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REVISTA LEI DIVINA PARA ULTIMOS AJUSTES

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SUMÁRIO

03 Editorial

04 Boa Nova

10 Traduttore, Traditore

17 Poesia Espírita

23 A Revelação Cristã e os Fundamentos Científicos do Cinema

29 Companheiro Libertado

35 Há Dois Mil Anos

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Coordenador Haroldo Dutra DiasSub-coordenadoraCélia Maria Rey de CarvalhoSecretárioFlávio Rey de CarvalhoEquipeAffonso Chagas CorreaRicardo de Andrade T. MesquitaWagner Gomes PaixãoSimão Pedro de LimaFederação Espírita Brasileirahttp://www.febnet.org.br/ NEPEhttp://www.febnet.org.br/nepe

EDITORIALAs percepções sobre a existência de Ser Criador e Superior estão presentes na maioria das crenças no âmbito das religiões, nas conjecturas filosóficas e até em raciocínios científicos.Ao longo do processo civilizatório de nosso Orbe, alteraram-se os horizontes para a compreensão dos contextos. A compreensão sobre a existência de Deus se altera de acordo com a evolução humana, desde os horizontes1: tribal, agrícola, civilizado, profético, e espiritual, onde se sente o amor, a justiça e a caridade. Houve momentos tão complexos que se chegou a homenagear o “deus desconhecido”.2

De acordo com a compreensão de que a Lei de Deus está escrita na consciência3, amplia-se a responsabilidade e a valorização do livre-arbítrio.A Lei de Deus corporificada nas ações humanas é um convite aos esforços para o bem, do aprimoramento espiritual e da paz. A legislação humana se aperfeiçoa no mesmo diapasão.Os ensinos dos Espíritos do Senhor nos enchem de consolo, esperança, fé e alegria. A luz que emana do Alto ilumina em todas as direções. A sintonia entre o homem e o Criador se amplia quando a consciência consolida os registros da Lei Divina. A esta altura, o Homem se transforma em espelho, irradiando ondas nas faixas do bem, do belo e da paz!

“Deus conosco”4 se concretiza!

Antonio Cesar Perri CarvalhoPresidente interino da FEB

Referências:1 – Pires, José Herculano. O Espírito e o Tempo. São Paulo. Ed. O Pensamento. 1964. Cap. I a V, p.15-65.2 – Atos, 17:23.3 – Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos. Trad. Bezerra, Evandro N. Ed. FEB. Livro III. Cap. I. Questão 621.4 - Isaías 7:14: “Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho e lhe chamará Emanuel”. Vide: Mateus 1:23.

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4 - Lei Divina Março

BOA NOVASimão Pedro de Lima

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A INTERPRETAÇÃO DOS EVANGELHOS

“Quem tem ouvidos, ouça” (Mateus 13:9). Assim Jesus se expressava quando de seus ensinos, indicando às pessoas que era necessário entender suas palavras, mas que esse entendimento demandaria do ouvinte uma atenção especial, pois não eram apenas palavras retóricas, mas ensinamentos para a vida. Era como se dissesse: quem estiver atento às minhas palavras, entendê-las-á e entendendo-as viverá melhor.

As palavras de Jesus, embora ditas em um determinado contexto histórico-cultural recuado no tempo, ainda ecoam hodiernamente, servindo como roteiro de vida. São palavras remotas, porém, paradoxalmente, atuais, pois são “palavras de vida eterna”, como bem asseverou o apóstolo Pedro (João 10:68).

Os tempos mudaram, os costumes mudaram, mas isso não implica em dizer que os ensinamentos de Jesus mudaram. São os mesmos ensinos, são as mesmas doces palavras que tocaram o coração e a mente das pessoas que o ouviram diretamente. Entendê-las, interpretá-las em espírito e verdade, é o que se precisa fazer. Jesus foi preciso quanto a essa necessidade. Instado por um certo Mestre da Lei a lhe dizer qual era o maior dos mandamentos, Jesus, lhe diz: “o que está escrito na Lei? Como lês?” (Lucas 10:26)

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É justamente isso que se torna preciso fazer. Como entendemos o que Jesus ensinou? Como, hoje, lemos? Olhando do presente para o passado, a moderna exegese busca no método gramático-histórico uma das formas para interpretar os ensinos de Jesus. Faz, para tanto, uma análise gramatical, observando a tradução, a sintaxe e a interpretação histórica para as palavras. Compreender o sentido das palavras e as condições históricas em que foram registradas, entender o que as “escrituras” representavam para os primeiros destinatários, seja, talvez, um bom começo.

Jesus falava para um povo que tinha suas leis calçadas no sentimento religioso. Um povo que lutou para a sua fixação na “terra prometida”, um povo que dominou e foi dominado, que se viu cativo no Egito e na Babilônia, que mesclou costumes, mas que refutava aqueles que não fossem os genuinamente israelitas. Um povo que naquela época estava sob o jugo romano e que esperava o cumprimento da profecia que versava sobre a vinda de um Messias, um libertador, que empunhasse a espada de Davi. Doutores da lei, escribas, gente do campo, da pesca, pessoas iletradas, revoltosos políticos, esses eram os primeiros destinatários da mensagem de Jesus. Para esses, Jesus dizia: “arrependei-vos, pois está próximo o Reino de Deus” (Mateus 4:17). Para esses dizia: “Não penseis que vim destruir a Lei ou os profetas, não vim destruir, mas cumprir.” (Mateus 5:17. Para alguns, Jesus falava com assertividade, para outros, falava por parábolas, respeitando a condição de entendimento de cada ouvinte.

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“Diz Cristo, que saiu o Pregador Evangélico a semear

a palavra divina. Bem parece este texto dos livros de Deus. Não só faz menção do semear, mas faz também caso do sair. Exiit, porque no dia da messe hão-nos de

medir a semeadura, e hão-nos de contar os passos. [...] Para quem lavra com Deus até o sair é semear, porque também das passadas colhe frutos. Entre os

semeadores do Evangelho há uns que saem a semear, há outros que semeiam sem sair. [...] Aos que têm a seara em casa, pagar-lhes-ão a semeadura; aos que

vão buscar a seara tão longe, hão-lhes de medir a semeadura, e hão-lhes de contar os passos. Ah dia do

Juízo! Ah Pregadores! Os de cá, achar-vos-ei com mais Paço, e os de lá com mais passos: Exijt seminare. [...] Diz Cristo que o semeador do Evangelho saiu, porém

não diz que tornou; porque os Pregadores Evangélicos, os homens que professam pregar e propagar a Fé,

é bem que saiam, mas não PE bem que tornem. [...] Porque sair para tornar, melhor é não sair. [...]

Ide e pregai a toda a criatura.

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Vê-se claramente que as interpretações dos evangelhos contam de muito tempo. Em cada época, em cada religião, os evangelhos foram analisados, buscando uma ética relacional para a existência humana.

No segmento espírita não foi diferente. Formas interpretativas foram e são apresentadas, visando uma melhor compreensão, em espírito e verdade, dos ensinamentos do Cristo. Além de Allan Kardec, notáveis estudiosos espíritas, de tempos idos, dentre eles Cairbar Schutel (Parábolas e Ensinos de Jesus) se propuseram a apresentar estudos interpretativos dos evangelhos, valendo-se da contribuição dos ensinamentos espíritas.

Espíritos como Emmanuel, Amélia Rodrigues, Humberto de Campos, trouxeram fatos e palavras de Jesus, não expressos nos evangelhos, que preencheram certas lacunas na exegese. A interpretação dos evangelhos, com a contribuição dos espíritos, ficou mais rica, mais profunda. Reviveram-se períodos da história em que as pessoas consagravam esforços e tempo para o entendimento dos evangelhos.

No particular estudo minucioso do evangelho é preciso ressaltar o trabalho de pessoas que enriqueceram a interpretação. Com singeleza, com simplicidade, mas com profundidade de análise, desenvolveram o estudo que foi carinhosamente chamado de “Evangelho Miudinho”. Parte desses estudos pode ser apreciada no livro Luz Imperecível, editado sob a coordenação de Honório Onofre de Abreu, em 1997, em comemoração aos 40 anos do Grupo Espírita Emmanuel, de Belo Horizonte. Os evangelhos nos trouxeram diversos ensinos de Jesus. Todos os seus ensinos? Talvez não, como bem asseverou o apóstolo João ao escrever “Há, porém, ainda muitas outras coisas que Jesus realizou, que se fossem escritas uma por uma, nem mesmo – suponho – o mundo teria lugar para os livros escritos” (João 21:25). É justamente nesse ponto que a doutrina espírita

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Com singeleza, com simplicidade,

mas com profundidade de

análise...

representa um diferencial interpretativo dos evangelhos. Com a presença dos espíritos, aclarando fatos e desdobrando os ensinos de Jesus, com os estudos sistematizados do evangelho à luz da doutrina espírita, entender-se-á que, de fato, Jesus é a porta e Kardec a chave. Assim sendo, todos teremos “ouvidos para ouvir” e as palavras do Cristo ecoarão em nossos corações e mentes.

Bibliografia Consultada : DIAS, Haroldo D. O novo Testamento. Brasília (DF), Brasil: Conselho Espírita Internacional, 2010.VIEIRA, Antônio. Sermões: Padre Vieira. Organização e introdução Alcir Pécor. São Paulo: Hedra, 2000.

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TRADUTTORE, TRADITORE

Haroldo Dutra Dias

O mercado editorial conta com inúmeras traduções do Novo Testamento, cada qual concebida e executada segundo necessidades do público leitor. Há aquelas elaboradas em linguagem popular, ao lado de outras elaboradas em estilo mais clássico, mas todas elas estribadas em pressupostos linguísticos, teológicos e pastorais específicos, ainda que não explicitados.

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As mais renomadas traduções disponíveis em língua portuguesa, entre elas a Bíblia de Jerusalém, a Bíblia do Peregrino, a Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB), João Ferreira de Almeida, Nova Versão Internacional (NVI), constituem projetos que nasceram na Europa Continental e nos Estados Unidos da América, e só posteriormente foram traduzidos e adaptados ao público falante deste idioma. É oportuno destacar, também, que as maiores descobertas de manuscritos gregos do Novo Testamento ocorreram entre 1780 e 1948, razão pela qual na segunda metade do século vinte foram reunidas renomadas comissões bíblicas a fim de lançarem novas traduções alinhadas com os recentes avanços da pesquisa bíblica.

As recentes teorias da tradução, por sua vez, postulam que elas podem ser classificadas em “source oriented” e “target oriented”, ou seja, orientadas para o texto fonte ou para o texto de destino. Essa classificação diz respeito aos dois caminhos que podem ser adotados pelo tradutor: levar o leitor a se identificar com determinada época e ambiente (texto fonte), ou tornar essa época e esse ambiente acessíveis ao leitor da língua e da cultura do texto traduzido, mediante estratégias de adaptação. Um projeto de tradução poderia ser classificado como “source oriented”, na medida em que pretendesse despertar o leitor para as características culturais da Palestina do primeiro século da era cristã.

Dito de outro modo, uma tradução orientada ao texto fonte assume o compromisso de transportar o leitor ao cenário no qual Jesus viveu, agiu e ensinou, a fim de que escute suas palavras, seus ensinamentos como se fosse um morador daquela região.

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Noutro giro, um projeto de tradução classificado como “target oriented”, reclama estratégias distintas, conferindo ao tradutor maior flexibilidade no processo de adaptação do texto para torná-lo mais acessível ao entendimento do leitor. Nesse caso, é permitido o sacrifício do original para facilitar a compreensão. Eis o cenário do tradutor dos textos bíblicos.

É indiscutível que esses livros podem ser lidos a partir da nossa experiência atual, levando-se em conta vinte séculos de tradição religiosa. Nessa perspectiva, a história da interpretação desses livros assumiria papel preponderante, descortinando as inúmeras abordagens e conteúdos que se sobrepuseram ao texto, ao longo da sua transmissão.

Não se trata de desmerecer, condenar ou

polemizar a respeito dos dogmas,

teologias e crenças das várias escolas

do pensamento cristão.

A questão crucial reside na possibilidade de se percorrer caminho diverso. Imitando o arqueólogo, cuidadosamente e pacientemente, seria possível retirar as dezenas de camadas que se sobrepuseram ao texto grego do Novo Testamento, ao longo de vinte séculos de interpretação, para contemplá-lo o mais de perto possível?

Esse esforço se concentraria na recuperação do sentido original das palavras, expressões idiomáticas, referências e inferências do texto. Seria uma espécie de “arqueologia

linguística e cultural” que buscaria resgatar a multiplicidade de dados que conformaram o ambiente no qual nasceram os livros que compõem o Novo Testamento.

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Nessa proposta duas questões teriam de ser respondidas: Como esse texto seria lido por um habitante da Galileia, da Judeia, das regiões banhadas pelo Mediterrâneo, no primeiro século da nossa era? Quais referências e inferências o texto despertaria no ouvinte daquela época e região, considerando-se o ambiente linguístico, cultural, religioso, político e econômico da época? Figuremos um exemplo singelo: o verbo grego “bapto” (mergulhar, imergir, lavar), pelos processos de derivação das palavras, é responsável pela formação do substantivo “baptismo” (mergulho, imersão, o ato de lavar). Ao se traduzir esse substantivo por batismo, é impossível que o leitor moderno não associe o vocábulo aos temas teológicos ligados ao sacramento do batismo. Todavia, urge reconhecer que essas teologias não existiam ao tempo em que os livros do Novo Testamento foram redigidos, ou melhor, não existiam nem mesmo igrejas nos moldes das atuais. Não possuímos sequer registros seguros de que os judeus, sistemática e institucionalmente, utilizavam a imersão em água como ritual para conversão de prosélitos.

Nesse caso, seria necessário escavar, aprofundar para recuperar o frescor original do termo, possibilitando ao leitor moderno o acesso a essa prática do cristianismo nascente sem as camadas interpretativas que se formaram ao longo dos séculos.

Não se trata de desmerecer, condenar ou polemizar a respeito dos dogmas, teologias e crenças das várias escolas do pensamento cristão. O que se procura é possibilitar o acesso dos indivíduos não especializados em pesquisa bíblica aos elementos originais da tradição cristã, sem o colorido interpretativo posteriormente conferido a cada um deles.

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Haroldo Dutra DiasManter a coerência e a fidelidade a esta proposta exige a farta utilização de notas de rodapé contendo esclarecimentos sobre os vocábulos gregos, as tradições judaicas, os aspectos históricos e geográficos, os elementos culturais circundantes, de modo a tornar claras as premissas e as opções do tradutor em cada versículo.

Nesse caso, as notas de rodapé se transformaram, ao mesmo tempo, em fonte de esclarecimento e material de suporte para a leitura, complementando informes impossíveis de serem transmitidos com a simples tradução do texto grego.Funciona também como fator de abrandamento do provérbio italiano “traduttore, traditore” (tradutor, traidor), já que torna explícita as escolhas do tradutor, possibilitando ao leitor avaliar essas escolhas e fazer as suas.

Estamos, porém, convencidos da impossibilidade de se recuperar o ambiente no qual foram produzidos esses textos sem um esforço do leitor. Deslocar-se em direção ao texto implica desconforto, estranhamento, porém representa uma jornada rica e intrigante de encontro com a mensagem genuína de Jesus e de seus colaboradores diretos.

Esse desconforto começa na abundância de notas de rodapé, ou notas finais, as quais oferecem diversos conteúdos que podem ser classificados em duas grandes categorias: lingüísticos e culturais. Os elementos linguísticos dizem respeito a esclarecimentos relativos aos vocábulos gregos, expressões idiomáticas, formação de palavras, hebraísmos e aramaísmos, questões sintáticas, estilo literário dos evangelistas, estrutura literária dos livros, em suma todos os aspectos relacionados ao texto propriamente dito.

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Por elementos pode-se entender todas as questões relacionadas ao ambiente no qual os textos do Novo Testamento foram produzidos, tais como história, geografia, antropologia, características do Império Romano (economia, exército, administração, justiça, legislação), dados culturais dos países banhados pelo Mar Mediterrâneo, sobretudo a Grécia, religiões pagãs, hábitos, costumes e tradições dos galileus e, principalmente, tradição religiosa judaica.

O Novo Testamento está repleto de inferências e referências à tradição religiosa do povo hebreu. Nunca é demais lembrar que todos os redatores dos livros neotestamentários eram hebreus, com exceção do evangelista Lucas. No entanto, mesmo no caso dele, destacam-se os traços da cultura judaica, em razão da influência exercida por Paulo de Tarso em sua obra.

Em suma, estamos convencidos do proveito de semelhante empreendimento, não obstante os imensos desafios que o cercam, tendo em vista as possibilidades que se abrem a leitor quando toma conhecimento da riqueza do texto original e do seu contexto.

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Mensagem FraternaAuta de Souza

Meu irmão, tuas preces mais singelasSão ouvidas no espaço ilimitado,

Mas sei que às vezes choras, consternado,Ao silêncio da força que interpelas.

Volta ao teu templo interno abandonado,- A mais alta de todas as capelas -

Ouve o teu coração em cada prece.Deus responde em ti mesmo e te esclarece

Com a força eterna da consolação;

Compreenderás a dor que te domina,Sob a linguagem pura e peregrina

Da voz de Deus, em luz de redenção.Da voz de Deus, em luz de redenção.

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PoesiaEspírita

Uma das mais profundas e legítimas introduções que vise a uma abordagem sobre a poesia seja a exaltação de longevos livros sagrados.

Os Vedas, Bhagavad-Gita... em nosso caso, pelo critério de familiaridade cultural, a Bíblia, todos exemplificam o sobrescrito. Resultam de tessituras literárias a várias mãos em diversas épocas. Foram produzidas, modificadas, refundidas, traduzidas, adaptadas e dialogam com o gosto popular.

Em sentido metafórico (e as comparações são instantâneas a alguns, requerem o esforço e até boa vontade de outros receptores – ouvintes e leitores) no jardim da literatura humana. Há florações de textos religiosos. A Bíblia assemelha-se a um girassol. Ele é formado por muitas florezinhas. Os Salmos de Davi (uns irrepreensíveis e visionários, vários belíssimos, outros de acordo com as exigências da época), o Cântico dos Cânticos, os preceitos do Eclesiástico, o Livro da Sabedoria, a magnífica Gênese, a intensidade dos Atos, o enigmático Apocalipse...

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Magistral e simples, o episódio da Criação constrói uma trama que envolve diferentes modalidades literárias: romance (Adão e Eva), suspense (a árvore do fruto proibido), aventura (transgressão ao comer o fruto), drama (a expulsão do paraíso), saga (o degredo)...

Melodiosa é a criação, delicioso o paraíso, insinuante a serpente, tentador o conhecimento, atraente a aventura, peremptória a sentença...

Eis-nos irreversível e progressivamente descobridores e conhecedores. Exploramos a realidade que se manifesta aos sentidos, nomeamos, conceituamos, interpretamos, representamos, estilizamos... O jogo com as palavras decorre da serpente (pesquisa), da árvore (conhecimento), das cavernas, da pedra, do fogo, da água, do raio, do trovão, da alegria, da dor, da morte, da vida, do corpo, da alma, do espírito. A escrita literária pode ser um extravasamento, um exercício intimista (o diálogo consigo), e pode visar à leitura, almejar o outro, nestes casos torna-se intersubjetiva. Por diversos meios (orais: arautos, trovadores, trupes, cavaleiros andantes...) e escritos (garatujas, arabescos, ideogramas, desenhos, cordel, folhetim...) se manifestam as representações de nossas idéias e pensamentos.

Se minudenciarmos demais Teoria e História Literária, causaremos dois problemas: cansar os leitores e expor a ignorância deste articulista. Logo, deixemos o quadro no genérico e em pinceladas largas.

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No ponto da história em que nos situamos, especificamente na poesia, depararemos com algumas classificações. Umas seguem o critério (movediço!) das épocas; outras, o das padronizações (imprecisas!).

É muito didático e trabalhoso fazer enquadramentos, mas obviamente se incorre em algumas arbitrariedades de quem analisa. Dialeticamente, o escritor – e por extensão o poeta – também segue uns princípios particulares, umas regras, recebe influências, revela pioneirismos; em suma, relaciona com as palavras um tanto particular, outro tanto predeterminadamente.

Há correntes literárias mais difundidas em períodos históricos (hegemonia), de maneira que tiveram predomínio e “marcaram época”. Sem preocupação rigidamente cronológica de nossa parte, para efeito de exemplificação citamos alguns movimentos mais destacados dentre movimentos e escolas de criação poética que foram o classicismo, o neoclassicismo, o parnasianismo, o simbolismo, o romantismo, o modernismo, os pós-modernismos...

Não há medida rigorosa de qualidade que se aplique na comparação dessas manifestações. Até porque o ambiente social em que surgem e se apresentam nunca é neutro. A ideologia dominante, a linha contestatória, o extremismo revolucionário; são ideários que perpassam e intercambiam com o talento, o repertório, o motivo, os valores, os costumes, a finalidade, os recursos, em síntese, o mundo do artista, do artífice, seja ele músico, escultor, arquiteto ou escritor.

Verão os amigos leitores que a temperatura de nosso ensaio aumenta. Paradoxalmente um tufão de crítica se avoluma e não

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tardará que se precipite contra alguns castelos construídos sobre areias da fama.

Prossigamos.

Como o leigo, em sua intuição, e o especialista, em sentido geral, identifica um texto poético? As razões podem ser pela originalidade com a coisa é escrita ou ainda por aspectos técnicos. Para muitos, a poesia se caracteriza pela rima (terminações iguais, às vezes visuais, às vezes sonoras). Em outras situações, o que sugere sua presença é o ritmo, o número de sílabas, a musicalidade... Há quem atribua poesia até às paisagens, ao canto dos pássaros, às coreografias dos pássaros e cardumes, às disposição estética intencional ou casual de objetos.

Alguns autores e poemas em língua portuguesa se consagraram (muitas vezes graças à difusão escolar), casos de Canção do Exílio em que Gonçalves Dias suspira a saudade, Castro Alves conclama as forças dos mares pela causa da Abolição, os românticos usam a essência sublime, delicada e breve da flor que perfuma e fenece para cultuar a(o) amada(o); uns cantam maviosamente, outros cultuam, contritos, e, óbvio!, há dissidentes dessa aparente harmonia dos arranjos. Os realistas desnudarão o corpo do motivo em sua crueza, mostrarão as vísceras da crítica social; Augusto dos Anjos fará poemas biológicos de estarrecer os puritanos e idealizadores; os modernistas dilapidarão o templo da rima e da métrica; os pós-modernistas dizimarão as estéticas tradicionais e tal ponto que escandalizarão os parnasianos (que persistirão... mais que isso: se obstinarão às vezes até obsessivamente no aprimoramento do equilíbrio da forma, do comprimento, das rimas (as ricas, as raras...). Por falar em comprimento, os concretistas farão da aparência a mensagem explícita ou subliminar e a quem prefira o maior radicalismo, valha-lhe o dadaísmo, que não deixa pedra

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sobre pedra; aliás, nem haverá pedra (pobre Drummond!).Daqui para adiante atenderemos às expectativas de uns, debandarão outros. Nosso artigo não é despretensioso. É fundamentalmente espírita. Por isso alguns pareceres são registrados para iluminar nos caminhos, nortear no alto-mar das aparências, orientar na saída do labirinto, organizar a Torre de Babel. Evidentemente, assumimos a condição de “servos inúteis”; devemos nos diminuir a fim de que o CRISTO cresça e, neste caso, a essência e a mensagem são o que importa.

Primeiramente, inteligência não é sinônimo de sabedoria. O talento de Bocage e Mozart tecnicamente é largamente reconhecido, todavia não constituem exemplos para a o espírito que almeje a cristianização. Na expressão bíblica, “o diabo se reveste de anjo de luz”. Muitos conteúdos deploráveis se trajam de poesia; poemas celebrados como clássicos apenas constam das listas didáticas e de excelência à custa de interesses editoriais, de obsessões coletivas, de gostos desvairados (este ponto de vista não é admitido no campo da Antropologia Cultural, por exemplo, mas agora estamos nos valendo da ótica espírita, lembram-se?). Numa das psicografias da obra “Do País da Luz”, médium Fernando de Lacerda, o renomado Eça de Queiroz revela com o humor sarcástico que lhe é peculiar que foi orientado a incinerar os seus livros “clássicos” na alfândega espiritual, pois nada havia neles de aproveitável à sua nova condição de espírita desencarnado.

Um poema pode ser belíssimo, mas de grave essência. De incontestável beleza é o poema “Ismália” (uma obra-prima cujo enleio nos distrai das duas grandes temáticas: a loucura e o suicídio).

Na linguagem de JESUS, “muitos dos primeiros serão os últimos e exaltados serão humilhados”. Isso se aplica aos intelectuais da política, sofistas da libertinagem, ícones da rebeldia, aventureiros da revolução, mercadejadores da palavra.

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Nos altiplanos as portas são estreitas. O sentido essencial é consagrada magistralmente pelo grande Paulo: “Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, sou como um bronze que soa ou um címbalo que retine... se não tiver amor, de nada me aproveita”.

O livro “Parnaso de Além-Túmulo” é uma coletânea que atesta a imortalidade, reapresenta o estilo e é crivada pelo Médium do Amor.

O Parnaso cumpriu a missão de alvoroçar a sociedade em geral, a Associação Brasileira de Letras em particular. Poetas, que trouxeram suas dracmas, revelaram suas reflexões, abjuraram o materialismo que a alguns supliciou, aterrissaram nas páginas e retornaram a seus “leitos, soldos e colheitas”.Constitui marco na história mediúnica planetária. Teve um fim em si mesmo. Tem o cunho parnasiano (talvez pelo grau de dificuldade para se improvisar nessa categoria. Afinal, as matrizes advêm do “Mundo das Idéias”, segundo Platão; “Planos Espirituais”, concordamos com Kardec) e simbolista (graças a sua religiosidade imanente).

Além das obras em verso, há os romances, os de codificação, as didáticas, as científicas, as de opinião, as de revelação e as não publicadas (familiares e de receituário).

É de esperar que os leitores-irmãos, no debate que este ensaio instiga, se perguntem sobre as qualidades a que se deve almejar no exercício poético (e literário) do espírita.

Não nos furtemos a algumas recomendações. Algumas perguntas devem preceder o ato da criação em nosso caso: é bom? É útil? É verdadeiro? É belo?

O artigo decerto ficará inacabado porque tem a missão de estimular a reflexão e cada leitor pode contribuir na tessitura do tema aqui tratado.

A REVELAÇÃO CRISTÃE OS FUNDAMENTOS CIENTÍFICOS

DO ESPIRITISMO

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A REVELAÇÃO CRISTÃE OS FUNDAMENTOS CIENTÍFICOS

DO ESPIRITISMO

Admiráveis são as conquistas da inteligência humana num contexto existencial que, por si, ainda é um desafio de interpretação.

A Revelação do Mundo em que vivemos diz respeito às descobertas que os seres humanos fazem, todo dia, no meio em que respiram e por dentro de si próprios. Há estreita correlação entre o exterior geográfico e o interior de cada ser, por mais dúvidas e hesitações esse processo de interação e aprendizado fomente. Mas foi a partir desse movimento de vida em expansão, tornando-se inteligível, que as Ciências surgiram, que a Filosofia alcançou esplendores racionais e que a Religião vem sendo descortinada como caminho intuitivo e de adoração, num antelóquio da suprema inserção da criatura humana em Deus – o Absoluto.

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Os gregos iniciaram a pesquisa das Leis Naturais a partir do Plano Físico e não poderia ser diferente, pois a realidade material é a que primeiro tange os nossos sentidos. E Allan Kardec, o Codificador do Espiritismo, tão bem compreendeu esse imperativo, que adotou semelhante metodologia, partindo do simples para o abstrato, dos fenômenos físicos em direção da realidade espiritual – a Causa de todos esses Efeitos que nos sinalizam a Vida Cósmica.

Esses estudos, que formam a base do Edifício Espírita-Cristão, nos instrumentalizam a sensibilidade e a inteligência para exploração dos Tesouros Evangélicos a nós legados por Jesus Cristo.

Jesus inaugurou na Terra as mais sublimes concepções da Vida Universal e delineou com seus exemplos a Era Nova da Regeneração, em que as Leis Divinas passam a constituir a Verdade, sobre a qual se levanta uma nova ordem de comportamento e de desenvolvimento das virtudes – as definitivas conquistas dos seres.

Portanto, é como instrumento da evolução para o justo desdobramento da nossa Cultura Humana, em base tríplice (Ciência, Filosofia e Religião), que o Espiritismo doutrinário surgiu desde 1857, com a publicação de O Livro dos Espíritos, concluindo-se, esse processo que alicerça novos tempos para o conhecimento humano, com a publicação de A Gênese em 1868, considerando-se todos os exemplares da Revista Espírita publicados pelo Codificador e todas as obras correlatas nascidas de suas mãos diligentes e sábias, a serviço do Espírito de Verdade.

São de Kardec as seguintes instruções acerca da Missão de Jesus e também a que compete ao Espiritismo na atualidade do mundo:

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“Se o Cristo não pôde desenvolver o seu ensino de maneira completa, é que faltavam aos homens conhecimentos que eles só podiam adquirir com o tempo e sem os quais não o compreenderiam; há muitas coisas que teriam parecido absurdas no estado dos conhecimentos de então. Completar o seu ensino deve entender-se no sentido de explicar e desenvolver, não no de ajuntar-lhe verdades novas, porque tudo nele se encontra em estado de gérmen, faltando-lhe só a chave para se apreender o sentido das palavras.” (A Gênese, capítulo I, Item 28, A. Kardec, FEB)

A abertura mental que o tempo opera nos seres por obra do progresso tem lastro nas experiências somadas de geração a geração, de civilização a civilização e o grande desafio de interpretar crenças e mitos, misticismos e dogmas construídos no passado para ilustração das gentes, recai sobre todos quantos alcançam a maturidade do senso moral e a clarividência dos fatos pelo adestramento de seus potenciais anímicos. É para um tempo de renovações profundas e de seleção natural que uma Revelação como o Espiritismo surge, sintetizando conhecimentos, apurando valores e apontando rumos essenciais, libertadores por excelência. Daí seu papel de “explicar e desenvolver” os documentos de natureza divina existentes na Terra.

“Mas, quem toma a liberdade de interpretar as Escrituras Sagradas? Quem possui as necessárias luzes, senão os teólogos? Quem o ousa?” – prossegue Kardec, no item 29, capítulo 1, de A Gênese. “Primeiro, a Ciência, que a ninguém pede permissão para dar a conhecer as lei da Natureza e que salta sobre os erros e os preconceitos.” (...) “Neste século de emancipação intelectual e de liberdade de consciência, o direito de exame pertence a todos e as Escrituras não são mais a arca santa na qual ninguém se atreveria a tocar com a ponta do dedo, sem correr o risco de ser fulminado.” E conclui o emérito francês: “Mas, quem julgará das interpretações diversas e

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muitas vezes contraditórias, fora do campo da teologia? O futuro, a lógica e o bom-senso”.

O Espiritismo como Consolador Prometido, vem restaurar o Evangelho para o mundo, estabelecendo uma nova visão da Vida e a verdadeira interpretação da Mensagem do Cristo que se confirma, pela experiência e pelos fatos, como Guia e Modelo da Humanidade (Questão 625, O Livro dos Espíritos, FEB).

Uma rápida apreciação dos textos abaixo nos fornecem uma constatação sensata do que vimos explorando neste artigo:“Amém, amém, vos digo: Quem crê tem vida eterna. Eu sou o pão da vida. Os vossos pais comeram o maná no deserto e morreram. Este é o pão que desce do céu, a fim de que não morra quem dele comer. Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém comer deste pão viverá para sempre. E o pão que eu darei pela vida do mundo é a minha carne” (João, cap. 6, versículos de 47 a 51, tradução de Haroldo D. Dias, Editora CEI).

“ (...) É também o que não menos claramente ressalta, do que Jesus expendeu sobre o pão do céu, empenhado em fazer que seus ouvintes compreendessem o verdadeiro sentido do alimento espiritual. “Trabalhai, diz ele, não por conseguir o alimento que perece, mas pelo que se conserva para a vida eterna e que o Filho do Homem vos dará.” Esse alimento é a sua palavra, pão que desceu do céu e dá vida ao mundo. “Eu sou, declara ele, o pão da vida: aquele que vem a mim não terá fome e aquele que em mim crê nunca terá sede.”

“Tais distinções, porém, eram por demais sutis para aquelas naturezas rudes, que somente compreendiam as coisas tangíveis. Para eles, o maná, que alimentara o corpo de seus antepassados, era o verdadeiro pão do céu; aí é que estava o milagre.” (A Gênese, cap. XV, item 51, A. Kardec, FEB)

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Dando curso à evolução das ideias e das concepções, que se tornam essenciais e morais e não mais fisiológicas ou materiais, Emmanuel discorre sobre a significação de Jesus e Seu Evangelho de Amor, para norteamento intelecto-moral dos homens, em perfeita sintonia com as bases da Terceira Revelação de Deus aos homens:

PÃO“Eu sou o pão da vida.” – Jesus. (JOÃO, 6:48.)

Importante considerar a afirmativa de Jesus, comparando-se ao pão. Todos os povos, em todos os tempos, se ufanam dos pratos nacionais. As mesas festivas, em todas as épocas, banqueteiam-se com viandas exóticas. Condimentação excitante, misturas complicadas, confeitos extravagantes, grande cópiade animais sacrificados. Às vezes, depois das iguarias tóxicas, as libações de entontecer. O pão, no entanto, é o alimento popular. Ainda mesmo quando varie nos ingredientes que o compõem e nos métodos de confecção em que se configura, é constituído de farinha amassada e vulgarmente fermentada e que, depois de submetida ao calor do forno, se transforma em fator do sustento mundial. Sempre o mesmo, na avenida ou na favela, na escola ou no hospital. Se lhe adicionam outra espécie de quitute, entre duas fatias, deixa de ser pão. É sanduíche. Se lançado à formação de acepipe que o absorva, naturalmente desaparece. O pão é invariavelmente pão. Quando alguém te envolva no confete da lisonja, insuflando-te vaidade, não te dês à superestimação dos próprios valores. Não te acredites em condições excepcionais e nem te situes acima dos outros.

(Palavras de Vida Eterna, Capítulo 134, CEC)

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Quando alguém te envolva no confete da lisonja,

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excepcionais e nem te situes acima dos outros.

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COMPANHEIROLIBERTADOAngelica da Costa Maia

Este é o título do capítulo 13 do livro “Obreiros da Vida Eterna”, de Francisco Cândido Xavier, ditado pelo espírito André Luiz, editado pela Federação Espírita Brasileira. É o quarto da série conhecida por “série André Luiz” na qual o autor espiritual desvenda o mundo pós-morte, com casos interessantes elucidando os princípios contidos na codificação de Allan Kardec.

Teria André Luiz, como a si mesmo propôs, utilizado pseudônimo para os personagens da obra? Onde se passaram os casos relatados? Quem seria o “companheiro libertado”?

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Iremos compartilhar com o distinto leitor a comovente história de vida de um dos personagens da obra citada – Dimas (o“companheiro libertado”).

Dimas de Sousa é seu nome. Nasceu em Lavras/MG, em 02/04/1881. Ainda muito jovem foi para a cidade de Macacos, no Rio de Janeiro, trabalhar com uma família, provavelmente no comércio. Lá estudou até a 4ª série do antigo curso primário. Aos 22 anos, ainda em Macacos, presenciou o crime citado no capítulo 14 da mesma obra, relatado por um dos amigos presentes ao velório de Dimas: “Poucos homens foram de boca segura como este. Conheci Dimas, faz muitos anos, e estou certo de que foi testemunha ocular de pavoroso crime, que nunca se desvendou para os juízes da Terra”.

Um ano depois do acontecimento Dimas retorna a Lavras e, aos 23 anos, casa-se com Mariquita (Maria) de Sousa Godinho, tendo ela quinze anos. Tiveram muitos filhos, ao todo 24.

Passou a trabalhar na Câmara Municipal de Lavras, encarregado de receber contas de luz nas portas das residências, já que esse serviço, na ocasião, era controlado pela Prefeitura Municipal. Terminando o expediente exercia, ainda, as funções de pintor de paredes, pois era pobre e lutava muito para criar a numerosa família.

Nessa época funcionava a coletoria que era comandada por um homem apelidado de “Zé Ministério”, não muito credor da confiança do povo. Certa feita ele deu um tremendo desfalque na coletoria e armou um plano para se livrar da responsabilidade do ato. Contratou Dimas para pintar a coletoria e este, em determinado momento, alegou necessidade de providenciar uma escada maior, já que as paredes eram altas. Zé Ministério disse que ele poderia subir na escrivaninha mesmo. Dimas assim o fez, deixando marcas do seu sapato. Á noite, Dimas vê

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bater na sua porta soldados de baionetas em riste acusando-o de roubo na coletoria enquanto trabalhava como pintor. Segundo os soldados não havia dúvida de que ele, Dimas, era o culpado. Rasgaram colchões em sua casa procurando o dinheiro, vasculharam todos os cômodos. D. Benvinda, mãe de Dimas, apavorada, procura o filho e esse lhe diz: “Mãe, a senhora acredita na minha inocência?”. Ela responde que sim. Dimas diz: “Então, basta!” Levaram Dimas como preso incomunicável. Calmamente ele seguiu com os guardas.

Na prisão aflora-lhe a mediunidade e ele, em transe, começa a escrever nas paredes da cela: “Este homem é inocente”. O espírito que se comunicava através da escrita assinava: “sou advogado de causas justas”. Este indicou o número das folhas, livro e onde se encontrariam sinais do desfalque do coletor Zé Ministério. Dimas ficou dois dias preso, até que pessoas de sua amizade, ainda que o imaginassem “louco” por causa dos fenômenos ocorridos, resolveram averiguar as informações e tudo foi desvendado. Dimas foi solto e ficou provada a culpa de Zé Ministério. Tudo conforme o espírito comunicante escrevera nas paredes da cela. O coletor foi preso e adoeceu na cadeia. Anos mais tarde ele mandou chamar Dimas para pedir-lhe perdão. Dimas procura-o na prisão, perdoa-lhe o ato pedindo às autoridades que o libertassem, pois estava muito doente. Dimas levou-o para uma pensão para cuidar melhor dele. Na pensão mesmo ele desencarnou, pouquíssimo tempo após sair da prisão, quando Dimas preparou seu enterro acompanhando o corpo até a sepultura.

Continuemos....

Pouco tempo depois de deixar a prisão, Dimas se desencantou da profissão de pintor. Ajeitou na própria casa um salão de barbeiro, muito simples, do qual sobreviveu pelo resto da existência física.

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Os fenômenos mediúnicos se avolumaram. Começou a estudá-los convertendo-se, assim, ao Espiritismo, passando a freqüentar o Centro Espírita de Lavras (fundado em 1920 por Augusto José da Silva – para mais detalhes ver “Grandes Espíritas do Brasil” – FEB), hoje Centro Espírita Augusto Silva. Em sua casa mantinha um cômodo para aplicar passes e receber mediunicamente receitas, o que fez até o final da vida, socorrendo doentes e curando os males de todos que necessitavam. Suas faculdades mediúnicas cada vez mais se intensificavam: psicofonia, psicografia, vidência, efeitos físicos, xenoglossia e cura. Os que o conheceram diziam que William Crookes se manifestava por ele com perfeição em outro idioma. Há um caso pitoresco envolvendo Dimas de Sousa, o “companheiro libertado”. Certa vez um professor da antiga Escola Agrícola de Lavras (hoje Universidade Federal de Lavras), que não acreditava nas faculdades mediúnicas, foi convidado para participar de uma reunião na casa de Dimas adiantando que desafiaria a autenticidade dos fenômenos. Compôs um poema sem lhe dar fim. Durante a sessão ele, com o poema no bolso, pediu que Dimas revelasse o que continha o papel escondido. Em transe mediúnico ele escreve o poema como se encontrava no papel, completando-o só um pouco e deixando para o professor a última palavra a ser escrita. Assombrado, este disse: “Nunca mais duvido do Espiritismo!”.As curas realizadas por Dimas foram espetaculares. Citemos algumas: •Umpedintequetinhaumladodonariztodocarcomido,talvez pelo câncer, disse: “Sr. Dimas, já está cheirando mal, dando bicho.” Com apenas um passe Dimas conteve a doença. •Umsenhortinhaváriasferidasetumoresnanuca.AMedicina tudo havia experimentado e nada de alívio. Os médicos não entendiam a doença. Em uma semana ele foi curado com passes aplicados por Dimas e exposição ao Sol, direcionando o foco de uma lente. • Um “louco” chega amarrado no cavalo. Causavamedo a todos. Dimas chegou na janela de sua casa e pediu:

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“Desamarra esse homem em nome de Deus.” Os que haviam trazido o pobre homem disseram: “ Sr. Dimas, este homem matou uma rês com as mãos, como podemos soltá-lo?” “Soltem o homem!” – disse ele. Aplicou passes e o suposto louco foi embora curado. • De outra vez lhe trouxeram um rapaz da zona ruralcompletamente transtornado. Dimas o acolheu em sua modesta casa para tratá-lo com mais tempo. O moço foge e vai para um armazém ali por perto. Lá chegando lambe todos os pires que estavam debaixo das prateleiras com veneno para ratos. Dimas foi chamado às pressas para acudir o rapaz. Aplicou-lhe passes, o rapaz vomitou todo o veneno. Não teve mais nada. •Dimasrealizoucurasemsimesmo,comoestaquevoulhes contar. Apareceu-lhe, certa vez, um tumor na cabeça. Os médicos não quiseram abrir, era enorme. Um dia ele falou para a esposa: “Mariquita, não se incomode. Vou para o escritório repousar.” Como ele demorava muito a esposa foi ver o que estava acontecendo. Ao abrir a porta leva um grande susto. Dimas estava ensangüentado e na mesinha ao lado bastante algodão sujo de sangue. Ele disse: “Dr. Augusto Silva me operou e disse que é apenas para lavar com salmoura para tirar o sangue”. O tumor secou completamente.

Dimas não tinha hora para atender. Em “Obreiros da Vida Eterna” podemos perceber sua vida intensa a ponto de descuidar de si mesmo. Vemos na obra a situação de Dimas relatada pelo assistente espiritual (cap 13): “Dimas não conseguiu preencher toda a cota de tempo que lhe era lícito utilizar, em virtude do ambiente de sacrifício que lhe dominou os dias, na existência a termo. Acostumado, desde a infância, à luta sem mimos, desenvolveu o corpo, entre deveres e abnegações incessantes.” Relendo o capítulo podemos prosseguir com o instrutor espiritual a descrever o calvário de lutas do grande servo Dimas.

A sua vida foi dedicada aos outros. Foi muito pobre e humilde. Não foi perseguido por ser espírita porque era muito respeitado

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em Lavras e na redondeza. Os médicos implicavam um pouco com suas receitas, mas ao mesmo tempo ficavam assombrados com a perfeição das dosagens e as curas realizadas.

O querido e abnegado Dimas desencarnou com 64 anos de idade, às 21h de 18/06/45, assistido por André Luiz e Jerônimo, como bem grafou Chico Xavier na obra citada várias vezes neste artigo. Em seu atestado de óbito foi registrada a causa mortis – insuficiência cardio-renal.

Estava o companheiro já desencarnado quando Chico Xavier veio a Lavras e participou de uma reunião mediúnica na casa do Sr. Acir Melgaço, com a presença de um de seus filhos (de Dimas). O Sr. Acir foi um grande companheiro no movimento espírita de Lavras e conviveu com Dimas. Tive a alegria de conhecê-lo, conviver um pouco com essa alma ilustrada e fina e também de ouvir de seus lábios: “Dimas morreu em meus braços”. Nessa reunião Dimas se fez presente e Chico o descreveu com minúcias.

Prezado leitor, sei que você deve estar se perguntando: “mas como se pode saber dessa história?” Eu explico. Em 1996, relendo a obra “Obreiros de Vida Eterna” e comentando com os mais antigos do Centro Espírita Augusto Silva, soube que Dimas vivera em Lavras e que uma de suas filhas – D. Amália de Sousa Silva – estava encarnada e residindo na cidade. Tive vontade de procurá-la e saber mais sobre essa alma nobre e boa. Fui finamente recebida por essa senhora de 85 anos, lúcida e alegre, no dia 23 de outubro de 1996, em sua residência na Rua Firmino Sales, em Lavras. Ela me permitiu uma longa entrevista registrada com extrema fidelidade, e que ora repasso aos leitores, com o seu consentimento, pois na ocasião deixou-me livre para divulgar de todas as formas a vida de seu querido pai.

Temos, então, os espíritas e simpatizantes, a honra de relembrar a vida daqueles que se tornaram servos do Senhor, para que através de seus feitos o Cristo se manifestasse em força e luz. Que o “companheiro libertado” seja abençoado sempre, para a glória de Deus e a vitória da Luz na Terra.

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Há Dois Mil AnosIncursões históricas sobre o livro “Há Dois Mil Anos”

A venda de escravos em Roma

Resumo: O presente trabalho tem por escopo a avaliação de dados históricos contidos no livro “Há Dois Mil Anos”, da psicografia de Francisco Cândido Xavier. Designadamente, propõe-se o estudo de um trecho da obra que trata da venda de um jovem escravo judeu, que aduz regras de venda de escravos na Roma antiga.

Palavras-chave: Psicografia – mediunidade – história – Direito Romano – venda de escravos.

Abstract: The scope of this paper is to review the historical data presented in the book “Two Thousand Years ago”, psychographed by Francisco Candido Xavier. In particular, it is proposed to study a book’s excerpt about the sale of a young Jewish slave, wich reveals rules for the sale of slaves in ancient Rome.

Key-words: Psychographics - mediumship - history - Roman Law - sale of slaves.

Sumário1. Introdução; 2. A passagem selecionada; 3. A prática de dependurar placas nos pescoços dos escravos; 4. A prática de untar de gesso os pés descalços dos escravos; 5. A prática de colocar um gorro de lã sobre a cabeça do escravo; 6. O estado de seminudez dos escravos; 7. As fontes históricas disponíveis à época da produção do livro “Há Dois Mil Anos” sobre a venda de escravos em Roma; 8. Conclusões parciais; 9. Bibliografia.

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Marco Paulo Denucci Di Spirito

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1. Introdução

Por meio deste trabalho intentamos dar início a uma série de estudos voltados à avaliação dos dados históricos contidos no livro “Há Dois Mil Anos”, psicografado por Francisco Cândido Xavier.

De acordo com Wittgenstein, “tudo o que pode ser dito, pode ser dito claramente” . Dessa forma, buscando-se objetividade e simplicidade, faz-se necessário apresentar a ótica de análise que conduzirá este estudo e os subsequentes.

Assim, parte-se do pressuposto de que o livro em foco relata fatos reais, conforme afirmado pelo próprio autor espiritual. Não se trata, portanto, de um romance histórico , construído a partir de fragmentos da realidade e com o acréscimo de criações do autor. Ou seja, o autor mediúnico e o autor espiritual definem a obra como um romance que retrata fatos que efetivamente ocorreram. Diante disso, propõe-se apreciar a correspondência de trechos da obra com registros históricos.

Tal investigação poderá conduzir a muitas conclusões, sobretudo a respeito da mediunidade de Chico Xavier. Mas estas serão reservadas para outra oportunidade. Aqui, vamos tecer conclusões apenas sobre os fatos narrados por Emmanuel à luz da historiografia.

2. A passagem selecionada

Nos estreitos limites deste trabalho não cabe realizar uma resenha do livro “Há Dois Mil Anos”. Basta lembrar que esta obra, consideravelmente conhecida no meio espírita, apresenta momentos da vida do autor espiritual Emmanuel, quando viveu a personalidade de Públio Lêntulus, senador romano que se estabeleceu na Província da Judeia à época de Jesus, quando teve a oportunidade de receber orientações diretamente do Mestre Nazareno.

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Dentre as várias passagens do romance, será abordada, neste texto, a que diz respeito ao trágico destino de Saul de Gioras, jovem judeu que, por determinação do Senador Públio Lêntulus, é submetido à escravidão e acaba sendo vendido no mercado romano. Especificamente, nos ateremos aos detalhes que rondam a venda do cativo, sem consideração aos elos da narrativa, pois, como dito, nosso propósito é o de avaliar a correspondência, com a história, dos fatos que, a princípio, seriam suscetíveis de verificação. Importa-nos, então, o seguinte trecho em destaque:

“O jovem Saul desaparecera do cárcere, fazendo crer numa fuga desesperada e imprevista. Os informes foram transmitidos à autoridade superior, sem que Públio Lêntulus viesse a saber que os maus servidores do Estado negociavam, muitas vezes, os prisioneiros jovens com os ambiciosos mercadores de escravos, que operavam nos centros mais populosos da capital do mundo.(...)Em quase todas as províncias romanas funcionavam terríveis agrupamentos de malfeitores, que, vivendo à sombra da máquina do Estado, haviam-se transformado em mercadores de consciências.O moço judeu, na sua juventude promissora e sadia, fora vítima dessas criaturas desalmadas. Vendido clandestinamente a poderosos escravocratas de Roma, em companhia de muitos outros, foi embarcado no antigo porto de Jope, com destino à Capital do Império.

Antecipando-nos na cronologia de nossas narrativas, vamos encontrá-lo, daí a meses, num grande tablado, perto do Fórum, onde se alinhavam, em penosa promiscuidade, homens, mulheres e crianças, quase todos em míseras condições de nudez, tendo cada qual um pequeno cartaz pendurado ao pescoço. Olhos chispando sentimentos de vingança, lá se encontrava Saul, seminu, um barrete de lã branca a cobrir-lhe

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a cabeça e com os pés descalços levemente untado de gesso.Junto daquela massa de criaturas desventuradas, passeava um homem de ar ignóbil e repulsivo, que exclamava em voz gritante para a multidão de curiosos que o rodeava:- Cidadãos, tende a bondade de apreciar... Como sabeis, não tenho pressa em dispor da mercadoria, porque não devo a ninguém, mas aqui estou para servir aos ilustres romanos!...E, detendo-se no exame desse ou daquele infeliz, prosseguia na sua arenga grosseira e insultuosa:- Vede este mancebo!... É um exemplar soberbo de saúde, frugalidade e docilidade. Obedece ao primeiro sinal. Atentai bem para o aprumo da sua carne firme. Doença alguma terá força sobre o seu organismo.Examinai este homem! Sabe falar o grego corretamente e é bem feito da cabeça aos pés!...Nesses pruridos de negocista, continuou a propaganda individual, em face da multidão de compradores que o assediava, até que tocou a vez do jovem Saul, que deixava transparecer, no aspecto miserável, os seus ímpetos de cólera e sentimentos tigrinos:- Atentai bem neste mancebo! Acaba de chegar da Judeia, como o mais belo exemplar de sobriedade e saúde, de obediência e de força. É uma das mais ricas amostras deste meu lote de hoje. Reparai na sua mocidade, ilustres romanos!... Dar-vo-lo-ei ao preço reduzido de cinco mil sestércios!...O jovem escravo contemplou o mercador com a alma esfervilhante de ódio e alimentando, intimamente, as mais ferozes promessas de vingança. Seu semblante judeu impressionou a multidão que estacionava na praça, aquela manhã, porque um intenso movimento de curiosidade lhe cercou a figura interessante e originalíssima.”

Uma leitura desatenta do livro em análise naturalmente conduz ao enfoque dos dados históricos apresentados por Emmanuel como simples pano de fundo para o desdobramento do destino dos personagens.

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Por outro lado, uma avaliação acurada do romance pode causar surpresa ao leitor, em virtude da riqueza de detalhes apresentada, principalmente porque se trata de uma obra mediúnica em que se pressupõe a presença de um espírito que está, do outro plano da vida, a revelar verdades que traz consigo. Uma vez que a existência da vida após a morte é uma questão que desafia o pensamento humano, é no mínimo de causar perplexidade as circunstâncias expostas, pois o autor de um pasticho ou um charlatão certamente evitariam afirmativas precisas e pontuais sobre fatos tão distantes na história.

A passagem não apenas surpreende, em virtude da minuciosa descrição da venda de escravos em Roma, como também causa estranheza. Afinal, são informados detalhes curiosos, a exemplo do barrete de lã branca colocado na cabeça de Saul ou da prática de passar gesso nos pés descalços dos escravos, o que gera a dúvida se tais exóticos procedimentos não consistiriam em pura invenção.

William Stearns Davis, em breve trecho de sua obra “A Day in Old Rome: a picture of Roman life”, na qual constrói uma narrativa da perspectiva de quem se encontraria na Roma antiga, elucida a finalidade de alguns dos detalhes apresentados no trecho em foco e que correspondem às regras da época:

“Os jovens se estendiam em fila, em pedras soerguidas, descobertos quase à nudez e com gesso branco sobre seus pés, como um símbolo de que se destinavam à venda imediata. (...) um jovem desafortunado encontrava-se estendido com um alto chapéu de lã sobre sua cabeça. Deduzia-se que ele estaria sendo vendido tal como apresentado, sem a menor garantia.”

Os estudos do alemão Oskar Seyffert revelam outros detalhes:

“(…) o escravo era colocado sobre uma plataforma, com seus pés embranquecidos com giz ou gesso, se ele tivesse chegado

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recentemente através do mar, e com uma placa ao redor de seu pescoço, apresentando sua idade, habilidades e defeitos corporais, acaso existentes, estando o vendedor responsável pela correspondência; se ele não se subordinasse de forma alguma, isso seria apresentado por meio de um gorro (pilleus) sobre a cabeça do escravo.”

É possível aferir, pelas constatações históricas acima, a exatidão da descrição presente no livro “Há Dois Mil Anos”, inclusive no que toca ao grande tablado utilizado para expor os escravos à venda.

Também é possível constatar, pelos registros históricos, que o desvio de Saul de Gioras para o corrompido mercado de escravos adéqua-se perfeitamente ao contexto da época. A histórica confirma a péssima reputação dos vendedores (mango , mangones ) que atuavam nessa seara. Aliás, foi exatamente isso o que exigiu uma detida regulação desse mercado , a justificar o nível quase tutelar das regras em apreço, no sentido de proteger os interesses dos adquirentes de escravos.

Assim, cumpre averiguar a correspondência, com a história, dos seguintes fatos relatados no trecho em tela: i) o contexto geral da venda de escravos em Roma; ii) a prática de dependurar placas nos pescoços dos escravos; iii) o uso do barrete de lã branca; iv) a prática de untar de gesso os pés descalços dos escravos; v) o estado de seminudez dos escravos.

Como se verá, o livro, no trecho em análise, aduz regras de proteção dos compradores de escravos em Roma que efetivamente existiram.

3. A prática de dependurar placas nos pescoços dos escravos

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Nas manifestações de Marcus Tullius Cicero podem ser encontradas referências à praxe mercantil de se dependurar nos pescoços nos escravos placas (titulus) contendo determinados dizeres.

Assim como as tabelas que na atualidade aduzem as informações essenciais dos produtos, geralmente estampadas nas embalagens, tais placas continham as descrições básicas da pessoa à venda. Ali eram apresentados dados como a idade, as habilidades básicas, os eventuais defeitos corporais.

De acordo com o Direito Romano, o adquirente encontraria proteção em face de doenças surgidas e desenvolvidas nos escravos, por meio de cláusulas específicas que permitiriam a revogação da venda. A definição sobre as doenças que caracterizariam esta proteção especial suscitava polêmicas e envolvia boa dose de casuísmo.

Reinhard Zimmermann, em criteriosa pesquisa, informa que seria possível a tutela legal na hipótese de escravo acometido por doença no pulmão, na bexiga, no fígado, por ataques epilépticos (comitialis morbus) ou por qualquer outra doença crônica. O mesmo se aplicava se o escravo era míope, cego, se ele tivesse um tumor ou um pólipo nasal, se ele tivesse sido castrado de forma que o órgão necessário para a reprodução se apresentasse ausente, ou se ele tivesse nascido com os dedos unidos, com prejuízo da utilização das mãos. Uma escrava seria taxada de morbosa vitiosa se, devido a uma doença no útero, não pudesse gerar filhos.

Por outro lado, o comprador não podia se queixar se descobrisse, posteriormente, que o escravo possuía defeitos de menor importância.

A evolução do mercado de escravos em Roma passou a

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considerar como vícios alguns defeitos de caráter. Assim, tais características foram inseridas nas placas informativas, entre os quais podem ser arroladas a existência de antecedente de fuga ou a inclinação do escravo para escapar (fugitivus), o cometimento de algum crime ou a propensão para o suicídio.

De acordo com William L. Westermann, deveria constar em tais placas, ainda, a informação sobre o fato de o escravo encontrar-se respondendo por alguma demanda jurídica ou a probabilidade de tal ocorrência, uma vez que os ônus dos ilícitos cometidos pelos cativos eram transferidos ao adquirente. Reinhard Zimmermann também demonstra a exigência dessas informações.

A ausência de informação prévia de tais dados suscitava a anulação da venda. De acordo com afirmações de Marcus Tullius Cicero, todo vendedor que soubesse de qualquer dado desabonador sobre o escravo deveria informá-lo previamente ao comprador, como meio de preveni-lo contra danos.

Pelo que se depreende deste tópico, conclui-se pela precisão do livro “Há Dois Mil Anos” ao relatar uma praxe que corresponde à história romana.

4. A prática de untar de gesso os pés descalços dos escravos

A regra romana de untar com gesso os pés de determinados escravos expostos à venda encontra confirmação histórica. É o que se afere na clássica obra Historia Naturalis, de Plínio, o ancião , ou nos textos do poeta romano Juvenal (Decimus Iunius Iuvenalis).

De acordo com as obras especializadas, esta prática tinha por escopo alertar aos eventuais adquirentes o fato de que as pessoas que tinham os pés marcados com gesso eram oriundas de outras localidades. Ou seja, cuidava-se de uma marca para

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deixar fora de dúvidas a origem dos escravos.

Esse dado era especialmente relevante ao adquirente por inúmeros motivos, entre os quais podem ser alinhados o conhecimento da cultura e do idioma do escravo.

Neste ponto, o livro “Há Dois Mil Anos” acerta não apenas porque revela uma regra romana que efetivamente existiu, mas porque demonstra a sua adequação à peculiar situação de Saul de Gioras. É necessária especial atenção para compreender que o autor do romance não realiza uma explicação direta de cada uma dessas estranhas práticas que o tempo consumiu. Não obstante, ele revela o conhecimento da finalidade das mesmas por meio do contexto apresentado. No caso específico, é esclarecido que o jovem cativo fora vendido em Roma:

“O moço judeu, na sua juventude promissora e sadia, fora vítima dessas criaturas desalmadas. Vendido clandestinamente a poderosos escravocratas de Roma, em companhia de muitos outros, foi embarcado no antigo porto de Jope, com destino à Capital do Império.” Portanto, cuidava-se de um escravo estrangeiro, que precisava ser distinguido dos da praça de venda, por meio da aplicação de gesso aos seus pés. 5. A prática de colocar um gorro de lã sobre a cabeça do escravo

Conforme já visto, o livro indica que um barrete de lã branca cobria a cabeça do escravo Saul de Gioras. Emmanuel, como sempre, não se ocupa em explicar o motivo desta prática, mas externa sutilmente o conhecimento das regras romanas que justificavam a formalidade, por via do contexto da estória.

É necessário recorrer às leis da época para compreender este

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ponto. Primeiramente, deve-se esclarecer que o substantivo barrete, de acordo com o Dicionário Aurélio, refere-se à “cobertura que se ajusta à cabeça, e que ordinariamente é feita de tecido mole e flexível” . Interessante notar que a palavra é originária do italiano barreta. Destaca-se esta particularidade uma vez que em nossas investigações foi possível aferir que o livro emprega algumas palavras raramente utilizadas no cotidiano atual e que possuem vinculação etimológica com a história romana.

Percebe-se, então, que o barrete consiste num específico gorro (pilleus), que era colocado na cabeça do escravo. Este acessório era utilizado quando o cativo apresentava dificuldades em se submeter ao seu senhor . Cuidava-se de uma garantia para deixar ostensivo aos compradores quais seriam os escravos insubmissos. O adquirente não poderia, portanto, reclamar posteriormente pelo fato de ter comprado um escravo revoltado.

O livro “Há Dois Mil Anos” demonstra que a prática de colocar um gorro de lã sobre a cabeça do escravo aplicava-se ao jovem Saul de Gioras. Isso porque o mancebo judeu externava claros sinais de sua revolta íntima:

“Olhos chispando sentimentos de vingança, lá se encontrava Saul, seminu, um barrete de lã branca a cobrir-lhe a cabeça e com os pés descalços levemente untado de gesso.(...)Nesses pruridos de negocista, continuou a propaganda individual, em face da multidão de compradores que o assediava, até que tocou a vez do jovem Saul, que deixava transparecer, no aspecto miserável, os seus ímpetos de cólera e sentimentos tigrinos:(...)O jovem escravo contemplou o mercador com a alma esfervilhante de ódio e alimentando, intimamente, as mais ferozes promessas de vingança.”

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Está claro, dessa forma, que o barrete de lã foi colocado em Saul para indicar sua postura manifestamente insubmissa.

Neste tópico é possível concluir que a obra sob análise demonstra o conhecimento de regras que realmente vigeram na antiga Roma, tanto do ponto de vista formal quanto de sua específica finalidade.

6. O estado de seminudez dos escravos

Por fim, textos da época, como os escritos de Gaius Suetonius Tranquillus elucidam que as roupas dos escravos eram retiradas como forma de permitir a identificação de deficiências físicas ou de doenças. Os estudos de William L. Westermann demonstram que as regras de identificação dos escravos foram rigidamente fiscalizadas. Não importava o constrangimento da pessoa vendida, desde que assegurada a possibilidade de verificar a sua adequação para os fins pretendidos pelo comprador.

Isso explica o relato do livro no sentido de que os escravos, incluindo Saul de Gioras, foram alinhados “em míseras condições de nudez” .

Este é outro ponto que demonstra a correspondência dos fatos narrados no livro com os registros da história.

7. As fontes históricas disponíveis à época da produção do livro “Há Dois Mil Anos” sobre a venda de escravos em Roma

Sem pretender tecer considerações mais detidas acerca da metodologia de avaliação do livro “Há Dois Mil Anos” sob o prisma histórico, o que se fará em outra oportunidade, cabe apenas adiantar, perfunctoriamente, a avaliação das fontes que permitiriam a um estudioso dedicado conhecer as regras de venda de escravos em Roma, sob o ângulo teórico e prático.

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A respeito das fontes primárias , foi possível identificar as seguintes: Edictum Aedilium Curulium de Mancipiis Vendundis, Digesta ou Pandectae, de Justinianus I, De Officiis, de Marcus Tullius Cicero, De Vita Caesarum, de Gaius Suetonius Tranquillus, Saturae XIII, de Decimus Iunius Iuvenalis, Naturalis Historia, de Gaius Plinius Secundus (Plínio, o ancião), Noctes Atticae, de Aulus Gellius, De Emptione Servorum, de Rufus de Ephesus, Amores, de Publius Ovidius Naso, bem como textos de Sextus Propertius e Albius Tibullus. Trata-se de obras desconhecidas do público comum, mormente no Brasil rural de 1939, ano em que o livro “Há Dois Mil Anos” foi publicado. Ainda, estes são documentos densos, pelos quais somente se conseguiria identificar as regras de venda de escravos sob foco após estudo dedicado. Equivale dizer que um leigo levaria muito tempo para debulhar o conteúdo resumidamente apresentado no trecho em apreço. Considere-se, neste particular, que de nossa parte somente foi possível empreender a presente pesquisa graças às ferramentas disponíveis na Internet.

Já no que toca às fontes bibliográficas secundárias, somente foi possível compreender a veracidade e o sentido dos dados em apreço por meio de obras estrangeiras, escritas em inglês. Com a exceção do citado texto intitulado “Obrigações decorrentes da compra e venda consensual romana”, que aduz poucas informações, de autoria do advogado Ignácio M. Poveda Velasco, publicado em 1988 e republicado em 2011 na coleção Doutrinas Essenciais - Obrigações e Contratos, Ed. Revista dos Tribunais, não encontramos qualquer outro texto em português que versasse sobre o assunto, nem mesmo nas obras dedicadas ao ensino do Direito Romano.

Todavia, identificou-se uma curiosa fonte secundária, que consiste no quadro “O mercado de escravos” (Le marché aux esclaves), datado de 1882, do pintor francês Gustave Rodolphe Clarence Boulanger, reproduzido abaixo:

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A pintura apresenta elementos insólitos. Um dos escravos, de tez escura, traz os pés pintados de branco. O mais jovem encontra-se com um gorro à cabeça. Podem ser identificadas placas dependuradas ao pescoço de cada escravo, veiculando inscrições. Todos se apresentam seminus. A cena se desdobra sob a indiferença do vendedor romano.

Até onde pudemos constatar, o quadro acima nunca foi exposto no Brasil. De toda forma, é importante ter em mente que a visualização da tela causa igual perplexidade de quem lê o referido trecho do livro “Há Dois Mil Anos” sem conhecer, com detalhes, as regras romanas de venda de escravos. Aliás, neste particular deve-se ressaltar que Gustave Boulanger é especialista em pintura histórica.

Pode-se afirmar, portanto, que as fontes primárias ou secundárias que permitem compreender os dados consignados na passagem em análise são especiais e devem ser estudadas com considerável dedicação para que se entenda com propriedade o contexto histórico objeto deste trabalho.

8. Conclusões parciais

O presente trabalho objetivou a avaliação de dados históricos contidos no livro “Há Dois Mil Anos”, da psicografia de Francisco Cândido Xavier. Ele consiste no primeiro trabalho de uma série que pretende avaliar os mais relevantes trechos históricos da obra que são, a princípio, passíveis de verificação. Ao final desses estudos, será apresentado um trabalho conclusivo sobre as possíveis conclusões científicas e filosóficas deste tipo de enfoque.

Foi selecionada uma específica passagem deste livro, que trata da venda do jovem judeu Saul de Gioras, enquanto escravo, no mercado romano. Assim, avaliou-se algumas descrições fáticas contidas neste trecho, quais sejam, o contexto geral da venda

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de escravos em Roma, a prática de dependurar placas nos pescoços dos escravos, o uso do barrete de lã branca, a prática de untar de gesso os pés descalços dos escravos, o estado de seminudez dos escravos.

Demonstrou-se, então, que há correspondência destes fatos com registros históricos confiáveis. A obra apresenta, portanto, conhecimento a respeito dessas específicas regras de venda de escravos em Roma. Além disso, demonstra que o seu autor conhecia a finalidade de cada um desses inusitados procedimentos.

Em seguida, ponderou-se que as fontes primárias ou secundárias que permitem compreender os dados consignados na passagem objeto deste trabalho são especiais e devem ser estudadas com considerável dedicação para que se entenda com propriedade o contexto histórico apresentado.

É possível concluir, pois, que os dados apresentados no livro “Há Dois Mil Anos” são passíveis de serem cotejados com registros históricos. Designadamente, conclui-se que esta obra merece toda consideração no que toca à apresentação das regras de vendas de escravos em Roma.

9. Bibliografia

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