que pode preencher ou no o lugar do sujeito na frase, isto , pode dizer Ele chegou ontem, ou apenas Chegou ontem. J uma criana que nasce nos Estados Unidos, ao contrrio, saberia, sem que ningum precise ensin-la, que no pode dizer apenas Arrived yesterday.; ter de dizer He arrived yesterday.

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    Captulo 02

    Essa posio inatista de Chomsky, no entanto, tambm tem sido, desde sua origem, objeto de expressivos questionamentos por tericos de outras tendncias. Jean Piaget, outro importante estudioso cognitivista, concorda com Chomsky no sentido de que a linguagem um produto da inteligncia e da razo, e no da imitao e do reforo como propunha o comportamentalismo de Skinner. Discorda, porm, de Chomsky quanto existncia da Gramtica Universal. Para Piaget, no existiria um ncleo fixo inato para a linguagem. Esse autor defende haver esquemas de ao, caracterizados em estgios sucessivos, coordenados entre si, por meio dos quais acontece um processo de auto-regulao, via assimilao de informaes do ambiente, acomodao e organizao constantes dessas informaes, de modo a construir o conhecimento em geral e tambm o conhecimento sobre a lngua (PIATELLI-PALMARINI, 1983). Sob essa perspectiva, a criana, a partir de uma assimilao inicial, enunciaria fazi, e, testando essa hiptese na interao com a lngua, no a confirmaria, precisando acomodar em seus esquemas cognitivos a informao de que h excees, em um processo de organizao da informao nova, o que lhe permite internalizar a forma excepcional fiz.

    Piaget um terico cognitivista interacionista, e no cognitivista inatista, como Chomsky. Para Piaget, os esquemas cognitivos dos sujeitos so processados na interao com o objeto do conhecimento; ou seja, aprendemos interagindo com o meio. Nessa mesma vertente, est Lev Vigotski, outro terico cognitivista de grande importncia no estudo das relaes entre linguagem e pensamento. Vigotski, tanto quanto Piaget, um interacionista, porque compreende a aprendizagem como produto da interao com o meio, e tambm um construtivista, porque, para ele, tanto quanto para Piaget, nessa interao que se constri o conhecimento. Piaget fala em construo do conhecimento por meio de estgios implicacionais estgios que se sucedem com base no amadurecimento das funes cognitivas das crianas , enquanto Vigotski prope a articulao entre zonas de desenvolvimento o que a criana consegue fazer sozinha diferente daquilo que consegue fazer com a ajuda do adulto.

    Diferentemente de Piaget, porm, Vigotski fundamenta suas teorizaes no marxismo e defende o sociointeracionismo, ou seja,

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    na interao com o meio, a figura do outro fundamental, porque a aprendizagem se processa a partir das relaes sociais, interpsicolgicas X , relaes que a criana estabelece na comunidade em que vive. Assim, adquirir uma lngua, sob essa perspectiva, significa interagir com os falantes de um determinado meio social e, a partir da mediao do outro, avanar da zona de desenvolvimento real o que a criana j sabe para a zona de desenvolvimento imediato o que consegue aprender a partir da mediao do adulto.

    Todos esses trs tericos Chomsky, Piaget e Vigotski so cognitivistas; ou seja, em se tratando da linguagem, enfatizam o papel da mente no processo de aquisio e desenvolvimento lingusticos. O que os distingue, no plano desta discusso e em busca de uma sntese para tratamento didtico, o fato de Chomsky ser um cognitivista inatista prope a existncia de uma Gramtica Universal dada na espcie ; Piaget ser um cognitivista interacionista valoriza a interao da criana com o objeto do conhecimento, neste caso, a lngua,; e Vigotski ser um cognitivista sociointeracionista entende como central o papel do outro e v as relaes interpsicolgicas como fundamentais no processo de aprendizado, incluindo-se a aprendizado da lngua.

    H, ainda, um terceiro modelo terico ao lado do comportamenta-lismo de Skinner e do cognitivismo de Chomsky, Piaget e Vigotski: trata-se do conexionismo. Esse modelo partilha com o cognitivismo a concep-o de que a linguagem um produto da inteligncia e da razo, ou seja, no deriva da imitao e do reforo. Diferentemente do cognitivismo, no entanto, o modelo conexionista concebe que a inteligncia no uma representao de smbolos ou signos, isto , a linguagem no repousa em nossa mente como um conjunto de signos verbais ou no-verbais. A proposta desse modelo que a linguagem, a exemplo dos demais tipos de conhecimento, fruto da conexo entre as clulas nervosas, os neu-rnios. Cada neurnio teria em si propriedades, subsmbolos, que, ao se conectar com outros neurnios, formaria os smbolos. Isso explicaria por que, diante de uma mesma palavra ou conceito, podemos evocar significados to diferentes em momentos diferentes de nossa vida as conexes mudam de peso a partir das informaes novas que recebemos do meio. Cadeira, por exemplo, seria formada a partir da constituio

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    Captulo 02

    de uma rede neural em que vrias propriedades (ter encosto, ter assento, servir para sentar etc.) seriam articuladas, formando o conceito.

    O modelo conexionista traz consigo uma explicao para o chamado input degradado de que trata Chomsky. Para os conexionistas, uma criana sabe tanto sobre a sua lngua, em to tenra idade, no porque tenha nascido com uma Gramtica Universal, mas porque, sobremodo, at os cinco anos, as conexes entre seus neurnios esto altamente potencializadas, permitindo-lhe aprender muito em pouco tempo (ROSSA; ROSSA, 2004). O modelo conexionista aproxima-se das neurocincias, um campo de estudo que, dia-a-dia, ganha maior ateno dos psicolinguistas e que tende a se consolidar como a grande vertente terica dos estudos psicolingusticos neste novo milnio.

    2.3 O processo de aquisio e desenvolvimento da linguagem oral

    Como voc deve ter percebido no estudo da seo anterior, h vrias bases tericas a partir das quais podemos discutir as relaes entre linguagem e pensamento/mente/crebro; tais bases constituem modelos distintos. Em relao s etapas de aquisio e desenvolvimento da linguagem, no entanto, parece no existir grandes controvrsias. Haveria um perodo inicial, conhecido como balbucio, seguido do estgio das cinquenta primeiras palavras; depois, haveria o estgio holofrstico uma palavra igual a uma frase; em seguida, o estgio de frases de duas palavras e, finalmente, a grande exploso. Esse processo iniciaria por volta de seis meses, quando comea o que chamamos balbucio cannico, e estaria concludo, em tese, por volta de quatro anos de idade. Detalhemos isso um pouco melhor.

    Segundo sugerem alguns experimentos (FIFER; MOON apud COSTA; SANTOS, 2003), os bebs, ainda na barriga da me, so capazes de ouvir apesar das distores dos sons; seria como ouvir com a cabea dentro dgua. Quando nascem, desde os primeiros meses de vida, as crianas mostram capacidade para distinguir sons da fala de outros sons, respondendo diferentemente a eles, tanto quanto capacidade para distinguir sons de sua lngua de sons de outras lnguas.

  • Estudos Lingusticos II

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    O balbucio que chamamos de cannico comea por volta de seis meses, no entanto, entre trs e quatro meses, j surgem vocalizaes pr-lingusticas. O comportamento das crianas por ocasio do balbucio no aleatrio; as produes desenvolvem-se de maneira sistemtica. H um subconjunto de sons que se repete de modo mais frequente.

    O balbucio cannico, iniciado por volta de seis meses, tende a comear com a reduplicao de cadeias de sons de vogais e consoantes as vogais permanecem as mesmas de slaba a slaba: mama, por exemplo. Em uma segunda fase, por volta dos nove meses, inicia-se o balbucio no-reduplicado ou variado: as consoantes e as vogais (agora muito prximas dos fonemas consonantais e voclicos de fato) comeam a variar de slaba para slaba (ELBERS, 1982; OLLER, 1980; STARK, 1979 apud COSTA; SANTOS, 2003). Essa etapa estende-se at aproximadamente um ano de idade, quando surgem as primeiras palavras. A maioria das crianas continua a balbuciar mesmo quando comea a articular tais palavras. A transio entre esses dois estgios no abrupta, mas contnua; sons utilizados no balbucio so combinados para formao das primeiras palavras.

    De seis a oito meses de idade, o trato vocal das crianas aproxima-se de sua forma adulta, o que pr-requisito para a produo dos sons como ns os conhecemos o balbucio, neste estgio, j se parece bastante com o estgio das primeiras palavras (LOWE, 1996). preciso considerar que um recm-nascido tem um aparelho fonador tpico dos mamferos. A laringe sobe como um periscpio e se encaixa nas fossas nasais, forando o beb a respirar pelo nariz e fazendo com que seja anatomicamente possvel mamar e respirar ao mesmo tempo. Por volta de trs meses, a laringe desce, constituindo o trato vocal em sua feio efetiva (PINKER, 2002).

    As funes do balbucio parecem ser a explorao do trato vocal e o aprendizado do controle dos articuladores (lngua, lbios, cu da boca etc.) para produo futura da fala; isso alm de servir para chamar ateno dos pais e comunicar estados emocionais (sete a oito meses). Por volta dos sete/oito meses, os pais tendem a atribuir sentidos mais efetivamente ao balbucio de seus filhos.

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    Captulo 02

    Os primeiros sons adquiridos pelas crianas so aqueles que apresentam maior oposio de traos distintos e, posteriormente, aqueles em que a oposio mais sutil. Por volta de doze meses, as crianas apresentam cerca de dez palavras; por volta de dezoito meses, o lxico cresce para cerca de cinquenta palavras. o conhecido estgio de cinquenta palavras. H, no entanto, muitos fatores socioculturais, fisiolgicos, emocionais, ambientais etc. que implicam variaes individuais nesse processo. Questes interacionais, de escolarizao, nveis de letramento, hbitos familiares etc. interferem na aquisio do lxico. Nessa fase em que a criana produz cerca de cinquenta palavras, ela entende cerca de duzentas, porque o processo de recepo sempre amplificado em relao ao processo de produo da fala. Importa considerar que as palavras bsicas tendem a ser mais frequentes no input, sobretudo no mamanhs linguagem usada pela me para se dirigir ao beb. A criana dir muito provavelmente mame, vov, sapato antes de dizer envelope, por exemplo.

    Por volta dos dezoito meses, d-se o que chamamos de a grande exploso, e a criana passa a adquirir uma palavra nova a cada duas horas mais ou menos, mdia que mantm at o final da adolescncia (PINKER, 2002; COSTA; SANTOS, 2003). Aos quatro anos, a criana domina um vocabulrio de cinco mil palavras em mdia (COSTA; SANTOS, 2003).

    Quanto combinao de palavras em frases, o estgio holofrstico aquele em que a criana usa uma palavra para traduzir uma frase, como quando diz Vov! significando Quero ir casa da vov. J o estgio de duas palavras d-se por volta de dois anos. Inicialmente, aparecem cadeias de expresses holofrsticas, cada palavra com seu nico contorno de tom. No estgio de duas palavras, o contorno de entonao passa a abranger ambas as palavras. Os enunciados de duas palavras tm carter telegrfico e so constitudos por palavras de contedo, ou seja, as preposies, conjunes e pronomes tendem a ser apagados (ZANINI,1986). Finalmente, d-se a grande exploso, por volta dos trinta meses de vida. O comprimento das frases dobra, aparecem os elementos de coeso, e as relaes entre as palavras tornam-se mais precisas. Surgem as estruturas interrogativas e adjetivas (PINKER, 2002).

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    Essas fases podem revelar expressivas alteraes, motivadas por fatores externos e/ou da individualidade de cada criana, mas tendem a se manifestar de forma bastante evidente em crianas do mundo inteiro. A discusso dessas fases de desenvolvimento um dos campos de estudo mais fecundos da Psicolingustica.

    2.4 O processo de apropriao/aprendizado/aquisio da escrita

    Uma ltima questo que merece registro neste Captulo sobre a Psicolingustica o processo de apropriao/aprendizagem/aquisio da lngua escrita. Por que usamos tantas expresses de valor adjetivo pospostas por barras? Isso se deve ao fato de que, dependendo do modelo terico que adotarmos, a compreenso desse processo ganhar contornos particulares. Para os inatistas chomskyanos, por exemplo, a oralidade um processo de aquisio, enquanto a escrita um processo de aprendizado; isso porque a oralidade est dada na espcie humana, enquanto a escrita precisa ser artificialmente ensinada aos sujeitos. J quem tome esse estudo sob uma perspectiva vigotskiana, ou mesmo conexionista, no far distines entre aquisio e aprendizagem do modo como os inatistas o fazem. Para fugir desse embate, optaremos, aqui, pelo substantivo apropriao, por considerarmos, como o faz Leontiev (apud GONTIJO, 2002), que dominar a escrita implica apropriar-se de uma construo cultural e histrica da humanidade.

    Em se tratando da apropriao da escrita, a Psicolingustica Aplicada ocupa-se fundamentalmente de duas grandes questes: o processo de alfabetizao e o processo de letramento. Para as finalidades deste estudo, distinguiremos esses dois fenmenos, concebendo a alfabetizao como domnio do cdigo alfabtico para uso social da escrita, e entendendo letramento como prticas e eventos (BARTON, 1994) em que se d esse mesmo uso social. Descrevamos, ainda que em carter introdutrio, esses dois fenmenos.

    O ato de alfabetizar-se implica, em nosso entendimento, dois grandes eixos: o domnio do sistema alfabtico da lngua e a capacidade

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    Captulo 02

    de fazer uso desse domnio para veicular sentidos no entorno social. Um indivduo, para estar alfabetizado, precisa conhecer as relaes entre os grafemas (letras ou conjunto de letras que representam os fonemas da lngua) e os fonemas. No ato de ler, transformamos grafemas em fonemas; no ato de escrever, transformamos fonemas em grafemas. Fazer isso com autonomia parte fundamental da apropriao da escrita.

    Esse domnio, no entanto, por si s, no se justifica. Vale conhecer o sistema alfabtico da lngua para fazer uso da escrita em situaes sociais de interao, ou seja, em eventos de letramento ocasies em que a escrita est presente, a exemplo de ler um livro, fazer uma lista para o supermercado, tomar um nibus com base na informao escrita que o identifica, escrever uma tese, participar de um chat etc.

    So eventos de letramento todas as situaes interacionais com significado para os sujeitos nas quais a lngua escrita est presente. Cada cultura lida com esses eventos de modo distinto, ou seja, cada agrupamento cultural tem as suas prprias prticas de letramento, formas especficas e singulares de participar ou de construir tais eventos (BARTON, 1994). Sabemos que uma aula um evento de letramento tomado de forma distinta na EaD e no ensino presencial, por exemplo trata-se de grupos culturais especficos, lidando de modo distinto com um mesmo evento. Se considerarmos um evento de letramento como um ritual religioso de celebrao de um culto, poderemos observar quantas prticas distintas de letramento isso pode evocar nas diferentes culturas.

    A Psicolingustica Aplicada ocupa-se da discusso dessas questes, particularizando desde as especificidades das relaes entre grafemas e fonemas at as formas distintas com que as sociedades humanas lidam com a escrita. Trata-se de um recorte de pesquisa muito interessante, que vem despertando crescente interesse na modernidade.

    Consideraes finais do Captulo

    Esperamos, ao longo deste Captulo, ter deixado claro para voc que a Psicolingustica, uma disciplina hbrida, formada por eixos da Psi-cologia e por eixos da Lingustica, ocupa-se das relaes entre lingua-

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    gem e pensamento/cognio/mente/crebro. Ao fazer isso, discute um leque de temticas interessantes, que vo desde questes cognitivas mais intrincadas, a exemplo de como o homem representa o mundo em seu aparato mental, at questes do dia-a-dia dos sujeitos, a exemplo dos usos que os homens fazem da lngua escrita nas sociedades atuais.

    Nossa expectativa ter despertado seu interesse por esse ramo dos estudos lingusticos, o qual, hoje, vem estabelecendo um interessante dilogo com as neurocincias; afinal, aps a dcada de 1990, conhecida como a dcada do crebro, ficou difcil para os estudiosos da linguagem desconsiderar a forma como se tornou possvel mapear o funcionamen-to neuronial. Em nosso entendimento, neste novo milnio, os estudos psicolingusticos caminham para uma interessante convergncia com as neurocincias, o que haver de trazer grandes contribuies para o construto terico desta disciplina.

    Referncias BARTON, D. Literacy - an introduction to the ecology of written language. Oxford: Blackweell, 1994

    CHIZZOTTI, Antnio. Pesquisa em Cincias Humanas e Sociais. 5.ed. So Paulo: Cortez, 2001

    COSTA, Joo; SANTOS, Ana Lcia. A falar como os bebs. O desenvolvimento lingstico das crianas. 2. ed. Lisboa: Caminho, 2002

    GONTIJO, Cludia Maria Mendes. O processo de alfabetizao: novas contribuies. So Paulo: Martins Fontes, 2002

    LOWE, Robert J. Fonologia. Porto Alegre: Artes Mdicas, 1996

    PIATELLI-PALMARINI, Massimo (org.) Teorias da linguagem, teorias da aprendizagem. Debate entre Jean Piaget e Noam Chomsky. So Paulo: Cultrix, 1983.

    PINKER, Steven. O instinto da linguagem. So Paulo: Martins Fontes, 2002.

    RAPOSO, Eduardo. Teoria da gramtica: a faculdade da linguagem. Lisboa: Caminho, 1992.

    ROSSA, Adriana Angelin; ROSSA, Carlos Ricardo Pires. Rumo psicolingstica conexionista. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. 321 p.

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    Captulo 02

    SCLIAR-CABRAL, Leonor. Introduo Psicolingstica. So Paulo: tica, 1991.

    SLOBIN, Dan Isaac. Psicolingstica. So Paulo: USP, 1980.

    ZANINI, Fdia Gonzales. Aquisio da linguagem e alfabetizao. In: TASCA, Maria, POERSCH, Jos Marcelino. Suportes lingsticos para a alfabetizao. Porto Alegre: Sagra, 1986, p. 43-69.

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    Captulo 03

    Lingustica Textual: Uma Viso Panormica

    Maria Jos Damiani Costa

    (...) lo que todava llamo texto por razones parcialmente estratgicas (...) ya no sera (...) un corpus finito de escritura, un contenido enmar-cado en un libro o en sus mrgenes, sino una red diferencial, un tejido de huellas que remiten a otras huellas diferenciales (JACQUES DERRI-DA, 1998, p.71)

    3.1 Introduo

    Nosso propsito, neste captulo, encaminh-lo atravs de uma vi-so panormica disciplina de Lingustica Textual (LT), percorrendo sua conceituao e origem, sua representao no exterior e no Brasil, sua proposta de texto como objeto de estudo, os princ-pios de construo textual do sentido e os gneros textuais.

    3.2 Origem e o contexto mundial da Lingustica Textual

    At os anos 60, os estudos desenvolvidos na tentativa de explicar ou descrever a linguagem humana estavam, em sua grande maioria, apoiados nos paradigmas estruturalistas ou ge-rativistas com base nos preceitos de Saussure ou Chomsky. Estes estudos escolhiam a palavra ou estruturas frasais como corpus para sua anlise emprica e descreviam a lngua em abstrato, isolada de qualquer contexto de uso. Estas perspectivas apoia-das tanto na lingustica estrutural quanto na lingustica gera-tiva, apesar de apresentarem matizes diferentes e importantes construo dos estudos lingusticos ao longo de sua histria,

    3

    A roda dos livros

  • Estudos Lingusticos II

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    conceituaram a linguagem humana como uma manifestao fragmenta-da, atrelada aos limites da frase, linear, distante do sujeito e da situao comunicativa, ou seja, uma manifestao previsvel e comum a todos os sujeitos pertencentes a uma determinada comunidade lingustica.

    Por volta da dcada de 60, na Europa, principalmente na Alema-nha, iniciou-se um novo olhar sobre a manifestao da linguagem, ou seja, a suposta homogeneidade lingustica dos sujeitos, a linearidade de produo, a concepo da linguagem investigada atravs de recortes pontuais, no respondiam mais aos anseios de alguns tericos.

    Em 1964, H Weinrich foi o primeiro autor a empregar o termo lin-gustica de texto para aludir a este novo paradigma terico.

    Sobre este momento de transio, comentam Beaugrande e Dress-ler (1997):

    [...] Ha de recordarse que un formalismo es una representacin, no una

    explicacin; y un medio, no un fin. En este sentido, ha de entenderse

    que el simple anlisis de las estructuras formales de una lengua puede

    fracasar en el esclarecimiento de la naturaleza y de la funcin que realiza

    un elemento lingstico en el amplio contexto de uso en que aparece.

    (BEAUGRANDE e DRESSLER, 1997, p.31)

    A primeira gerao de autores, que propunha em seus estudos esse novo olhar, ou seja, ir alm dos limites da frase, considerando em suas anlises o sujeito e a situao comunicativa, estava integrada na Ale-manha por Weinrich, Dressler e Beaugrande, Heinemann, entre outros; na Holanda por Van Dijk; na Frana por Charolles, Combettes, Adam, Vigner, entre outros; na Inglaterra por Halliday e Hasan. Estes tericos colaboraram com o nascimento e fortalecimento da Lingustica Textual no contexto mundial e proporcionaram a grande virada terica na an-lise dos estudos da linguagem: o texto como unidade de estudos.

    Cabe ressaltar que a Lingustica Textual se manifesta contempora-neamente ao surgimento da Sociolingustica, da Anlise do Dis-curso, da Pragmtica. Neste momento, outros elementos so con-siderados no cenrio da comunicao, a saber: a subjetividade, a dimenso espao-temporal e as interaes da fala.

  • Lingustica Textual: Uma Viso Panormica

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    Captulo 03

    Assim, a nova disciplina tinha como objeto de sua investigao no mais a palavra ou a frase isolada, mas o texto, por acreditar que o texto a manifestao legtima da linguagem, que o homem se comunica atra-vs de textos e que vrios aspectos da linguagem s podem ser enten-didos se buscarmos sua explicao no interior do texto. De acordo com Beaugrande e Dressler (1997), o conhecimento humano, o raciocnio e o processo de elaborao do conhecimento so possibilitados e trans-mitidos atravs de textos e no de provas lgicas e acrescentam que a tarefa da cincia consiste em sistematizar o impreciso de seus objetos de investigao, no em ignor-los.

    Neste novo cenrio, na dcada de 70, o foco de investigao da Lin-gustica Textual se voltava para o texto como representao da linguagem e a grande maioria dos estudos estava atrelada preocupao em descre-ver os fenmenos sinttico-semnticos apresentados entre enunciados ou sequncias de enunciados. Essa viso conferia a estas sequncias de enunciados o status de texto e foi denominada anlise transfrstica, e que apesar de compreender outro olhar ao seu objeto, apresenta resulta-dos bastante semelhantes aos estudos realizados no nvel da frase.

    Ingedore Koch (2004), uma estudiosa sobre a disciplina, escreve:

    Na sua fase inicial, que vai, aproximadamente, desde a segunda metade

    da dcada de 60, at meados de 70, a lingustica textual teve por preo-

    cupao bsica, primeiramente, o estudo dos mecanismos interfrsticos

    que so parte do sistema gramatical da lngua, cujo uso garantiria as

    duas ou mais sequncias o estatuto de texto. [...] Os estudos seguiam

    orientaes bastante heterogneas, de cunho ora estruturalista ou ge-

    rativista, ora funcionalista. (KOCH, 2004, p. 4)

    Tambm, ao longo da dcada de 70, muitos tericos em suas an-lises, mantiveram-se atrelados ou gramtica estrutural ou, principal-mente, gramtica gerativa, o que demonstra o descontentamento de alguns tericos com os resultados obtidos nos estudos das gramticas de frases. Para os estudiosos contrrios gramtica do enunciado, fen-menos sobre: a ordem das palavras nos enunciados, a seleo dos artigos (definidos ou indefinidos), a entonao, as sentenas no ligadas por con-junes, a concordncia dos tempos verbais, etc., s poderiam ser expli-cados, se levado em considerao o contexto situacional.

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    Tambm, como nos destaca Koch (1997), em decorrncia dessa identificao terica gerativista, alguns linguistas tiveram a preocupa-o de construir gramticas textuais, porm, agora, o corpus estudado era constitudo de unidades lingusticas superiores frase e, seu objeto de estudo, descrever categorias e regras de combinao apresentadas no texto em determinada lngua. As gramticas textuais, conceito compar-tilhado por alguns de seus defensores, do conta da estrutura lingus-tica de enunciados completos, oferecendo uma base lingustica para a elaborao de modelos cognitivos do desenvolvimento, produo e compreenso da linguagem e oferecem uma melhor estrutura para o estudo do texto, e da conversao em contextos sociais interacionais e institucionais.

    Ento, tomando o texto como frase complexa, a coeso , muitas ve-zes igualada ao termo coerncia, torna-se o grande foco da investigao da Lingustica Textual.

    Foi, ento, na dcada de 80, que a Lingustica Textual ampliou o seu leque de estudo, retomando o conceito de coerncia como um fen-meno construdo no apenas com elementos de ordem lingustica, mas tambm constitudo e acompanhado de processos de ordem cognitiva. Os textos passaram a ser concebidos, ento, como resultados de proces-sos mentais utilizados pelos sujeitos nas diversas relaes socioculturais e interacionais, sendo armazenados na memria e ativados pelo falante em suas prximas prticas comunicativas, quando necessrio.

    Assim, dentro dessa nova perspectiva, ns, como usurios de uma lngua e pertencentes a uma comunidade lingustica, interagimos como sujeitos nas mais variadas prticas comunicativas, que resultam de tex-tos que armazenamos em nossa memria. Tais textos sero recupera-dos, isto , ativados quando ao participarmos de uma nova situao co-municativa necessitarmos de um modelo inicial para que se estabelea nossa prtica como sujeitos sociais.

    Completam nossa exposio os seguintes questionamentos de Dressler e Beaugrande (1997):

    Las palabras y las oraciones que aparecen literalmente en un texto son

    indicaciones interesantes que ha de tener muy en cuenta el analista,

    Aqui o conceito de coeso est equiparado coerncia.

    Conceitos que trataremos mais adiante.

  • Lingustica Textual: Uma Viso Panormica

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    Captulo 03

    pero no reproduce la totalidad de lo que se est comunicando, por lo

    que si en nuestro anlisis nos limitsemos a ellas nunca podramos

    ofrecer una descripcin completa de cmo funciona un texto. Y pre-

    cisamente el problema ms apremiante que ha de resolverse es cmo

    FUNCIONAN los textos en la INTERACIN COMUNICATIVA (destaques

    dos autores). (BEAUGRANDE e DRESSLER, 1997, p. 35)

    O que percebemos, nesse novo movimento de nossa disciplina, um deslocamento muito alm do texto, pois o que faz um texto ser um texto, na concepo dos autores citados, no sua gramaticalidade, mas sua textualidade. Para Dressler e Beaugrande existem sete princpios responsveis pela textualidade em qualquer discurso:

    CoesoCentrados no texto

    Coerncia

    Situacionalidade

    Centrados no UsurioInformatividade

    Intertextualidade

    Aceitabilidade

    Na dcada de 90, questes concernentes compreenso e produo do texto, o armazenamento e ativao do conhecimento na memria, o texto construdo atravs da vivncia, mas condicionado scio-cultural-mente sob a forma de modelos cognitivos globais - frames, esquemas, scripts, planos - alimentaram as novas investigaes e o interesse pre-mente sobre o processamento cognitivo do texto e o conhecimento construdo atravs da vivncia do sujeito. Devido a isso, ocorre o forta-lecimento do rumo das pesquisas em direo s questes sociocogniti-vas do texto.

    3.3 O reflexo da Lingustica Textual no Brasil

    Focalizamos, at aqui, uma contextualizao da disciplina Lingus-tica Textual, quanto aos seus paradigmas iniciais, descrevendo os movi-

  • Estudos Lingusticos II

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    mentos tericos ocorridos nas ltimas dcadas no entorno das investi-gaes no panorama mundial.

    Voc pode estar questionando: E no Brasil? Como foi a caminhada da Lingustica Textual? As reflexes feitas por estudiosos estrangeiros, ecoaram, tambm, nos ambientes acadmicos brasileiros?

    De acordo com as publicaes apresentadas por autores brasileiros e estudiosos da Lingustica Textual (Koch, Fvero, Marcuschi, Trava-glia, Bastos, entre outros) os primeiros reflexos dos grandes questiona-mentos sobre os estudos lingusticos do texto apareceram em nosso pas no final da dcada de 70, principalmente, aps a traduo e publicao em portugus de duas importantes obras: Semitica Narrativa e Textual (Chabrol et al.,1977) e Lingustica e Teoria do Texto (Schmidt, 1978). Po-rm, na dcada de 80, a comunidade cientfica brasileira demonstra que, apesar de ter seu inicio 10 anos aps o nascimento da LT na Europa, j participa no Brasil com publicaes introdutrias sobre a Lingustica Textual, descortinando ao leitor brasileiro a nova cincia, sua trajetria e conceituao.

    Fvero e Koch (1983), no livro Lingustica Textual: Introduo, con-firmam:

    O objetivo precpuo desta obra apresentar ao leitor brasileiro uma vi-

    so panormica da lingustica textual, ramo da cincia da linguagem

    que vem tendo grande impulso, nas ltimas dcadas, especialmente na

    Europa, e cuja divulgao em nosso pas ainda incipiente, em razo de

    existirem poucas obras traduzidas para o portugus. (FVERO e KOCH,

    1983, contracapa)

    Nos anos seguintes, os pesquisadores da rea em questo, atravs das vrias publicaes de livros e revistas especializadas, da realizao de congressos e seminrios, da criao de ncleos de pesquisa em v-rias universidades brasileiras, da criao de cursos de ps-graduao e, consequentemente, das dissertaes de mestrado e teses de doutorado, firmaram os estudos em Lingustica Textual no Brasil e demonstraram o acompanhamento das discusses e avanos da comunidade cientfica mundial.

  • Lingustica Textual: Uma Viso Panormica

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    Captulo 03

    Ao longo de nossa breve exposio sobre a trajetria da Lingustica Textual no cenrio mundial e seus reflexos no Brasil, voc seguramente pde perceber que o objeto de estudo dessa disciplina o texto e que todas as etapas de sua evoluo como disciplina esto definidas de acor-do com as diferentes concepes de texto adotadas por seus defensores tericos.

    Koch (2004) define vrias concepes de texto que fundamentaram os diferentes momentos da evoluo da Lingustica Textual, momentos estes que no so estanques, pois muitas vezes coabitam nas etapas de sua trajetria:

    texto como frase complexa ou signo lingustico mais alto da hie-rarquia do sistema (concepo de base gramatical);

    texto como signo complexo (concepo de base semitica);

    texto como expanso tematicamente centrada de macroestrutu-ra (concepo de base semntica);

    texto como ato de fala complexo (concepo de base discursi-va);

    texto como discurso congelado, como produto acabado de uma ao discursiva (concepo de base discursiva);

    texto como meio especfico de realizao da comunicao ver-bal (concepo de base comunicativa);

    texto como processo que mobiliza operaes e processos cogni-tivos (concepo de base cognitivista);

    texto como lugar de interao entre atores sociais e construo interacional de sentidos (concepo de base sociocognitiva-in-teracional).

  • Estudos Lingusticos II

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    3.4 Princpios de construo textual: coeso e coerncia.

    Comentamos, nos itens anteriores, a divergncia que encontramos na literatura pertinente Lingustica Textual, sobre o enfoque terico dos diversos grupos de estudiosos e principalmente, as diferentes con-cepes acerca do seu objeto de estudo, o texto.

    Porm, independente da defesa de cada linha terica, parece unni-me entre os estudiosos do texto que os elementos de coeso e coerncia esto fortemente relacionados no processo de compreenso e produo do texto. Esses dois conceitos so reconhecidos como eixos que garan-tem a preservao da textualidade.

    Ento, nosso objetivo neste item trazer algumas consideraes importantes sobre a construo textual, embora numa proposta ampla, presente nos paradigmas tericos de alguns estudiosos. Temos consci-ncia, porm, de que no esgotaremos a conceituao, como tambm, as possibilidades de significao dos dois eixos.

    Como j mencionamos em nossas pginas anteriores, quando al-guns tericos definiam o texto como frase complexa, formado por uma sequncia de enunciados, surgia o termo coeso como o nico elemento capaz de dar textura ao texto, ou seja, para muitos era a coeso entre as frases que permitia a existncia do texto como tal. Ento, dentro dessa viso todo texto ser compreensvel se apresentar elementos coesivos na estrutura de suas frases e entre elas.

    No entanto, com as modificaes conceituais sobre o texto, apa-recia, tambm, a necessidade de conceituar coeso e coerncia como elementos distintos, portanto, em nveis diferentes de anlise. Esta viso defendida por Beaugrande e Dressler, que atestam que a coeso est relacionada ao modo como enlaamos os elementos textuais numa se-quncia; a coerncia transpassa os limites de ser uma marca textual, pois diz respeito aos conceitos e s relaes semnticas que tornam possveis a unio dos elementos textuais.

    Marcuschi (2007) amplia a definio sobre coerncia com a seguin-te afirmao:

  • Lingustica Textual: Uma Viso Panormica

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    Captulo 03

    [...] uma construo resultante do trabalho colaborativo do ouvinte/

    leitor no ato de co-produo do texto interativamente. A operao de

    produo de coerncia no um ato puramente individual, mas coleti-

    vo [...]. O sentido passa a ser uma construo social realizada na comuni-

    cao. (MARCUSCHI, 2007, p.15)

    Ento, podemos constatar que a coerncia um ato coletivo, uma atividade conjunta de interdependncia entre os participantes da situa-o comunicativa e, sendo assim, esta atividade no pode prescindir do contexto em que foi produzida, pois, para sua compreenso, colaboram os componentes cognitivos e pragmticos.

    Destaca, tambm, Marcuschi (apud Koch, 2005), que a coeso no est atrelada aos processos cognitivos ocorridos entre os usurios dos textos, mas sim, uma conexo sequencial que est atrelada estrutura superficial do texto e de aspecto puramente lingustico.

    Para ampliarmos as idias j mencionadas, trazemos o conceito de coeso defendido por Cassany (1997). Em seus estudos, o autor nos ad-verte que as diferentes frases que compem um texto esto conectadas por uma densa rede de relaes que se utiliza de mecanismos de coeso referncia (pessoal, demonstrativa, comparativa); substituio (nomi-nal, verbal, frasal); elipse (nominal, verbal, frasal); conjuno (aditiva, adversativa, causal, temporal, continuativa); coeso lexical (repetio, sinonmia, hiperonmia, usos de nomes genricos, colocao) e estes mecanismos asseguram a interpretao de cada frase com as demais, ou seja, garantem a compreenso global do texto.

    Sobre esta funo dos mecanismos da coeso, afirma Cassany (2000):

    Siempre pongo el ejemplo del collar de perlas para explicar la cohesin

    textual. Del mismo modo que una retahla de perlas necesita un hilo

    interior, las frases del escrito mantienen mltiples lazos de unin, ms o

    menos evidentes: puntuacin, conjunciones, pronombres, determinan-

    tes, parentescos lxicos y semnticos, relaciones lgicas, etc. El conjunto

    de esas conexiones establece una red de cohesin de texto, la textura

    escondida del escrito, que le da la unidad para poder actuar como men-

    saje completo y significativo. (CASSANY, 2000, p.162)

  • Estudos Lingusticos II

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    Para Koch (2005 p. 19) a coerncia semntica, pois como o texto atua como unidade, op