Cortina Marchezan - Teoria Semiotica

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8/19/2019 Cortina Marchezan - Teoria Semiotica http://slidepdf.com/reader/full/cortina-marchezan-teoria-semiotica 1/23 393  TEOR A SEM OTlCA a questão  o s nti o Ar na ldo C o rtina Re n at a f D e ~ o Marchezan  v i d e .l I1 bu ysca de sentido A .J . Greimas  A linguagem quer ser ignorada . Com essa advertên cia, L. ~e1rrms lev (1975 , p. 5 ) sublinhava a função mediadora da linguagem e, a d espeitcdes:ssa vocação, chamava, à maneira como já fizera F . Saussure, a nece ssidad~de ~ se d et er na linguagem, ela mesma ; de tomá-Ia como objeto de refl exã.Q:. I e a advertência aind a hoje pode ser feita sempre que , por exemplo , alguémsersqvuece a falar, ou a ou vi r, p od e-s e t am bém a fi rm ar qu e a linguagem, ela p p fooi um objeto pJjvil egiado de estudo ao longo do século XX. A s em ió ti ca ' i nc lu i- se en tr e as r ef le xõ es qu e vê m r esponar dUire tamente a e sse chamado , que reclama o reconhecimento deum objet o, aoresmri o tempo que 1. Trat a- se , a qui, d a se miótica de base greimasiana, que manté mf ortes relações hisricas i;, COm a lingstica e grande penetração nos Institut os de Let r as e L in gu í stica das uni versidades brasileira

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393

 

T E O R A S E M O T l C A

a q u e s t ã o   o s n t i o

Ar r  na ldo C ortina

R enat a fD e ~ o Mar c hez an

  v i d a  

e .l I1 bu ysca de sentido

A. J. Gre imas

 A linguagem quer ser ignorada . Com essa advertência,L.~e1rrmslev (1975,

p. 5) sublinhava a função mediadora da linguagem e, a despeitcdes:ssa vocação,

chamava, à maneira como já fizera F. Saussure, a necessidad~de~ se deter na

linguagem, ela mesma; de tomá-Ia como objeto de reflexã.Q:.I e a advertência

ainda hoje pode ser feita sempre que, por exemplo, alguém

sersqvuece

a falar,

ou a ouvir, pode-se também afirmar que a linguagem, ela p ró p n  

fooi

um objeto

pJjvilegiado de estudo ao longo do século XX.

A semiótica ' inclui-se entre as reflexões que vêm responardUiretamente a

esse chamado, que reclama o reconhecimento deum objeto,aoresmrio tempo que

1.Trata- se , aqui, da semiótica de base greimasiana, que mantém fortes relaçõeshisricas

i;,

COm a linguística

e grande penetração nos Institutos de Letras e Linguística das universidades brasileira

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M U SS A liM • S EN TE S

convida a um modo cienUfico de ITati-lo. Nesse contexto da linguistica, a semiótic

finca suas bases, mas vai, no entanto, especificar seu objeto e sua trajetória teóric:

lieu objeto é a significação .•.entendida não como um apriori já constituido

que se dê integralmente e d,euma vez por todas, mas, antes, como o resUltad~

de art iculações do sentido. E essa constituição do sentido que a Semiótica busca

expressar, opondo-se, portanto, ao posicionamento de que sobre o sentido nada

se pode ou se deve dizer, por ser evidente ou intraduzível, recusando também a

paráfrase, pessoal, impressionista, a interpretação intuitiva.

eocu a ões da semiótica traduzem-se assim na ex licita ão do mOdo

do ual o sentido se constitui ; em outras palavras, busca-se o quê mas

 

como: não o sentido verdadeiro, mas, antes, o parecer verdadeiro

 

...

~

. não a fral2 mentacãodo sentido. mas a [QralIoade. denreendid;-;fa

unidade textual.

Esse ob' etivo resulta na descri ão do sentido ue se a resenta de maneira

iada or meio de um ercurso erativo,

a

ue com reende um nívelfrm_

tal de or aniza ão do ~ntJdo um lllvel narrativo e um nível discursivo.

Esses níveis dão conta de uma explicação do sentido que não se aproveita, nem

seprende a unidades descritivas da linguística. Assim, a semiótica não seocupa,

por exemplo, da descrição frasal, mas fil ia-se às abordagens semânticas que

rompem a barreira da frase atingindo o texto. Tradicionalmente atenta às teorias

linguísticas, no entanto, a semiótica vai, logo e a seu modo, juntamente com a

linguística enunciativa, incorporar em seus domínios a questão da enunciação.

Dessa maneira, a semiótica define-se como uma teoria geral da significação.

Uma teoria da linguagem. Não uma teoria particularmente linguística, embora

sua herança o seja. A descrição da significação em níveis, que propõe, constitui

um modelo de previsibilidade comum a textos verbais, não verbais e sincréticos,

que têm seu processo de textualização descrito por semióticas específicas.

Nas suas origens, a semiótica mostra preocupação e rigor na delimitação

de um objeto homogêneo, na construção de um modelo de análise de cunho

ipotético-dedutivo, na construção de um modelo para descre '{er a universali-

dade da significação. No entanto, a semiótica, considerada também desde seu

princípio não uma teoria acabada, mas um projeto teórico, vai, na sua trajetória,

desenvolver seu corpo de conceitos e estender os domínios de sua reflexão de

modo a abranger, sucessivamente, aspectos da significação a que renunciou,

anteriormente, em nome de um princípio de homogeneidade.

As mudanças teóricas mais acentuadas dos últimos anos têm levado à consr-

deração de fases da semiótica: aprimeira tem sido nomeada clássica, descontínua,

categorial, e a segunda, tensiva, contínua.

I N T R O D U ÇÃ O À Ll NG u íS T IC A

395

Embora seja amplo e ooletivo,o percurso dereflexão que as duas expressões

nomeiam pode ser acompanhado seguindo a obra de Algirdas Julien Greimas,

desde sua obra iniciadora êasemiótica, Semântica estrutural; passando por seu

momento demaior estabilirade com a consolidação do chamado percurso gerativo

de sentido, que tem sua maisinteressante expressão no

Dicionário de semiàtica;

até dois de seus últimos trabalhos - Semiàtica das paixões e Da imperfeição.

Uma vez adotada essaopção por seguir os caminhos trilhados pelo funda-

dor da semiótica, ou assumidaa preocupação com a não desfiguração do projeto

teórico, a distinção das duasfases da semiótica é mais frequentemente utilizada

para marcar seu desenvolvimento do que para identificar uma ruptura teórica. Tal

posicionamento justifica-se porque as modificações incorporadas constituem, o

mais das vezes, releituras oudesdobramentos de formulações anteriores e indica,

sobretudo, que não se pode prescindir das importantes conquistas da semiótica,

organizadas principalmente no seu percurso gerativo do sentido.

A definição do lugar teórico ocupado pela semiótica passa, assim, pela

explicitação de suas bases inaugurais, que estão dominantemente assentadas na

linguística. Requer também a indicação do potencial analítico da semiótica, o que

leva, aqui, ao estabelecimento de alguns recortes teóricos - como as questões

da enunciação, da narratividade, das paixões, da figuratividade -, e, finalmente,

importa caracterizar a movimentação teórica, que explica a indicação das duas

fases da semiótica mencionadas acima.

1. H E R A N ÇA S A U S S U R IA N A E H J E L M S L E V I A N A

A semiótica oferece uma resposta às preocupações de Saussure, expressas

no

Curso de linguística geral,

para com o estabelecimento futuro de uma ciência

g.eral - por ele nomeada semiologia - que, dela fazendo parte a linguística,

<iliarcasseos sistemas de signos não linguísticos; em suas palavras, estudasse  a

vida dos signos no seio da vida social  (1972, p. 24).

Há estudos que respondem ao desafio saussuriano, mas propõem, de manei-

ra mais ou menos explícita, a mediação das línguas naturais no processo de leitura

dos significados pertencentes às semióticas não linguísticas (imagem, pintura,

arquitetura etc.), aopasso que a semiótica a recusa  (Greimas

 

Courtés, s.d., p

408). Desses estudos, que se servem da língua para traduzir e explicar o sentido

de outras linguagens, a semiótica distingue-se por propor uma metalinguagem

própria para a descrição da significação em geral, incluindo também o sentido

veiculado pelas línguas, tratando-o de maneira homogênea ao sentido manifestado

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.396

M U S S A lI M • SE N TE S

por outras linguagens. Assim, para a semiótica, há uma instância do sentido q

goza de um estatuto comum independentemente de sua manifestação em di~~

rentes linguagens; em termos semióticos, independentemente de suas diferent:

textualizações? A semiótica não se restringe, portanto, ao estabelecimento das

especificidades de cada linguagem, embora também delas se Ocupe ao propo~

semióticas particulares, cujas formulações decorrem da semiótica geral, ao mesmo

tempo que esta também daquelas se nutre.

Esse caminho está apontado por Saussure (1972, p. 25):

Paranós, (...) oproblema linguístico

é,

antes de tudo, semiológico, e todosos nos-

sos desenvolvimentos emprestamsignificação a este fato importante. Se se quiser

descobrir a verdadeira naturezada língua, será mister considerá-Ia inicialmente no

que ela tem de comum com todos os outros sistemas da mesma ordem; e fatores

linguísticos que aparecem, à primeira vista, como muito importantes (por exem-

plo: o funcionamento do aparelho vocal), devem ser considerados de secundária

importânciaquando sirvam somentepara distinguir a língua dos outros sistemas.

A semiót ica tem, assim, suas preocupações já situadas no

Curso de fin-

guística geral,

embora seus procedimentos metodológicos não const ituam uma

transposição do modelo saussuriano do signo linguístico, uma vez que conside-

ram não os sistemas de signo, mas os processos de significação; para tanto, já

na sua trajetória inicial, com a

Semântica estrutural,

a semiótica acompanha as

propostas de L. Hjelmslev.

A recepção do pensamento saussuriano pela semiótica, no entanto, registra-se

em um dos primeiros trabalhos de Greimas, L 'actualité du saussurisme, escrito

em 1956, e caracteriza-se bem no seguinte trecho:

A originalidade da contribuição de F.deSaussure reside, acreditamos, na transfor-

maçãode umavisão de mundoque lheera própria - e que consisteem apreendero

mundocomoumavasta redede relações,comouma arquiteturadeformascarregadas

de sentido, portando nelas mesmas sua própria significação _ emuma teoria do

conhecimento e uma metodologia linguística (p.

192 .3

Em conferência de 1985, ao esboçar um percurso histórico de sua reflexão,

Greimas remete a esse trabalho e, a partir dele, localiza um início da semiótica,

2. A semiótica entende o texto como o plano da expressão de um conteúdo e a textualização, o processe

de constituição do texto.

3. Todas as citações retiradas de textos em língua estrangeira foram por nós traduzidas, assim como os

títulos das obras.

I N T R O D U Ç Ã O

À

L l N G u íS T IC A 397

em que, em contato, principalmente, com G. Dumézil e C. Lévi-Strauss, com-

preende a importância da teoria e da metodologia saussuriana para o estudo geral

da significação, da linguagem humana.

Ao ponto de vista saussuriano - e, lembremos, :'é o ponto de vista que

cria o ob' eto  Saussure, 1972, p. 15) - importa a descrição do valor dos ele/\i': \

mentos lin uísticos, ue se de reende de um lstema de tl iferen as. or essa~

via, reconhece-se o valor relacional do significado - tido, anteriormente, como

objeto do mundo real passível de representação.

Interpretando, dessa forma, o ensinamento de Saussure, a semiótica transfere

a discussão da verdade para a do dizer-verdadeiroeeridicç~ubstitui a ideia

do referente-coisa, exterior e real, pela concepção intradiscursiva da referenciali-

zação, que consiste em imprimir ao discurso um fazer parecer verdadeiro. Porém,

decorre da tradição do pensamento saussuriano, antes de mais nada, a descrição

da estrutura elementar da significação, que constitui uma primeira configuração

do sentido, elemento do nível mais abstrato do percurso gerativo do sent ido.

Para E. Lopes (1995), o percurso gerativo -  núcleo duro  da semiótica -

 supera e ultrapassa as dicotomias saussurianas (p. 52), mas tem em Saussure

a  pré-formalização  de sua estrutura elementar da significação.

Algumas vezes mal entendido como um posicionamento relativista, o ponto

de vista saussuriano, que cria o objeto , não surge ex nihilo; está em consonân-

cia com a episteme da época, que ajuda a fundar. Para caracterizá-Ia, Greimas

(1980), em  A propósito dojogo , recorre à metáfora dojogo, especialmente do

jogo de xadrez, que, utilizada por vários pensadores do século XX, representaria,

para ele, uma at itude comum e predominante diante da linguagem. Refere-se ao

entendimento da linguagem como um sistema de restrições; porém, um sistema

'sério', no qual, ao contrário dos sistemas lúdicos, está-se condenado a viver.

Em analogia com as peças do tabuleiro, cada elemento linguístico não é

definido, positivamente, por aquilo que ele é, mas, negativamente, pelas relações

que mantém com os outros elementos linguísticos. Cada elemento tem, portanto,

um

valor,

no sentido saussuriano. No artigo citado, Greimas também se aproveita

da analogia com ojogo, mas a interpreta de modo diferente. Critica a tentação de

incluir também os indivíduos na descrição por negação, formal, dessubstancia-

da das peças-termos, de que resultam imagens de uma sociedade descamada e

despersonalizada. Sustenta, assim, que não se considere exclusivamente o tabu-

leiro, que se levantem os olhos para observar também a presença dos jogadores,

que não são sujeitos abstratos, autômatos, restritos ao objetivo final e direto da

vitória, mas sujeitos cognitivos, históricos , e, por isso mesmo, dotados de um

saber-fazer e também de competências persuasivas e interpretativas.

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398

M U S S A l IM • B E N T E S

Quando não se trata apenas de descrever as posições sincrônicas das pe

b 1 . li - d ça

no ta u eiro ou a ap icaçao as regras, mas o processo do jogo é necess' .

. . . .' ano

retomar as Jogadas antenormente realizadas e as postenormente programada

as ações discursivas. O sentido do jogo está também na dança das peças,

nas

várias configurações do jogo, e, ressalta Greimas, no diálogo intersubjetivo, que

se define menos pelo comparti lhamento de um código comum ou pela troca d

. e

uma generosidade, e mais pelo enfrentamento de quereres e poderes, em que

há, seguindo mesmo a metáfora do jogo, prescrições, interditos, mas também

escolhas não interditas, não prescritivas. Ausente de Semântica estrutural, em

que se tem como objeto o enunciado, a preocupação com a enunciação, expressa

nesse artigo de Greimas, assinalada no artigo comentado acima, aparece antes

ainda na década de 1970. A incorporação da enunciação pelos estudos semiótico~

é retomada mais adiante.

Em  A propósito do jogo , como vimos, Greimas reprova a dessubstan-

ciação do sujeito, no entanto, a noção de forma é fulcral na semiótica. Para

Zilberberg (1988, p. 71), seu campo epistemológico pode ser delimitado por

quatro grandezas , que se relacionam e desdobram: expressão, conteúdo, forma

e substância.

O estatuto que a semiótica confere ao sentido vincula-o

à

distinção saus-

suriana entre forma e substância. Diferente, mas muitas vezes não discriminada

pelas críticas aos estruturalismos, é a adoção da oposição tradicional entre forma

e conteúdo. Para Greimas e Courtés (s.d., p. 192), esse posicionamento, resul-

tante de um deslizamento semântico  que aproxima o conceito de forma ao de

expressão, e os opõe ao de conteúdo, atende ao estruturalismo norte-americano,

que, em busca da objetividade científica, acaba por excluir a semântica das

descrições das línguas.  Os autores remetem-se, em particular , a L. Bloornfield

e à sua afirmação de que o sentido é algo que existe mas do qual nada se pode

dizer (Greimas

 

Courtés, s.d., p. 193 e Greimas, 1973, p. 13).

Divisor de águas, o posicionamento diante desses conceitos opõe a semiótica,

a partir da proposição de seu objeto, ao estruturalismo bloomfieldiano e revela

sua base saussuriana e hjelmsleviana, como, de resto, para Greimas e Courtés

(s.d., p. 192), também a vincula, passos atrás, ao pensamento aristotélico, que

distingue forma e matéria.

Em Saussure, a distinção entre forma e substância e a proposição de que

a língua  produz uma forma e não uma substância  (Saussure, 1972, p. 131)

4. Ver, a resp ei to do estruturalismo de vertente norte-americana, o capítulo O

estruturalismo linguísticO,

neste volume.

I N T R O D U Ç ÃO À Ll N G u í S T IC A

399

delimitam o objeto da linguística e definem sua atuação na fronteira, em que

se combinam conteúdo e expressão. Cada elemento linguístico é, assim, uma

articulação, ao mesmo tempo, de duas substâncias, pensamento e som, anverso

e verso de uma folha de papel.

Hjelmslev reafirma o duplo recorte empreendido pela forma, simultane-

amente, na substância do conteúdo e na substância da expressão.' Com esse

desdobramento da substância e o da forma em forma do conteúdo e forma da

expressão, Hjelmslev abre caminho para o estudo part icular do sentido e, esti-

mulado pelo postulado do isomorfismo dos dois planos - da expressão e do

conteúdo - inspira-se nos procedimentos da fonologia e propõe os conceitos de

semema e sema; de maneira homóloga aos de fonema e fema, respectivamente.

A citação a seguir mostra a importância da proposição hjelmsleviana, para

a semiótica, desde suas reflexões inaugurais:

A oposição da forma e da substância se acha ( ... ) intei ramente situada dentro da

análise do conteúdo; ela não é a oposição do significante (forma) e do significado

(conteúdo), como uma longa tradição do século XIX pretendia fazer-nos admitir. A

forma é tão significante quanto a substância, e é deespantar que essa formulação de

Hjelmslev não tenha encontrado até o momento receptividade merecida (Greimas,

1973,p.37 .

Por essa via, a semiótica propõe o estudo da forma do conteúdo, em que a

organização do sentido é, a princípio, considerada independentemente de sua for-

ma da expressão. A conceituação que a semiótica confere ao semema distingue-o

do lexema; dessa maneira,  libera a análise semântica das coerções do signo e

permite encontrar, sob revestimentos lexemáticos diferentes, conteúdos semân-

ticos similares ou comparáveis  (Greimas   Courtés, s.d., p. 403).

Lembremo-nos, no entanto, de que essa relativa supressão do signo

(Zilberberg, 1988, p. 71) estende-se também ao signo não linguístico, razão pela

qual a semiótica vai preferir, ao termo sernema , cujo par é o fonema, o termo

 figura , emprestado dos conceitos hjelmslevianos de figura do conteúdo  e

 figura da expressão , que são termos menos específicos, embora também tenham

sido estabelecidos para descrever a língua.

Zilberberg reconhece o caráter um tanto quanto  fonologizante das

bases dessa abordagem do sentido, mas assinala a passagem que a semiótica

S. Ver, no capítulo O estruturalismo linguistico, neste volume, um quadro ilustrativo da distinção entre

as abordagens saussuriana e hjelmsleviana.

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400

M U S S A L lM • S E N T E S

401

realiza do elemento pontual ao global. Destaca, a esse respeito, o conceito de

isotopia, que se refere à reiteração de um elemento semântico ao longo do

discurso e, em um outro nível, aponta a descoberta da 'pregnância' da n;;::'

rat ividade e o papel das modalidades na constituição do sujeito  (1988, p. 70).

O mesmo autor também atenta para a influência dinamarquesa na consideração,

pela semiótica, das relações de dependência entre os elementos, ao lado das

relações oposit ivas, e no estabelecimento de uma teoria de níveis hierarqui_

zados, em que se acham articulados o paradigmático e o sintagmático, à ma-

neira do conceito de categoria hjelmsleviano. Zilberberg não deixa, no entan-

to, de marcar também o distanciamento entre as duas reflexões no que

concerne

à

questão do sujeito, que, diferentemente da semiótica, não é consi-

derada por Hjelmslev.

Com esses fundamentos, constata-se que os diferentes níveis de represen-

tação do sentido, propostos pela semiótica, subordinam-se menos à correspon-

dência com uma pressuposta realidade, que lhe seria exterior; resultam, antes,

de uma concepção teórico-metodológica, em que são considerados 'homotópi-

cos' - na medida em que conservam a significação ao reart iculá-la -, porém

'heteromorfos', para permitir a complexificação das art iculações, de um nível

a outro (Fontanille   Zilberberg, 2001, p. 204). Apontamos mais adiante os

níveis propostos pela semiótica.

A não vinculação direta do sentido à realidade não detém a semiótica mais

recente na consideração do sentido dessubstanciado. A essa questão, relacionamos

a reflexão de J. C. Coquet, para quem a semiótica discursiva não deve se cons-

t ituir em um espaço formal, homogêneo e isotópico , mas sim em um espaço

mais acolhedor para a substância (1997; 75). Zilberberg, por sua vez, examina

as escolhas epistemológicas de R. Jakobson e de L. Hjelmslev, apontando  o

compromisso entre forma e substância do primeiro, e o compromisso do segundo

com a imanência e a autonomia dos sistemas . E continua:

(...) para cada opção epistemológica, o  preço a pagar  não deixa de ser elevado:

para Hjelmslev, o déficit  está antes na ordem da adequaçãoou, mais frequente-

mente, da aplicabilidade; para Jakobson, antes na ordem do arbitrário, quer dizer,

da força das premissas declaradas (1988, p. 73).

Nas palavras de Assis Silva (1995) - que também retoma essas reflexões

-, Hjelmslev desmotiva  a forma, excluindo a substância, em nome da auto-

nomia e da imanência. Filia, assim, Hjelmslev, para quem a língua é fundante,

e não fundada, a uma perspectiva construtivista  da linguagem, que descarta a

I N T R O D U Ç Ã O

À

Ll N G u íS T lC A

motivação da realidade, contrariamente, portanto, a uma abordagem  positivista ,

em que linguagem e realidade correspondem-se. Para Assis Silva, os últimos

trabalhos de Greimas reorientam a semiótica para um possível  nuanceamento 

dessas duas abordagens.

Esse desafio tem marcado a semiótica, que, ao longo de seu desenvolvimen-

to, tem incorporado em suas reflexões a questão da enunciação, das paixões, do

sensível, ao mesmo tempo que continua a zelar pela adequação e simplicidade

teórica de sua descrição, pela explicação do sentido, pela boa distância do tudo

é possível , contra o qual, desde o início, se insurgiu.

Para responder a esse desafio, a semiótica tem retomado o pensamento de

Merleau-Ponty e tem buscado, mesmo em Hjelmslev, novamente as bases para

constituir um espaço teórico dinâmico de reflexão.

O desenvolvimento dos estudos da tensividade, propostos pioneiramente

por Zilberberg (1988) e tributários do linguista dinamarquês, não deixa de ser

também uma resposta à adequação, à consideração de um espaço teórico dinâ-

mico e, desde o nível das pré-condições da significação, animado por um sujeito

(proto-sujeito) que percebe e sente, movimentado por fluxos fóricos: euforia e

disforia; atração e repulsão. Esse espaço dinâmico é descrito pelas tensões -

ex-

tensas e intensas, que buscam formalização no conceito hjelmsleviano de função

e nos estudos sobre a sílaba. Assim, dão conta, respectivamente, da dimensão

global e da dimensão localizada do sentido; em outras palavras, representam a

capacidade de um elemento de interagir à distância com outros elementos e a

capacidade de um elemento de interagir localmente com elementos vizinhos (Tatit,

1994 e 1997). Recupera-se, assim, a intuição hjelmsleviana da isomorfia entre

osplanos da expressão e do conteúdo e destacam-se, na organização também do

conteúdo, a sua prosódia, o ritmo, o andamento, que resultam, em última análise,

da sucessão de continuidades e descontinuidades.

2. U M M O D E L O E M N íV E I S : P E R C U R SO G E R A TI V O D E S E N TI D O

Partindo, portanto, de subsídios que lhe são fornecidos por uma dupla tradi-

ção - a linguística de Saussure e Hjelmslev e a sêmio-narrativa de Propp (sobre

a qual falaremos em outra parte deste texto), Greimas empreende uma revisão

da teoria de níveis, fundada no pressuposto da organização imanente do discurso

como uma entidade de dependências internas, revisão esta que irá privilegiar a

produção do sentido - o percurso do conteúdo.

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402

M U S S A L lM • BE N T E S

A teoria semiótica parte da nocão de significação, entendendo a linguagem

como uma rede de relações significativas e não como um sistema de signos

encadeados. Partindo dessas considerações é possível determinar quatro caracte-

rísticas que fundamentam a proposta da teoria semiótica, segundo Barros (1988,

p. 13): (a) uma vez que o sujeito é o elemento a que se deve chegar por meio do

discurso, a semiótica deve elaborar um método adequado de análise interna desse

discurso; (b) o texto é uma representação e, tomado dessa forma, é passível de

uma análise imanente que, em linhas gerais, sempre ocorre em qualquer texto;

(c) tendo em vista que a construção do sentido de um texto é possível a partir

do momento em que se reconheça um percurso gerador desse sentido, a análise

deve part ir do mais simples ao mais complexo, do abstrato para o concreto; (d)

esse percurso gerativo deve ser entendido como um percurso de conteúdo, que

se refere às condições de produção e recepção do texto.

O percurso gerador da significação do texto obedece a três níveis de or-

ganização: a gramática fundamental, a gramática narrativa e a gramática

discursiva.

A gramática fundamental é lógico-conceptual e estrutura-se por meio de

lima sjntaxe e de uma semântica fundamental. A sintaxe fundamental comporta

um subcomponente taxionômico e um subcomponente operatório, ou sintático,

em sentido restr ito. Esses dois aspectos da sintaxe fundamental procuram, ao

mesmo tempo, dar conta do modo de existência e do modo de funcionamento

da significação. A sintaxe da gramática fundamental de nível profundo é o lugar

em que a significação adquire uma primeira configuração do microuniverso ca-

tegorial que se costuma diagramatizar na forma de um quadrado semiótico; aí a

significação tem um modo de existência puramente virtual.

A organização do quadrado semiótico se dá por meio da geração de dois

termos posit ivos (s, e

S2)

sob o eixo da contrariedade, desdobrados em suas rea-

l izações negativas (não s, e não S2), responsáveis pelo eixo dos subcontrários. A

relação entre as categorias positivas e negativas estabelece uma segunda geração

dos chamados metatermos contraditórios e contrários. Pode-se assim afirmar que

a contradição é elaborada por um esquema posit ivo (s, e não SI) e outro negativo

(S2 e não S2) enquanto a complementaridade se estabelece por meio de uma dêixis

positiva (s, e não S2) e outra negativa (S2 e não SI)' A terceira e últ ima geração do

quadrado semiótico realiza-se por meio de um termo complexo e outro neutro

(S e não S).

Procurando exemplificar o que foi colocado no parágrafo anterior, estabe-

lece-se o quadrado semiótico da oposição macho x fêmea.

 N TR O D U Ç Ã O À L lN G uí S T  C A

403

S

(sexualidade)

SI _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ •

(macho) ~ ~ (fêmea)

não-s, - ~ não SI

(não fêmea) (não macho)

não-S

(assexualidade)

Organizando, tem-se:

A) Primeiro eixo: s,   S2 e não s,   não S2 (contrariedade)

B) Segundo eixo:

a) s,   não s, e S2   não S2 (contradição)

b) s,

 

não

S2

e

S2

 

não s, (complementaridade)

C) Terceiro eixo: S e não S (complexidade e neutralidade)

A importância dada pela semiótica ao quadrado lógico decorre do fato

de ele realizar duas funções, a primeira é a de modelo consti tucional, ponto de

partida do percurso de geração de todo discurso, linguístico ou não; a segunda

(...) é a de representar as relações semânticas em sua dimensão paradigmática e

propiciar-lhes a sintagmatização pelas operações orientadas, em qualquer etapa

da descrição (Barros, 1988, p. 23).

A semântica fundamental é a unidade mais abstrata da geração de sentido

do discurso. Ela pode ser definida como  um inventário ( .. .) de categorias sê-

micas, suscetíveis de serem exploradas pelo sujeito da enunciação ...  (Greimas

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404

M U S SA L lM • S E N T E S

 

Courtés, s.d., p. 399). Essas categorias sêmicas (ou semânticas) passam a ter

valor para a determinação, no quadrado, da categoria tímica/euforia/xJdisforia/.

As n~ções de ~is~oria e_euforia organi~am-se segundo a relação dos sememas que

constt~e~ a sl~m~caçao n.umdeterrmna~o contexto. Segundo Zilberberg (1981),

essa significação e produzida pela geraçao dos termos tensão  e  relaxamento

e dos metatermos intensão  e distensão .

Portanto, a euforia pode ser definida como um processo que vai do tenso

ao distenso e termina no relaxado, constituindo-se, dessa forma, numa tensão

decrescente e num relaxamento crescente. Já a disforia segue o caminho inverso

pois vai do relaxamento à intensão, terminando na tensão, o que a define como

um processo de aumento de tensão e diminuição de relaxamento. Os termos das

categorias semânticas da gramática fundamental transformam-se em valores no

momento em que o nível da gramática narrat iva compreende o sujeito.

A gramática narrat iva é, portanto, antropomórfica, e também se organiza

por meio de uma sintaxe e de uma semântica narrat iva. A sintaxe narrat iva esta-

belece os enunciados do fazer que regem os enunciados de estado dos sujei tos

responsáveis pela sequência da narração; ela é um simulacro do fazer do homem

no mundo e das suas relações com os outros homens (Barros, 1988, p. 16). A

semântica narrativa deve ser considerada como a instância de avaliação dos va-

lores dos objetos do fazer, podendo, também, ser o lugar das restrições impostas

à combinatória, em que se decide em parte o tipo de discurso a ser produzido

(Greimas

 

Courtés, s.d., p. 400).

A unidade mínima desse nível de superficie é o enunciado elementar con-

cebível como a articulação de uma relação conjuntiva ou disjuntiva entre os

actantes Sujeito e Objeto; na .teoria sêmio-narrativa é o sujeito o actante que

quer alguma coisa e, inversamente, é objeto (ou objeto-valor) aguilo que

é

querido pelo sujeito. A ideia geral a homogeneizar as relações existentes entre

os actantes desse nível

éa

narratividade; é narrativo todo discurso que relate a

transformação de um enunciado de estado conjuntivo (S Í 1 O) num enunciado

.de estado disjuntivo (S u O), consti tuindo uma narrat iva de virtualização do

tipo: S Í 1O ~ SuO; ou vice-versa, um discurso que relate a transformação de

um enunciado disjuntivo num enunciado conjuntivo, construindo uma narrativa

de realização=- quer dizer, de aquisição do objeto-valor desejado pelo sujeito.

6

A narratividade, assim definida, relata a transformação de estados, ~a §.:

formação da relação homemlmündo; mas a narratividade estabelece-se também

6. Mais à f rente, quando abordamos a questão damodalização do sujeito, retomamos com maiores detalhes

esse aspecto da sintaxe narrativa.

I N T R O D U ÇÃ O À l IN G uí S T IC A

405

na relação homemlhomem,  ( ...) como sucessão de estabelecimentos e rupturas de

contratos entre um destinador e um destinatário, de que decorrem a comunicação

e os conflitos entre sujeitos e a circulação de objetos-valor  (Barros, 1988, p. 28).

Assim, destaca-se na gramática sêmio-narrativa o esquema actancial que ela

comporta, reduzido a um sujeito e um objeto; eles são necessários para propiciar

uma primeira descrição actancial, mas não são o bastante. É preciso por isso ex-

pandir o modelo desse nível para fazê-lo compreender também, eventualmente,

as relações locais entre sujeitos, um dos quais surge localmente como sujeito e o

outro como antissujeito, ou quando esses dois sujeitos se defrontam no decorrer

de um ato de transmissão de um objeto-valor como Destinador e Destinatário;

deve-se expandir ainda o modelo para prever diferentes casos de sincretismo

actancial em que um mesmo ator discursivo desempenha ao mesmo tempo (ou

alternativamente) os diferentes papéis de sujeito e antissujeito ou de Destinador

e Destinatário, ou, ainda, observador e narrador etc.

A gramática discursiva, por fim, é responsável pela oposição entre enuncia-

ção e enunciado e, mais uma vez, será dividida entre o componente sintático e o

semântico. A sintaxe discursiva observa a relação entre a enunciação e o discurso,

unidades discursivas. A semântica discursiva estabelece percursos

Jemáticos e reveste figurativamente os conteúdos da semântica narrativa  (Barros,

1988, p. 14).A questão da figuratividade será retomada mais ao final deste texto.

A gramática discursiva contém os elementos resultantes da enunciação dos

elementos contidos na gramática sêmio-narrativa, na forma de uma actância, uma

extensão mais uma duração. A enunciação opera, portanto, a discursivização de

tais elementos, isto é, opera o seu recorte de tal modo que possamos contemplar

essas continuidades unas como duais; assim, mediante a enunciação recorta-se

a actância do sujeito em atores discursivos que realizam papéis de sujeito cogni-

tivo (observador, narrador - ~ e sujei to pragmático (sujei to operador - ele);

recorta-se a extensão em dois espaços referidos respectivamente ao lugar da

..enunciação (agui) e ao lugar do enunciado (lá

 

não aqui); recorta-se a duração

em dois momentos, quais sejam, o momento da enunciação (agora), contrapos-

--.to ao momento do enunciado (então

 

não agora). Desse modo, a enunciação

produz a actorialização (eu-ele), a espacialização (agui-Iá) e a temporalização

(~ora-então), de cujojogo resultarão os dois sistemas de referência do discurso;

o sistema de referências essoais dos actantes daGllunciação enuncJadyentrado

 

no dis ositiv eu-a ui-a ora, ue organiza o marco zero para toôas as referên-

cias a atores es a e tem os da narra ão' o sistema de referên . .

dos actantes do enunciado enunciad ,centrado no dispositiv ele-lá-então ue

organiza o marco zero para todas as referências a atores, espaços e tempos da

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406

M U SS Al IM • 8 E NT E S

história narrada. Essa questão da enunciacão para a semiótica será retomada no

item seguinte quando procuraremos mostrar a influência dos trabalhos de Ben-

yeniste na organização dessa etapa do percurso gerativo de sentido.

. - - - - = -

Na análise, que segue, do pequeno conto Uma vela para Dario , exempli-

ficam-se os três níveis do percurso gerativo de sentido. O conto de D. Trevisan

conta a morte de Dario.

Certo dia, numa certa cidade, Dario vinha andando pela calçada de uma rua,

sentiu-se mal, encostou-se à parede de uma casa e seu corpo escorregou à medida

que parecia perder os sentidos. Muitas pessoas que por ali passavam começa-

ram a observá-Io e a cogitar de encaminhá-Io para algum lugar, mas ninguém

efetivamente fez nada até que se constatou sua morte. Ao mesmo tempo em que

foi morrendo, Dario foi sendo despojado de seus pertences. Desapareceu seu

cachimbo, seu guarda-chuva, seus sapatos, seu alfinete degravata, seu relógio de

ulso, sua carteira com documentos, seu paletó, sua aliança. Depois de agonizar

por quase duas horas e de ter despertado o interesse de tanta gente que por ali

assava, o cadáver de Dario estava jogado na calçada de frente a uma peixaria.

m menino de cor e descalço apareceu e acendeu uma vela para o morto, que

ueimou até a metade em função da chuva que começava a cair.

Ao observarmos, portanto, a mobil ização dos sentidos na constituição do

conto de Trevisan odemos dizer que, no nível fundamental , manifesta-se uma

oposição entr vida e morte. Seu movimento parte da afirmação da vida,  Dari~

vinha apressado, ar a-c uva no braço esquerdo e, assim que dobrou a esquina,

diminuiu o passo até parar ... (Trevisan, s .d., p. 115), depois nega a vida (seu

processo de agonia) para afirmar a

morte,

 Apenas um homem morto e a multi-

dão se espalhou ... (idem, p. 116). A configuração sintática do nível fundamental

poderia resumir-se a um enunciado mínimo: Dario morre ao caminhar pelas

ruas de uma cidade. Se articularmos os dois elementos em oposição no nível

fundamental ao nível imediatamente superior, narrat ivo observamos que esse

enunciado mínimo reproduz uma transformação e e o, pois parte daafirmação

de um estado inicial conjuntivo (S-

 

O ,

S (Dario) está em conjunção com ,um

O (vida), para chegar a um estado final disjuntivo (S uO), S (Dario) está em

disjunção com O (vida). De acordo com a mobtllzação dos elementos opositivos

na estrutura narrativa do conto de Trevisan, a vida é valorizada positivamente e a

morte, negativamente. Nesse instante, está-se observando o princípio semântico

de produção dos elementos em oposição no discurso, em que a vida tem um va Q.r

~ufórico e a

morte,

um valor disfórico. _

No nível narrativo, além doprograma narrativo (PN) acima referido, quan~

constatamos a mudança de um estado de conjunção do actante S (Dario) para um_

?   f

o,

le ~ c 

·

b

SFl

IN T RODUÇÃ O À l I NGu í ST lCA

407

estado de disjunção, outros PNs podem ser descritos. A descrição desses diferentes

PNs depende da sequência narrativa que se estiver focalizando. Se observarmos,

por conseguinte, a organização narrativa de base do conto, perceberemos que

esse PN instaurado pelo actante S (Dario) relaciona-se com o PN instaurado

pelo actante colet ivo (habitantes da cidade). Chamamos este últ imo de actante

coletivo porque ele é um sujeito que se configura como um conjunto, um todo,

cujas ações específicas atribuídas a determinados sujeitos específicos ( o senhor

gordo de branco , o rapaz de bigode , cada pessoa , os moradores darua , a

velhinha de cabeça grisalha , o motorista ,  um terceiro , duzentos curiosos ,

  o guarda , a últ ima boca , um senhor piedoso e,por fim, um menino de cor

e descalço ) mantêm uma relação metonímica com esse sujeito global que une

todos eles, qual seja, os habitantes da cidade que, curiosos, assistem à morte

de Dario. Chamaremos o S (Dario) SI e o S (habitantes da cidade) S2' O PN de

SI é morrer e o de S2é ver SI morrer. S2tem a competência (saber e poder) para

tentar salvar SI da morte, mas nada faz, pois não é modalizado por um querer

ou um dever.

Na relação entre SI e S2constatamos o desencadeamento, portanto, d

esquema narrativo que comporta diferentes percursos. SIé o Destinador J'vfanipu-

~ e S2' o Destinatário desse percurso de manipulação. Em verdade, o que se

está querendo dizer é que, na narrativa do conto, o PN da morte de Dario deveria

desencadear um outro PN que consist ir ia na tentat iva de salvamento da perso-

nagem por parte das pessoas que presenciam sua agonia. Mas isso, na verdade,

não acontece. S2não se deixa manipular por SI. Por esse motivo não realiza a

performance

do salvamento. O contrato de manipulação apresentado por SIa S2

não se realiza porque o destinatário não o aceita. Dessa forma, invertem-se as

posições e SIpassa à posição de Destinatário e S2àde Destinador. S2torna-se o

assistente da performance realizada por SI' qual seja, morrer . Do ponto de vista

do processo de modalização, S2não aceita o guerer e o dever-fazer propostos

porSj, na medida em que é modalizado por um querer-fazer que corresponde

ao não salvamento de SI' Os processos de modalização descrevem os valores de

significação investidos nas configurações sintagmáticas dos programas narrativos.

Quando atingimos o nível mais superficial que é o discursivo, examinamos

como os componentes dos níveis inferiores são acionados discursivamente.

Nesse nível de manifestação, observam-se as simulações gue se instauram no

discurso e gue correspondem às projeções actorial, temporal e espacial. Com a

primeira, os actantes (SI e S2)assumem papéis temáticos e revelam-se atores do

discurso, no caso, Dario e os diversos atores, já nomeados, que compõem o ator

coletivo. Outro ator manifestado discursivamente é aquele que diz no discurso.

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M U S S A L lM • B EN TE S

I N T R O D U Ç Ã O

À

L l N G u í S T I C A

409

408

No caso do conto em ue ao, o su'eito da enuncia ão manifesta-se na forma de

um ele  de uma ão essoa, a terminologia de Benveniste (1976), o que, em

termos semióticos, corresponde a uma debreagem enunciva. Temos o caso aqui

de uma narrativa em terceira pessoa, própria dos discursos que pretendem instau-

rar o apagamento das marcas de subjetividade para reforçar exatamente o efeito

contrário: o da objetividade. A narrativa do conto de Trevisan é construída

PR r

um sujeito que não se diz  eu , que busca convencer seu enunciatário (o leitorl

de que a reprodução dos acontecimentos narrados não implicam um julgamento

de yalor daquele que narra.

Quanto às projeções temporal e espacial, temos a manutenção da debreagem

,enunciva, na medida em que o discurso em questão materializa um tempo do

 então  eum espaço do lá . A discursivização do fato narrado concretiza-se num

tempo passado, manifesto nas formas do pretéri to perfeito e do imperfeito. Ao -

mesmo tempo, o espaço em que seconcretizam as ações e um espaço Impessoal,

vagamente caracterizado pelo traço de urbanidade. Portanto, em um momento

do passado que não se determina, acontece a morte deDario em uma cidade que

sequer tem nome, é uma cidade que pode ser uma em particular ou todas elas.

Além desses componentes sintáticos do nível discursivo, que correspondem

às projecões de pessoa, espaço e tempo, estruturam-se os componentes semânti-

cos que podem ser detectados na configuração temática e figurativa do discurso.

Assim, essa oposição do nível fundamental representada pela dlcotomla

V i d a

versus morte e as rela ões sintagmáticas desencadeadas pelas funções de su]e\tõ

e objeto organizam-se no discurso por meio das Isotopms tematJco- gurativas

que fazem emergir os sentidos. ,O conto de Trevisan, aqui focalizado, pode ser

compreendido como uma representação do comportamento de indiferença das

pessoas que vivem nas cidades e que são incapazes de ter umato de humanidade

para com um semelhante que enfrenta determinado tipo deproblema. Poderíamos

irmais a fundo na caracterização dessa crítica se constatamos que a representação

das atitudes das pessoas que assistem à morte de Dario valoriza a cena como um

espetáculo. Em verdade, a referência a certas ações realizadas pelos habitantes

da cidade, tais como, Os moradores da rua conversavam de uma porta à outra,

as crianças foram despertadas e de pijama acudiram à janela , ( ...) j á no carro

metade do corpo, protestou o motorista: quem pagaria a corrida? , Ocupado o

café próximo pelas pessoas que vieram apreciar o incidente e, agora, comendo e

bebendo, gozavam as delícias da noite  (p. 115), reforça a configuração da morte

como um espetáculo. Nesse sentido, inverte-se, então, no nível fundamental, a

caracterização da vida como eufórica e a morte como disfórica, pois a atitude

dos habitantes da cidade é a de valorização da morte e desvalorização da vida,

na medida em que aquela adquire a conformação do espetáculo.

Além do mais, pode se ler, ainda, por meio do relato progressivo do desa-

parecimento dos objetos pertencentes a Dario, um processo de despersonalização

do sujeito. No início da narrativa Dario é uma pessoa que tem certas marcas que

o caracterizam como um sujeito de uma determinada posição social e com uma

identidade (seus documentos): tem nome, endereço, é casado (o que é reforçado

pela presença da aliança em sua mão esquerda). Na medida, porém, em que vai

sendo despojado de seus pertences, vai se tomando um não sujeito, pois já não

pode mais ser identificado. Essa interpretação reorganiza os elementos destacados

nos outros níveis do processo de geração de sentido e pode, inclusive, instaurar

uma outra oposição no nível fundamental. Por exemplo, a oposição homem versus

coisa,

na medida em que a narrativa vai contando como Dario vai perdendo suas

característ icas humanas para se transformar num simples objeto.

A observação da organização temática e figurativa do conto de Trevisan

leva-nos a perceber também que, embora essa leitura da despersonalização do

sujeito se realize, curiosamente o sujeito despersonalizado é o único que tem

um nome. Ele se chama Dario, enquanto o sujeito colet ivo que a ele se opõe é

constituído por sujeitos metonímicos que nunca têm nome ( o senhor gordo de

branco , o rapaz de bigode , cada pessoa ,  os moradores da rua , a velhi-

nha de cabeça grisalha , o motorista , um terceiro , duzentos curiosos ,  o

guarda , a última boca , um senhor piedoso , um menino de cor e descalço ).

Esse jogo de linguagem que é captado no nível da manifestação do discurso é

extremamente importante para o desvendamento dos sentidos que o discurso

manifesta, e o aparato teórico da semiótica procura dar maior sustentação a esse

procedimento.

Para corroborar a interpretação da cena descrita como uma forma de re-

presentação de um ato de insensibil idade do sujeito colet ivo para com Dario,

destaca-se um sujeito particular no universo desse coletivo: o menino que acende

uma vela para Dario. Em verdade, ele é o único que realiza um fazer em beneficio

do morto, isto é, acender uma vela que, segundo a crença religiosa, ilumina o

caminho da pessoa que morreu durante sua passagem para o mundo dos mortos.

A caracterização desse menino ressalta a fragil idade de sua figura, o que refor-

ça a ideia de oposição entre o seu fazer e o dos demais habitantes da cidade. A

vela que apaga até a metade, pode, metaforicamente, simbolizar a vida de Dario

que, segundo a caracterização apresentada no conto, parece ser um homem de

meia-idade.

Essa rápida análise, aqui apresentada, teve por objetivo mostrar diferentes

elementos do percurso gerativo de sentido, que não funciona como uma fôrma à

qual os textos devem adaptar-se, mas como um modelo de previsibilidade, que

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410

M U SS AL lM • S EN TE S

4U

dispõe, para todo texto, uma base elementar, uma narratividade e um investimento

semântico mais concreto no nível discursivo.

3.

E N U N C IA Ç Ã O E S E M IÓ T IC A

Inserida no contexto do estruturalismo da década de 1960, a semiótica re-

legou a problemática da enunciação para o segundo plano. Tributária, como já

procuramos mostrar anteriormente, aos trabalhos de Saussure e Hjelmslev, ela

entendia a linguagem como um processo de relação entre formas, consti tuídas

por uma semântica, por uma sintaxe e por uma morfologia, completamente in-

dependente do sujeito da enunciação. Nesse sentido a semiótica estava inserida

metodologicamente na perspectiva dos estudos linguísticos desse período, que

consistia em destacar o sistema da língua e desenvolver os procedimentos estru-

turais que permitissem objetivar a língua e descrevê-Ia.

Era o primado do enunciado, isto. é, tudo deveria estar material izado na

linguagem de tal maneira a que se deixasse de fora aquilo que era considerado

o seu exterior, entendido como uma manifestação da subjetividade psicológica.

No que se refere especificamente ao estudo do texto literário, esse era um mo-

vimento de recusa à apreensão do sentido por meio da valorização dos aspectos

 biográficos do sujeito produtor do texto: o autor.

Além da recusa do império desse subjetivismo a que nos referimos acima,

também é preciso levar em consideração que a proposta da semiótica, porque se

ligava à metodologia estrutural, valorizava ainda dois aspectos que sustentavam

seu distanciamento da enunciação. O primeiro era o princípio d<  J.  jva2iiJe

todos osconstituintes e das diferentes relações internas ao texto, o que vem a ser

o princípio da~ Em razão disso, a enunciação não poderia ser pensada

de outra maneira senão segundo a forma da pressuposição, isto é, os elementos

do enunciado pressupõem a existência de um sujeito (da enunciação) que os

realiza, mas que não se descreve. O segundo diz respeito à incorporação, pela

semiótica, do conceito de uso, por meio da herança hjelmsleviana, que entende

a enunciação individual como submetida ao conjunto de hábitos linguísticos de

uma determinada sociedade. Com os conceitos de esquema, uso e também de

norma, Hjelmslev reinterpreta a dicotomia língua/fala de Saussure.

A década de 1970 representa uma mudança no paradigma dos estudos da

linguagem na medida em que as propostas do estruturalismo em linguíst ica são

questionadas e a esse período se segue o dos estudos que enfocam a enunciação.

Dentre todos os trabalhos produzidos nesse domínio, os que mais se destacam

I N T R O D U Ç Ã O

À

L l N G u í S T l C A

e os que mais vão influenciar as discussões dos semioticistas são, sem dúvidas,

os de E. Benveniste.

Para esse autor, a linguagem deve ser pensada no contexto da comunicação.

Assim, em todo processo comunicativo, duas pessoas entram em relação: aquela

que diz e aquela para quem a primeira diz algo. O sujeito seconsti tui como tal por

meio do uso que faz da linguagem. Segundo Benveniste (1976), é na linguagem

e pela linguagem que o homem se constitui como

sujeito;

porque só a linguagem

fundamenta na realidade, na

sua

realidade que é a do ser, o conceito de 'ego'

(p. 286 - grifos do autor). Não só o contexto situacional faz parte desse ato de

comunicação, como também o contexto pragmático. Em um artigo publicado

primeiramente na revista Langages de 1970, intitulado O aparelho formal da

enunciação , Benveniste (1989) irá definir a enunciação como o ato de colocar

em funcionamento a língua por um ato individual de utilização (p. 82).

-eor meio do exame da categoria dos pronomes, dos verbos e dos advérbios,

Be veniste afirma ue todo ato de comunicação se rói a artir da manifes-

ta ão de três determina ões, concretizadas n eu-a ui-a ora. om relação à

categoria do pronome, o autor irá fazer sua clássica istinção entre a manifestação

da w<ssoalidade

(eu

e

tu)

e da impessoalidade

(ele)

no discurso. Os pronomes

eu

e.:llLQertencemao próprio processo da enunciação, uma vez que incluem consigo

pm rios a ueles que os empregam; por esse motivo podem ser chamados de

ragmáticos. E possível encontrar um texto cientí co em que esses dois prono-

mes nã~ apareçam nenhuma vez, mas, em uma situação de diálogo, eles tendem

a ocorrer muitas vezes, o que não acontece com os outros tipos de vocábu~

Diferentemente dos outros, também, os pronomes

eu

e

tu

não têm uma referência

fixa, ao contrário, cada

 eu

tem a sua referência própria e corresponde cada vez 0  .Ã _

a um ser único, proposto como tal (Benveniste, 1976, p. 278). Por sua vez, o i

  r O v

hamados pronomes de terceira pessoa são inteir~te diferentes de

eu

e

tu,

pela sua função e pela sua natureza. Formas com ele, a isso etc. só servem na

t

qualidade de substitutos abreviativos , uma vez que ervem para substituir um

/\/1 .1

ou outro dos elementos materiais do enunciado ou com eles revezar . Essa funçãoJ.:)tNVV~vw

'estende-se a outros tipos de palavras ou expressões também.  Éuma função d~

'representação' sintát ica que se estende assim a termos tomados às diferentes

'partes do discurso' , e que corresponde a uma necessidade de economia, substi-

tuindo um segmento do enunciado e até um enunciado inteiro, por um substituto

mais maleável. Assim, não há nada de comum entre a função desses substi tutos

e a dos indicadores de pessoa (Benveniste, 1976, p. 282-3).

Da mesma forma que os pronomes,.as circunstâncias de tempo e de lu~ar

serão pensadas por Benveniste a part ir do ato de comunicação. Nesse sentido, o

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4

M U S S A Ll M • SE N T E S

aqui opõe-se ao lá na medida em que o primeiro determina o espaço do suje ito

e o segundo o do não sujei to; o

agora

opõe-se ao

então

na medida em que este

determina o espaço do não sujeito, e aquele, o do sujeito.

A integração das propostas dos trabalhos de Benveniste à economia geral

da teoria semiótica foi responsável pela colocação em relevo daproblemática da

enunciação no discurso. A modelização do princípio enunci~emiótica

1 t<I ; .... . .•• •.•. .

ser representada por duas operações correlatas: a ~ e a~

breagem. criação desses dois termos para a descrição doprocesso enunciativo

eu-se por meio do emprést imo que Greimas fez do concei to de

shifter

(embre-

ante) util izado por Jakobson. A debreagem pode ser de dois t ipos: enunciva e

enunciativa. A debreagem enunciva consiste na projeção do sujeito da enunciação

no discurso enunciado por meio das categorias do não eu, o

ele,

debreagem enun-

civa actancial; do não aqui, o lá, debreagem enunciva espacial; e do não agora,

o então, debreagem enunciva temporal. A debreagem enunciativa, por sua vez,

consiste na projeção do sujeito da enunciação por meio das categorias do eu, do

aqui e do agora. O efeito de sentido que esses dois procedimentos de debreagem

produzem no discurso é o de objetividade e subjetividade, respectivamente. A

embreagem, por sua vez,  ao contrário da debreagem, que expulsa da instância

da enunciação a pessoa, o espaço e o tempo do enunciado, (...) é 'o efeito de

retomo à enunciação', produzido pela neutralização das categorias depessoas .e/

ou espaço e/ou tempo, ass im como pela denegação da instância do enunciado 

(Fiorin, 1996, p. 48). Dessa maneira, o fenômeno enunciativo é entendido como

pressuposto, como o espaço antepredicativo onde o discurso se forma. Tem-se

um sujeito da enunciação que, ao produzir linguagem (o enunciado),

projeta fora de si categorias semânticas que vão instalar o universo do sentido.

Essa operação consiste em uma separação, uma cisão, uma pequena esquizia 

ao mesmo tempo criadora, por um lado, das representações actanciais, espaciais e

temporais do enunciado e, por outro, do sujeito, do lugar e dotempo da enunciação

(Bertrand, 2000, p. 57).

Com o objetivo de demonstrar de maneira um pouco mais concreta os

conceitos de debreagem para a semiótica, reportamo-nos ao conto de Machado

de Assis (1997),

A desejada das gentes,

com o qual exploraremos as paixões

no i tem 5 deste trabalho. Nesse texto ocorre um complexo jogo enuncia tivo na

medida em que representa o diálogo entre duas pessoas, sendo que uma delas

conta uma sequência de fatos, uma narração, para a outra. Assim, num primeiro

nível, tem-se a manifes tação do discurso do conselheiro e de seu amigo. Esses

sujeitos são projetados no enunciado de forma direta, sem que um outro, anterior

IN T R O D U Ç Ã O

À

lI N G uí S T IC A 4 3

a eles, os constitua. Isso significa que não existe um narrador que se manifesta na

forma de um

eu.

A presença do narrador é pressuposta, pois somente por causa

de sua existência é que podemos entender a fa la dos enunciadores em diálogo;

portanto, o discurso manifes tado no conto é consti tuído, primeiramente, por

uma debreagem enunciva, isto é, um enunciador-narrador caracterizado como

ele,

um espaço em que esse

ele

se instaura como

e um tempo como

então.

A construção do texto por meio desse mecanismo cria a ilusão da não exis tên-

cia do sujeito que o produz, isto é , o narrador, pensado enquanto projeção da

instância do autor. Nesse sentido, reafirmamos o efeito de objetividade próprio

desse tipo de debreagem.

Pois bem, essa debreagem enunciva primeira instaurada no texto, desenca-

deia uma debreagem enunciativa, na medida em que aspersonagens (conselheiro

e seu amigo) fa lam. As falas do conselheiro constroem um discurso narra tivo,

na medida em que ele conta sua história de amor com Quintí lia . Ao contar essa

história ele é um narrador em primeira pessoa, por isso, podemos identificar aíuma

debreagem enunciativa. Temos um

eu,

conselheiro, um

aqui,

a rua da Glória, e

um

agora,

o momento em que as duas personagens passeiam pelo Rio de Janeiro.

O que procuramos mostrar aqui é que as debreagens enunciva e enunciativa são

procedimentos discursivos construídos por um processo de simulacros em que

um sujeito da enunciação (instância de discurso mais próxima do autor, externo

ao texto) projeta-se na forma de terceira ou de primeira pessoa.

A partir dos anos de 1980, o interesse dos estudos linguísticos voltou-se para

o conceito de interação, portanto não mais se estudou apenas a manifestação do

sujeito enquanto construto de linguagem, o que significa dizer que só se pode

compreender a linguagem a partir do exame da dimensão intersubjetiva que lhe é

inerente. Conforme abordaremos, mais adiante, ao tratarmos das paixões a partir

do exame do nível narrativo, além da constituição do sujeito discursivo, entram

em jogo papéis que se assemelham aos conceitos de Dest inador e Destinatário

examinados naquele nível.

Um dos desenvolvimentos atuais da semiótica, que espelha essa preocupa-

ção com o discurso em ato, é o estudo real izado por Coquet (1997) . Segundo o

autor, na organização do discurso deve ser observada uma escala triádica formada

por três actantes. O primeiro actante corresponde à oposição entre sujeito e não

sujeito; o segundo actante à categoria do objeto, que está sempre presente em

todo ato discursivo; o terceiro actante corresponde à categoria do Destinador da

sintaxe narrativa, que exerce o poder de manipular e julgar o fazer do sujeito.

Sua proposta consiste numa reinterpretacão dos pressupostos da semiótica para

o tratamento do discurso em ato.

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414

M U SS A L lM • B E N TE S

I N T R O D U Ç Ã O À L l N G u í S T I C A

Na medida em que os desenvolvimentos atuais da semiótica concentram-se

na realidade do discurso em ato, eles mantêm uma aproximação maior com a fe-

nomenologia. Assim, a semiótica passa a focalizar ao mesmo tempo a enunciação

e a percepção, que, juntas, são responsáveis pela inserção do sujeito no mundo.

4. F E N O M EN O L O G I A E S E M IÓ T IC A

Segundo Husserl, a fenomenologia explicita o sentido que a realidade do

mundo objetivo tem para todos por meio da experiência, sentido que a filosofia

pode recuperar, mas que não pode jamais modificar. Além disso, a fenomeno-

logia responde primeiramente à necessidade de descrever e de compreender a  

experiência vivida da verdade sem cair no psicologismo e no rela tivismo que

isso implica. A primeira forma que ela adquire é a de uma fenomenologia pura da

vivência dopensamento e do conhecimento; pura no sentido de que tem exclusi-

vamente relações, numa generalidade da essência, com as vivências apreendidas

pela intuição, e não com as vivências percebidas empiricamente. A descrição que

ela pratica apoia-se sobre os modos de ver o objeto e sobre as intuições que o

presentificam, assegurando à evidência o caráter de doação ordinária. Na medi-

da em que ela estende a operação de ver e a doação da coisa em pessoa a toda

atividade espiritual e perceptiva da consciência, a fenomenologia da vivência do

conhecimento alarga-se em uma fenomenologia pura da vivência em geral, em

uma ciência eidética puramente descritiva que se instaura sobre as configurações

imanentes da consciência.

O conceito de uma filosofia fenomenológica não está ainda inteiramente,

circunscrito. Uma consciência é um fluxo de efetuações cuja elucidação conduz

Husserl a levar cada vez mais em consideração a temporalidade imanente do

co-

gito.

O problema da constituição conduz ao da intersubjetividade transcendental

como ser primeiro em si mesmo, depois ao deuma fonte constitutiva mais original

que Husserl chama o mundo da vida . Diferentes autores anunciarão prolonga-

mentos específicos para as vias traçadas por Husserl. Heidegger radicalizará a

identificação da fenomenologia com a ontologia e proporá partir essa filosofia de

uma hermenêutica do estar-fora; Merleau-Ponty aprofundará nossa cumplicidade

primordial com o mundo e, por meio desse conceito, voltar-se- á sobre o idealismo

husserliano; Sartre e Ricoeur estabelecerão ainda outras transformações.

No caso de Merleau-Ponty especificamente, cuja influência faz-se sentir

nos trabalhos da semiótica, a perspectiva fenomenológica constitui-se a partir

de suas preocupações de cientista e psicólogo. Sua primeira obra, Estrutura do

comportamento,

é produzida a partir deuma crítica

à

psicologia experimental, ao

415

behaviorismo e à psicologia da Gestalt, muito em evidência na época. Portanto,

Estrutura do comportamento

não se interessa, num primeiro momento, pelas

experiências naturais e vividas, mas, ao contrário, pela interpretação ou o relato

dessa experiência produzidos pela ciência. Em linhas gerais, esse trabalho de

Merleau-Ponty é um confronto entre os dados obtidos pela psicologia experimental

e a noção de forma ou estrutura , segundo a perspectiva da Gestalt. Ele propõe

utilizar a noção de forma em três ordens de atividade: a física, a vital e a humana.

Alguns leitores da obra de Merleau-Ponty costumam dizer que, nessa obra

inaugural do autor, há dois motivos dominantes que estão relacionados com a

noção de forma ou estrutura . Um é o que aponta para a verticalidade das

estruturas behavioristas; outro é o que relaciona natureza e ideia ou, ainda, estru-

tura e sentido. Não propomos aqui discutir esses dois motivos destacados, mas

podemos dizer que as reflexões do autor sobre eles levam ao problema centra l

de sua filosofia, qual seja, a defesa da existência de um mundo significativo, o

que const itui o fundamento da racionalidade. O mundo é significa tivo apenas

para um conhecimento que o percebe. Com o objetivo de definir o que vem a

ser exatamente um conhecimento perceptivo é que Merleau-Ponty examina a

relação entre objeto e sujeito, natureza e conhecimento. Nesse sentido,

Estrutura

do comportamento esboça o campo de investigação e aponta o problema a ser

investigado, enquanto

Fenomenologia da percepção

empreende a exploração

do campo da percepção, constituindo-se num inventário do mundo percebido.

Na introdução de

Fenomenologia dapercepção,

Merleau-Ponty critica o que

chama de preconcei to cláss ico relat ivo à percepção e apela para um retorno ao

fenomenal. Recapitula, elabora, segundo seu ponto devista crítico, as pressuposi-

ções da ciência e dapsicologia gestaltiana e expõe detalhadamente as fraquezas da

filosofia transcendental ou crítica. Por meio da noção de empirismo da sensação

concebe a percepção como um acontecimento na natureza . Percepção para ele

é a ação, f ís ica ou química , mas sempre casual, deuma coisa ou de um órgão, e

sensação é o mero registro dessa ação. Para o empirismo, tudo acontece no mundo

objetivo e, por essa razão, não existe nenhum sujeito que percebe. Em oposição

a essa objetividade absoluta, o conceito de intelecto postula uma subjetividade

total. A reflexão do intelectualismo reconhece que em toda sensação há uma es-

pécie de Ego transcendental que corresponde ao sujeito da experiência e rejeita

o objetivismo materialista da observação empírica em favor de uma interioridade

pura, um

cogito

cuja existência consiste em manifestar o pensamento. Em linhas

gerais, a proposta de Merleau-Ponty em

Fenomenologia dapercepção

consiste

em pensar o conceito de estar no mundo . Isso implica a noção de significação

na medida em que as coisas que estão à nossa volta adquirem sent ido a part ir de

como as vemos e de como nos vemos em relação a elas. E essa mediação entre

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416

M U S SA LlM • B EN TE S

o sujeito e as coisas é estabelecida através do corpo, considerado, então, um

pré-sujei to, uma vez que é o mediador entre as coisas e o intelecto.

A relação entre Greimas e Merleau-Ponty pode ser observada já em Se-

mântica estrutural (1973). Na parte inicial dessa obra, inti tulada Condições

de uma semântica científ ica , Greimas defende a perspectivasemiótica para ~

constituição do diálogo e de uma semântica, isto é, para o estudo da significação.

Segundo ele, porém, uma semântica criada a partir desse ponto de vista não pode -

ser confundida com uma teoria do conhecimento, o que o leva a considerar a

percepção como o lugar não linguístico onde se situa a apreensão da significação

(p. 15). Mais adiante afirma que a semântica é reconhecida (.. .) abertamente

como uma tentativa de descrição do mundo das qualidades sensíveis (p. 16) e,

ao apresentar os primeiros conceitos operacionais a partir dos quais constrói sua

semântica, Greimas define cada um dos elementos opositivos, significante e

  significado , da seguinte maneira:

(...) designaremos com o nome de significante os elementos ou os grupos de ele-

mentos que possibilitam a apariçãoda significação ao nívelda percepção, equesão

reconhecidos, nesse exato momento, como exteriores ao homem. Designaremos

como nome de significado a significação ou as significações que são recobertas

pelo significante e manifestadas graças à sua existência (p. 17).

Essa referência à fenomenologia e, ao mesmo tempo, a separação que Grei-

mas faz entre a perspectiva de seu estudo sobre a semântica e o ponto de vista

fenomenológico podem ser explicadas pelo fato de que Greimas reconhece os

propósitos da fenomenologia para o estudo da significação, mas pretende abordá-Ia

de um outro ponto de vista que se assenta no método estrutural de investigação.

Embora admita que a percepção é inerente ao processo de significação, deixa

claro que não pretende ocupar-se dela.

Por outro lado, se observarmos o que acima ficou dito a respeito das ideias

que direcionaram Merleau-Ponty, desde Estrutura do comportamento, especi-

f icamente com relação às noções de estrutura e forma, poderíamos pensar que

não há, verdadeiramente, uma divergência metodológica entre a proposição de

Greimas e a do filósofo da fenomenologia, mas sim uma convergência. Acontece

porém que, de maneira distinta à do estruturalismo, Merleau-Ponty não fala de

estrutura imanente, mas sim de estruturas concretas, corporificadas. Segundo

essa perspectiva, a estrutura consiste no sentido corporificado. Conforme observa

Frayze-Pereira (1995), ela  não é natureza em si, nem sistema de posições da

consciência, mas posição de uma inteligibilidade espessa que se realiza através

das coisas e dos homens, anteriormente à reflexão  (p. 157). Isso significa dizer

IN TR O D U Ç Ã O À L l N G u í S TIC A

417

ainda, para Frayze-Pereira, que a estrutura, de acordo com o ponto de vista me-

todológico de Merleau-Ponty é:

uma reflexão operante, na qual as distinções entre o objetivo e o subjetivo não

são aquelas doem si e do para si, mas só podem ser postas como manifestações

particulares da unidadepeculiar de umaformae de umasignificação, unidadeque

definea diferença e a passagem da ordem fisica para a vital e desta para a cultural,

conforme demonstra Merleau-Ponty no terceiro capítulo de

A estrutura do com-

portamento

(p. 157).

Tomada nesse sentido, a estrutura, determinante do simbólico, é consequên-

cia de uma reflexão que não ocorre na consciência, mas sim no corpo. Quando

Merleau-Ponty diz que o corpo instaura a estrutura é porque está dizendo que

o sujeito relaciona-se com o objeto a partir de um para-si e não de um em-si , o

que significa recolocar a oposição objetivo/subjetivo de maneira oposta à que se

estabelecia anteriormente.

Com o desenvolvimento dos estudos em semiótica, a oposição entre o inte-

rior (linguístico) e o exterior (perceptível, sensível) do processo de significação

vai se diluindo, embora, no início, Greimas se ocupasse apenas do primeiro.

Essa diluição pode ser constatada numa obra como

Da impeifeição,

de 1987,

em que o autor radicaliza a visão perceptiva do sentido, e, pouco tempo depois,

em 1991, no livro que escreve com J. Fontanille, Semiótica das paixões. Neste

último, por meio do exame dos sistemas modais da narrativa, que exploramos

no item seguinte, háuma maior aproximação dos pressupostos fenomenológicos

para se chegar ao exame das paixões. Por outro lado, a própria epistemologia

das paixões construída por Greimas e Fontanil le vale-se de uma noção de corpo

muito próxima à de Merleau-Ponty. Conforme observa Tatit (1997), ao cornentar

a obra Semiótica das paixões,

o próprio subtítulo da obra,  des états de choses aux états d'âme , perfigura,de

algum modo, a resolução da dicotomia entre mundo (estado de coisas Comseus

semas exteroceptivos)e

sujeito

(estadosdealmacomseus semas interoceptivos)por

obra de um corpo quepercebe, sente e introduz, assim, os semas proprioceptivos

(responsáveis pelos sentimentos de atraçãoe repulsa).Aodissipar a separaçãoentre

mundo e sujeito, o

corpo,

como terceirotermoe eixo de uma estrutura participativa,

acaba adquirindo também os semas exteroceptivose interoceptivos (p.

163   .

A retomada do princípio fenomenológico para a semiótica tem se mostrado

presente nos mais diversos trabalhos realizados recentemente pelos vários estu-

diosos nesse campo de investigação do sentido.

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M U S S A U M • S E N TE S 419

418

5 . A S IN F L U Ê N C IA S D E P R O P P N O M O D E L O N A R R A T I V O E A T E O R I A D A S P A IX Õ E S

Durante sua primeira fase, até os anos de 1980, a semiótica esteve voltada

para os aspectos descontínuos da constituição do sentido ..Naquele momento i m   :

J22..r tava ensar as re ularidades como forma de construção de uma teoria ca ã Z

de explicar o processo significativo do texto. Como já apontamos anteriormente,

centrada numa semântica que se organiza segundo o modelo linguístico, a se-

miótica depara-se com o narrativo e passa ao exame de seu caráter sempre fixo,

o que dará origem aos diferentes estudos de descrição da organização narrativa

na constituição do sentido. Com o intuito de pensar um pouco os caminhos das

pesquisas em semiótica partindo das propostas da semiótica narrativa até a das

paixões, é que fazemos as considerações a seguir.

5 .1 . D a s e m i ó t i c a n a r r a t i v a

 

m o d a l iz a ç ã o d o s u j e it o

Para darmos conta aqui da passagem de uma semiótica narrativa para uma

semiótica das paixões, cabe recuperar um pouco o caminho do projeto semiótico

iniciado por Greimas nos anos de 1960, o que nos leva novamente

à

sua

Semân-

tica estrutural.

Nessa obra, o princípio organizador da narrativa é um modelo

sintático que se prende ao caráter ativo de sua constituição, tomando por base,

principalmente, aspropostas de V.Propp, apresentadas em seu trabalho intitulado

Morfologia do conto maravilhoso.

A narrativa é entendida nesse momento como

uma sequência de ações em que o componente sintático-semântico seorganiza de

forma a explicitar recortes semântico-culturais, o que leva os seguidores dessa pro-

posta a centralizarem-se na análise dos contos populares e dos mitos.A proposição

de Greimas de uma sintaxe-semântica de cunho antropológico diferenciava-se,

nesse momento, das outras que então apareciam, voltadas para o aspecto formal

e lógico. Ao invés de tomar o texto como uma sequência de enunciados forma-

dos por sintagmas encadeados por conectores lógicos, a semânt iça inaugural da

semiótica de Greimas pensa o princípio organizador da narratividade textual a

partir das noções de função do modelo proppiano.

Propp (1984) desenvolve um estudo das narrativas populares com o intuito

de realizar, no sentido biológico do termo, uma morfologia' desse tipo de texto.

7. A palavra

morfologia

signif ica o es tudo da s formas . Em botânica, por morfologia entende-se o estu-

do das partes que constituem uma planta e das relações ent re essas part es e o todo: em outras palavras, o

estudo da textura de uma planta.

 Ninguém havia pensado ainda na possibilidade da noção e da designação morfologia do conto

maravilhoso. Entretanto, no âmbito do conto popular, folclórico, o estudo das forma s e o e st abelecirnen-

IN T R O D U Ç Ã O

À

U N G u í S T l C A

Em seu estudo propõe as trinta e uma funções que, segundo seu ponto de vista,

desempenham as diferentes personagens que aparecem nesse tipo de narrativa.

Embora os relatos sejam os mais diversos, essas funções são entendidas como

unidades sintagmáticas sempre constantes cujo encadeamento constitui o conto.

Podemos perceber, portanto, que as funções proppianas trabalham com a noção

de personagens, que se relacionam entre si (o herói e o anti-herói, por exemplo),

_ e de objetos (aquilo que o herói obtém no final da narrativa ou o elemento mágico

de que precisa para adquirir seu prêmio). Isso significa dizer que, constantemente,

o que se leva em consideração na organização textual dos contos populares é o

princípio da ação.

Apart ir domomento que tomamos a proposta de Propp e a estendemos para

osmais diferentes tipos detextos que existem, pensamos numa  morfologia  não

só do conto maravilhoso, mas de todo e qualquer texto. Foi pensando assim que

Greimas imaginou sua semântica narrrativa. Acontece, porém, que as funções

proppianas eram muito marcadas ainda pelo tipo de texto com que o autor havia

trabalhado e, ao mesmo tempo, obedeciam a um princípio de descrição em que

muitos elementos se repetiam. Com o objetivo de precisar um pouco mais a pro-

posta do autor russo, Greimas pensou a noção de função em termos de enunciado

narrativo. Assim, o enunciado, chamado elementar, passa a ser entendido como

uma relação-função, portanto, sintática, entre actantes - posições resultantes

da constituição desse enunciado. Os actantes, por sua vez, designam o sujeito

e o objeto que estão sempre em relação na organização do enunciado. Vê-se,

portanto, que a complexidade das trinta e uma funções proppianas é reduzida

à

relação instaurada no enunciado entre o sujeito e o objeto.

À

descrição dessas posições do sujeito e do objeto é necessário o investimen-

to semântico que está compreendido na noção de transitividade, o que instaura,

como desdobramento, as concepções de junção e transformação, responsáveis

pela constituição dos enunciados elementares canônicos: o enunciado de estado

(Sujeito em conjunção com o Objeto, representado por S

n

O; ou Sujeito em

disjunção com o Objeto, representado por SuO) e o enunciado do fazer (Sujeito

em disjunção com o Objeto passa a entrar em conjunção com ele, representado

por SuO ~ SnO; ou Sujeito em conjunção com o Objeto passa a entrar em

disjunção com ele, representado por S í O ~ SuO). Como essas duas formas

de enunciado são mínimas, é preciso pensar uma complexificação de sua orga-

nização no texto, o que aponta para dois aspectos centrais na descrição sintática

da narrativa para a semiótica.

to das leis que regem sua disposição é possível com a mesma precisão da morfologia das formações or-

gânicas (p. 11).

420

M U SS AL lM • S EN TE S

I N T R O D U Ç Ã O

À

L l N G u í S T I C A

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o

primeiro é o fato de que os enunciados organizam-se de forma hierar-

quizada, num nível crescente de complexificação, o que é representado pelas

noções de programa narrativo, percurso narrativo e esquema narrativo. Na pri-

meira delas, a do programa narrat ivo, representado PN, tem-se um enunciado

de estado regido por um enunciado do fazer que dá origem a duas diferentes

formas: o PN de competência, quando o sujeito do fazer e o sujei to de estado são

atores diferentes; e o PN de

performance,

quando o sujeito do fazer e o sujeito

de estado são os mesmos atores. No percurso narrativo tem-se um PN de per

formance

regido por um PN de competência, o que dá origem a três diferentes

formas: o percurso narrativo do sujeito, em que o sujeito adquire a competência

para a realização da performance; o do destinador-manipulador, em que esse

actante propõe um contrato com o destinatário-sujeito para dotar-lhe de com-

petência para a realização daperformance; e o do destinador-julgador, em que

esse actante julga a

performance

realizada pelo sujeito. No esquema narrativo

há a organização lógica dos três percursos narrativos anteriormente descritos, o

que dá origem a quatro diferentes etapas: a da manipulação, a da competência, a

daperformance

e a da sanção. No final do item 2 deste trabalho, inti tulado Um

modelo em níveis: percurso gerativo de sentido , apresentamos uma análise que

ilustra esses conceitos.

O segundo aspecto refere-se ao fato de que, como não prevê a existência

única e exclusiva de um enunciado elementar, o modelo semiótico proposto por

Greimas não pretende chegar a uma forma fixa de composição narrativa que

não pode sofrer nenhuma variação. Ao contrário, procura mostrar como cada

texto organiza, das mais diferentes formas, sua constituição narrativa. Conforme

aponta Barros (1995),

nessafaseda sintaxenarrativa,a narratividadeé concebidacomoumatransformação

de estado, operada pelo fazer transformador de um sujeito queage sobre o mundo

em busca de certos valores investidos nos objetos. Os conflitosentre sujeitos pas-

sam pela relação com o objeto: sujeito e anti-sujeito são sujeitos interessados nos

mesmosvalores. A narrativasimula, nessa fase, com a ação, a históriada busca de

valores (p. 85).

O que sepode constatar por meio dessa rápida recuperação dos elementos

construtores do nível narrativo do modelo semiótico é como ele foi se construindo

por meio da reflexão e da transformação da proposta realizada por Propp. Não se

pode esquecer, porém, que outros trabalhos de diferentes autores contribuíram

para a reflexão que os semioticistas do grupo de Greimas realizavam em torno

desse modelo, tais como os de Lévi-Strauss, Hjelmslev, Benveniste e Barthes.

As principais criticas endereçadas a essa fase do modelo semiótico proposto

por Greimas diziam respeito à sua aplicabilidade, pois não era possível pensar a

descrição de seus enunciados em textos muito extensos. Além disso, outra acusação

partia daqueles que viam no modelo estruturalista um reducionismo, uma vez que,

segundo eles, alienava-se do contexto social implicado no processo de constituição

do sentido.

Uma vez que o enunciado se instaura por meio da relação entre um su-

jeito (S) e um objeto (O), a semiótica reconhece a existência de duas classes

de modalidades: a do ser e a do fazer. Ao mesmo tempo, porque entende que a

dimensão narrativa do discurso organiza-se por meio de um esquema narrativo

(já referido anteriormente) , a relação entre os sujeitos e os objetos pressupõe

ainda as categorias do Destinador e do Destinatário. Assim, entram em jogo

~ quatro outras ~lidade ue se associam ao ser e ao fazer. São elas: o

~, o ~ o ~ saber. Um destin~dpr-mani ulador, por exemplo,

pode levar um destinatário-man° pulado a uerer~u dev azer ou ser algo e esse

destinatário cumpre o percurso de realização na medida em que pode ou sabe

fazer ou ser esse al~. pocll  :~oIJ r ~

Em decorrência dos ~dos sobre a narratividade até então desenvolvidos,

os primeiros trabalhos realizados no sentido de explorar a modalização na sintaxe

narrativa voltam-se para o exame da modalidade do fazer. Inicia-se nessa fase

das investigações em semiótica uma exploração da categoria do sujeito que, no

nível do discurso, concretiza-se na figura do atoQ)Os estudos relativos ao nível

discursivo incorporam o componente sócio-histórico do qual a semiótica havia

sido acusada de se distanciar. Ao m~smo tempo, as modalidades narrativas vão se

constituindo num eficiente caminho para a caracterização da categoria subjetiva

da narração.

A definição do estatuto do sujeito, tal como interpretam atualmente os tra-

balhos em semiótica, é estabelecida a part ir da proposição de quatro modos de

existência: o

virtual,

o

atual,

o

realizado

e o

potencial.

Nos anos de 1980, o quarto

modo de existência, o

potencial,

não era ainda proposto, o que só foi possível

a partir da década de 1990, com a evolução das pesquisas sobre a modalização

do sujeito na constituição narrativa, principalmente por meio das observações

iniciais de Greimas e Fontanille (1993). O modo de existência virtual do sujeito

é definido por meio da modalização pelo querer-fazer e pelo dever-fazer, uma

vez que o sujeito só inicia o percursO da ação na medida em que é movido por

IJ: :\ 8. Na semiótica, ~ convertido em ator q lando inscrito em perçmsoS temático

s

e figurativos..  2

~ível discursivo. .

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422

M U S S A L lM • B E N TE S

um querer ou por um dever, consequentes do processo de manipulação realizado

pelo destinador. O modo de existência

atual

refere-se à competência que o sujei-

to adquire ou possui para a real ização da performance, portanto é definido por

meio da modalização pelo poder-fazer e pelo saber-fazer. O

realizado

refere-se

diretamente à

performance,

portanto à modal ização pelo fazer , na medida em

que o suje ito já se encontra atual izado e vir tual izado. O último modo de exis-

tência, o

potencial,

é entendido como uma precondição do sujei to para o fazer,

ou seja, o que mais tarde, na semiótica das paixões, é interpretado como uma

protensividade do sujeito.

O que se pode constatar , então, é que, nessa fase dos estudos semióticos,

passa-se do exame da relação entre o sujei to e o objeto para o exame da relação

entre sujeitos. Desenvolvem-se os trabalhos sobre o processo de manipulação

instaurado na narrativa entre um destinador-manipulador e um destinatário-sujeito

que é responsável pelo fazer. A concepção inicial da narrativa como uma sucessão

de estados e de transformações passa a assumir uma outra dimensão, qual seja, a

de uma sucessão de estabelecimentos e rupturas de contratos entre o destinador

e o destinatário. A partir dessa perspectiva chega-se a uma tipologia do processo

de manipulação que propõe quatro diferentes formas de realização: a provocação,

a sedução, a intimidação e a tentação.

A consequência dos trabalhos realizados nessa fase dos estudos semióticos

em relação à modalização do fazer constitui-se na reafirmação de um dos pres-

supostos básicos da produção do ato de comunicação, qual seja, o de que ele não

se reduz simplesmente a uma transmissão de mensagem entre um emissor que a

informa e um receptor que a capta, tal como propunha o modelo jakobsoniano,

mas como uma relação entre sujei tos em que o fazer persuasivo do dest inador

é acompanhado de um fazer interpretativo do destinatário. Quando transposto

para o nível do discurso, esse pressuposto irá instaurar uma rediscussão de sua

dimensão argumentativa.

Com as invest igações da modal ização do fazer, passa-se à exploração

da modalização do ser. Em relação à modalização do fazer, o que se pôde

constatar é que ela é responsável pela competência modal do suje ito do fazer,

qualificando-o, dessa forma, para a realização da ação. Na modalização do ser,

que determina a constituição do sujeito de estado, observa-se uma relação entre

esse sujeito e o objeto de valor no próprio enunciado de estado. Para tanto, o

que se constata é que essa relação entre o sujeito e o objeto nos enunciados de

estado é resultante de categorias tensivas e fóricas fundamentais. Isso significa

dizer que o sujeito mantém com o objeto uma relação tensiva, que compreende

a intensidade (aspecto pontual) ou a extensidade (aspecto durativo); e uma

I N T R O D UÇ Ã O

À

L lN G uí ST lC A

423

re lação fórica , que compreende a euforia (valor ização posi tiva) ou a disfor ia

(valorização negativa).

Quando falamos de modalização do ser precisamos distinguir duas diferentes

formas de processos modalizadores do enunciado de estado. O primeiro diz res-

peito à modalização do próprio enunciado, isto é, a que recai sobre o predicado,

e que compreende as modal idades ver idic tórias (ser e parecer) e a epistêmica

(crer). O segundo diz respeito

à

modalização do objeto, isto é, a que determina o

objeto, e que, tal como na modalização do fazer, compreende o querer, o dever,

o saber e o poder.

No primeiro caso, quando se tomam as modalidades veridictórias, tem-se o

estabelecimento da noção de veridicção, na medida em que o sujeito modalizado

relaciona-se com o objeto de acordo com quatro diferentes possibilidades: a verda-

de, a falsidade, a mentira ou o segredo. Um enunciado é considerado verdadeiro,

falso, mentiroso ou secreto quando um sujeito, que não o modalizado, diz como

o interpreta. Assim, o que se coloca novamente emjogo é o fazer interpretativo

do sujeito determinado pela maneira como ele capta a relação modal do actante

sujeito com o objeto. Além disso, o que seconstata é que esse fazer interpretativo

do sujeito é sobredeterminado pela modalidade epistêmica do crer. Portanto, nesse

processo de crença entra em jogo um saber que é próprio do universo cognitivo

do sujeito; reconhece-se, então, o caráter ideológico da interpretação.

No segundo caso, ao observar a relação entre o actante sujeito e o objeto do

ponto de vista do enunciado de estado, toma-se consciência do valor investido

nesse objeto. Assim, diferentemente da modalização do fazer, que busca mostrar o

processo de transitividade que compreende a passagem de um estado para outro,

na modalização do ser, observam-se os procedimentos de investimento semântico.

Uma vez que o sujeito deestado passa a ter existência a partir da relação dejunção

(conjunção ou disjunção) com o objeto, é por meio do processo de modalização

que se instaura sua competência (fazer) e sua existência (ser) . Além disso, por

meio do estudo da modalização chega-se

à

observação de diferentes estados do

sujeito, conforme sedistinguem os valores investidos nos objetos. Assim, tem-se

o estado das coisas e o estado de alma.

A tensividade que caracteriza a relação entre o sujeito e o objeto ou a relação

entre o Destinador e o Destinatário corresponde

à

curva ascendente de tensão

ou à curva descendente, o relaxamento. Assim, os sentidos no nível narrativo

constroem-se interminavelmente pela relação tensa ourelaxada entre os elementos

categoriais da narrativa. O exame do processo modalizador do fazer dá conta das

formas de ação dos sujeitos no discurso, já a modalização do ser vai desencadear

o exame das paixões. Assim, as paixões passam a ser entendidas como um efeito

de sentido de qualificações modais que atuam sobre o sujeito de estado.

424

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MUSSAlI M • S ENT ES 425

5 .2 . A s p a ix õ e s o s e n s ív e l a e s t e s ia . R e t o m a d a d a f e n o m e n o l o g i a

Da

imp rf ição

causa uma certa estranheza, quando aparece nofinal dos anos

de 1980, por contrastar com as obras de cunho teórico escri tas por Greimas até

então. Este pequeno livro é dividido em duas partes. A primeira compreende um

conjunto de análise de textos literários em que são ressaltadas impressões estéti-

cas relativas à construção desses textos. A segunda parte mantém a preocupação

com a questão estética, só que então visualizada em diferentes aspectos da vida

cotidiana. O maior propósito desse livro de Greimas parece ser o reconhecimento

do envolvimento emocional do analista com o objeto de análise, da valorização

do belo na constituição do discurso, o que significa realizar um enfoque feno-

menológico do objeto. Na medida, portanto, em que trabalha com o sujeito de

estado, procura avançar o exame das paixões, já iniciado anteriormente quando

do aparecimento do texto de Fontanille sobre o  desespero , em 1980, o de Grei-

mas sobre a cólera , em 1981, e o deMarsciani sobre a  indiferença , em 1984.

Esses trabalhos aqui citados examinam as paixões lexicalizadas, como forma de

determinar o contexto e o uso; em Da imperfeição, Greimas lança as primeiras

bases para a teoria das paixões que aparecerá a seguir, quatro anos depois.

Semiótica das paixões: dos estados de coisas aos estados de alma

propõe,

então, a teorização das paixões. Partindo do estabelecimento deum panorama dos

estudos da semiótica em que se levanta a distinção entre o enfoque do descontí-

nuo e do contínuo, o primeiro capítulo apresenta uma epistemologia das paixões.

Neste primeiro capítulo é apresentada, na últ ima parte, uma metodologia das

paixões. O capítulo II desenvolverá uma análise sobre a  avareza  e o III sobre

o ciúme . Trata-se agora do exame damanifestação de determinada paixão que

caracteriza sujeitos e que desencadeia suas ações.

Atualmente, o que se entende por lógica da paixão corresponde à modula-

ção contínua da intensidade semântica, em relação com a quantidade, quer seja

a quantidade actancial quer a extensão espacio-temporal. A paixão realiza uma

transformação da mesma maneira que a ação, mas a racionalidade que a dirige é

a das transformações tensivas, transformações de tensões próprias à intensidade

e à extensidade. No que se refere aos esquemas do discurso, a paixão obedece,

então, mais aos esquemas tensivos, enquanto a ação obedece aos esquemas nar-

rativos canônicos.

Conforme já anunciamos no item anterior, outro aspecto dominante nos

estudos semióticos atuais é a presença da perspectiva da fenomenologia. Tri-

butária de Husserl e Merleau-Ponty, a perspectiva semiótica constrói-se a partir

da valorização da observação do fenômeno em acontecimento. Dessa forma, o

sentido do texto constrói-se na medida em que é um evento fenomenológico.

IN TR ODUÇ ÃO À lING uíS Tl CA

Enquanto uma das categorias da filosofia aristotél ica, a paixão opõe-se à

ação como duas formas de o ser se manifestar. A paixão é, nesse caso, a qualidade

ou o conjunto das qualidades passivas não só do sujeito mas também de todo

objeto em geral. A correlação entre a ação e a paixão é, em suma, de acordo com

a definição apresentada desta última, uma correlação ontológica e não psicológica.

Já no século XVII, Descartes ocupa-se também da noção de paixão em seu

texto chamado

As paixões d'alma.

Segundo o autor, o corpo humano é uma má-

quina em que os diversos órgãos trabalham no sentido daprodução de ações e de

paixões. Privilegiando o cérebro como órgão catalisador das sensações, Descartes

mostra que as paixões são controladas pela ação deuma glândula nele localizada.

Ao examinar as diferentes paixões que se manifestam no corpo humano, estabe-

lece as cinco paixões primitivas que são: a admiração, o amor, o ódio, o desejo,

a alegria e a tristeza. O sentido da admiração por ele utilizado não tem o valor

positivo que atualmente adquire, pois, no século XVII, admirar corresponde a

 olhar com espanto qualquer coisa surpreendente ou da qual se ignora a causa .

De uma forma geral, a admiração é uma paixão catalisadora, juntamente com

o desejo, enquanto o amor está em contraposição ao ódio e a alegria à tristeza.

Sua dist inção entre o amor e o ódio é colocada da seguinte forma:  o amor

é

uma emoção da alma, causada pelo movimento dos espíritos que a incita a

unir-se com vontade aos objetos que lhe parecem ser convenientes. E o ódio éuma

'emoção, causada pelos espíritos, que incita a alma a querer se separar dos objetos

que se apresentam a ela como nocivos (Descartes, 1996, p. 147). O conceito

de espíri to para Descartes corresponde à matéria de composição do sangue que

circula entre o coração e a glândula do cérebro que capta as diferentes sensações.

A partir das seis paixões primitivas, Descartes faz um levantamento de trinta

e quatro outras paixões consideradas particulares: estima, desprezo, magnanimi-

dade, orgulho, humildade, baixeza, veneração, desdém, esperança, inquietação,

segurança, desespero, ciúme, irresolução, resolução, rivalidade, fraqueza, pavor,

remorso, deboche, inveja, piedade, autossatisfação, arrependimento, favor, reco-

nhecimento, indignação, cólera, glória, vergonha, desgosto, pesar e efusividade.

Todas essas paixões particulares estão interligadas às principais e a algumas desi

mesmas. Ao comentar, por exemplo a estima , diz que  à admiração está ligada

a estima ou o desprezo, segundo seja a grandeza de um objeto ou sua pequenez

que admiramos. E podemos assim nos estimar ou nos desprezar a nós mesmos: de

onde vêm as paixões e, em seguida, os hábitos de magnanimidade ou de orgulho

e de humildade ou de baixeza  (Descartes, 1996, p. 136).

Para Descartes, aspaixões da alma são a manifestação do pensamento, um

reflexo do cogito a partir do qual ele busca a asserção da verdade, e diferenciam-se

dos corpos. A alma, para ele, cuja essência é o pensamento, pode muito bem ser

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426

M U SS A L lM • BE N T E S

pensada sem extensão, uma vez que a extensão não é o essencial; o corpo, cuja

essência é a extensão, pode ser concebido sem pensamento.

Quando Merleau- Ponty, na Idade Contemporânea, desenvolve suas reflexões

a partir da proposta fenomenológica, também destaca a importância da relação

entre o corpo e pensamento. Em seu texto Fenomenologia da percepção, por

exemplo, parte da observação da sensação como oriunda darelação do corpo com

o mundo objetivo; um ato, ao mesmo tempo, interior e exterior. Segundo o autor,

o verdadeiro

cogito

não define a existência do sujei to pelo pensamento que ele tem

de exist ir , não converte a cer teza do mundo em certeza dopensamento do mundo

e, enf im, não substitui o mundo mesmo pela signif icação mundo. Ele reconhece,

ao contrário, meu próprio pensamento como um fato inali enável e elimina toda

espécie de idealismo fazendo-me descobrir como ser no mundo (2001, p. VIII).

Na medida em que nos valemos da semiótica para interpretar textos,

importa perceber como sua reflexão teórica acumulada durante seu longo

percurso de desenvolvimento é capaz de resolver a questão da análise. Nesse

sentido, portanto, é que entendemos ser importante observar um texto a partir

da perspectiva semiótica, dando destaque às paixões, para procurar dar conta

da constituição de seu sentido. É pensando dessa forma, portanto, que esboça-

remos a seguir uma análise do conto A desejada das gentes, escrito em 1904

por Machado de Assis.

5 .3 . O d is c u r s o d a p a ix ã o

o

conto de Machado constrói-se por meio do diálogo entre duas persona-

gens. O conselheiro conta a seu amigo uma paixão que viveu alguns anos antes

do encontro que deu origem a esse diálogo produzido entre os dois.

A aventura inicia-se por uma brincadeira. O conselheiro vai, um dia, ao

teatro e escuta, nos corredores, comentários de outros homens que exaltam a

beleza de Quintília e seu caráter de fortaleza inexpugnável , que repelia todo

pretendente a seu amor. Do ponto de vista da ação, é essa conversa entre rapazes

que manipula o conselheiro a disputar o amor de Quintíl ia . Mas a brincadeira

toma outro rumo, pois o conselheiro apaixona-se efetivamente pela bela mulher.

Outros rivais aparecem para disputar a atenção de sua amada, mas logo d~-

sistem, e o conselheiro vai alimentando uma esperança  de que Quintília ceden

a

9.  que é ur na planta daninha, que me comeu o lugar de outras plantas melhores (p. 509).

I N T R O D U Ç Ã O À Ll N G u í S T I C A

427

somente a ele. O esperançoso é aquele que crê poder estar em conjunção com o

objeto do desejo, e assim é como se sentia o conselheiro. Suas esperanças cresciam

na medida em que via que seu laço de união com Quintí lia não se dissolvia como

o de outros pretendentes. A espera, responsável pela manutenção do percurso

da paixão complexa, como é o caso dessa instaurada no conto de Machado, é

reforçada pelo estado de separação instaurado entre os dois em função de outros

acontecimentos. Reforça-se, assim, o estado de tensão, que é próprio da espera.

A tensão da espera atinge seu grau mais agudo, a ponto de o próprio sujeito,

que narra seu estado, dizer que estava iludido pelos índices que apontavam para

a distensão, que corresponderia ao momento de aproximação entre os

dois. 

Em-

bora efetivamente Quintília não cedesse aos apelos do conselheiro, aos olhos dos

outros o compromisso já era praticamente certo. O sentimento de ilusão a que o

conselheiro se refere corresponde, ainda, à oposição parecer versus ser. Eles não

estão unidos no nível do ser, embora estejam comprometidos no nível doparecer.

Mas outro fato desencadeia um novo período de afastamento entre os dois.

Com a nova aproximação, que se segue ao segundo período de afastamento,

novamente a espera se intensifica. Para que o estado da espera termine, levado,

até então, à tensão absoluta, é preciso que o sujeito que o sofre realize um fazer:

declarar-se abertamente àquela que é a razão do seu desejo. Então o conselheiro

resolve fazer o pedido de casamento.

A resposta negativa de Quintíl ia instaura a decepção, a paixão contrária à

da esperança. Por outro lado, ela não é uma resposta cabal, na medida em que é

manifestada por um enunciado interrogativo-negativo seguido de um declarati-

vo: Casar para quê? Era melhor que ficássemos amigos como dantes (p. 509).

Talvez por esse fato, instaura-se entre os dois uma sequência argumentativa: ele

para convencê-Ia a ceder; ela para fazê-Io aceitar a recusa. Nada, porém, faz com

que Quintília mude de opinião.

Um novo afastamento entre ambos distende o sentimento de frustração

instaurado pela recusa. Mas Quintília escreve uma carta ao conselheiro pedindo

para que ele vá vê-Ia. O argumento que o conselheiro apresenta para não aceitar

o convite de Quintília é o sentimento daquele que tem vergonha da submissão ao

fazer do outro: a humilhação. Depois detoda a espera, depois de todas as tentativas,

aceitar uma recusa final era colocar-se numa posição de quem é humilhado pelo

outro. Mas contra essa declaração, Quintília apresenta um argumento lógico: não

10.  ( ...) Iludido, a princípio, p orqu e no meio d e t ant as candidaturas malogradas, Quintília preferia-me

a t odos os outros homens, e conversava comigo mais largamente e mais intimamente, a tal ponto que chegou

a Corre r que casávamos (p. 508).

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428

M U S S A L l M • S E N T E S

fale de humilhação, onde não houve público  (p. 510). A frase dita por ela mantém

a oposição ser

versus

parecer, na medida em que não desfaz os comentários dos

outros sobre o fato de os dois estarem envolvidos, uma vez que a impossibilidade

do casamento entre ambos é sabida apenas por eles, numa situação de intimidade.

Essa frase reforça ainda o sentido do emprego, utilizado pelo enunciador, do nome

humilhação. Esta só acontece na medida em que a submissão de um sujeito ao

fazer do outro é testemunhada por u m terceiro, o observador, o que não tinha sido

o caso da recusa de Quintília ao pedido doconselheiro. Novamente serestabelece

a esperança, caracterizada pelo reavivamento da tensão da espera.

I I

Essa segunda espera instaurada pelo conselheiro é a quela própria do amante

já desenganado, que sabe ter remotas chances de possuir o objeto amado. Não

se pode, porém, dizer que a espera está em situação de relaxamento, porque se

assim fosse não existiria; a espera tem sempre que conter uma tensão, ser, mesmo

minimamente, eufórica. O que diferencia a primeira espera da segunda é apenas

a diminuição do grau de intensidade. Enquanto o conselheiro vive a segunda

espera, observa atentamente o objeto do desejo para poder avaliar as reais pos-

sibilidades de sua obtenção. Sua constatação é que Quintília não se apaixonava,

desconhecia esse sentimento,  era uma mulher que não se envolvia sequer com

a leitura amorosa.

A espera só é satisfeita quando Quintília se vê desenganada pelo médi-

co, acometida de uma doença incurável. Nesse ponto da narrativa ocorre uma

mudança de estado do conselheiro. Ele passa de um sujeito da espera para um

sujeito da falta; o casamento acontece, mas Quintília está diante da morte, o que

significa que o conselheiro consegue seu intento de secasar, mas está na iminência

de perdê-Ia para sempre. O fazer de Quintília (casar-se com seu pretendente) é

uma recompensa ou uma punição? Ela é um destinador-julgador ambíguo, que

ocupa a função própria de quem julga, mas não deixa claro como está julgando.

Seu últ imo ato antes da morte foi impulsionado pela piedade? Quintília sentia

culpa por não poder corresponder ao amor do conselheiro? A i sso o conselheiro

responde quando diz que o fato de Quintília ser uma fortaleza inexpugnável 

era porque ela  tinha ao casamento uma aversão puramente física .

11. Não se falou em nada; ao princípio, custou-me muito parecer o que era dantes; depois, o demônio

da esperança veio pousar outra vez no meu coração; e , s em nada exprimir, cuidei que um dia, um dia tarde,

ela vies se a casar comigo (p. 510).

12.  Foi então que a estudei muito; escutando as suas leituras vi que os livros puramente amorosos

achava-os incompreensíveis, e, se as paixões aí eram violentas, largava-os com tédio. Não falava assim por

ignorante; tinha notícia vaga das paixõ es, e a ssistira a algumas alheias  (p. 511).

I N T R O D U Ç Ã O À L l N G u í S T IC A

429

  F i g u r a t i v i d a d e

Sob a égide do pensamento de MerIea - , o desenvolvimento da semi-

ótica mostra-se também no que se refere à figuratividade, mais particularmente,

encaminha-se à apreensão de um outro tipo de fi urati' e, que se articula à

estabeleci da anteriormente orno e elto e sentido do discurso Retomamos esta

figuratividade que compõe a semantica discursiva do percurso gerativo de sentido.

A

semântica discursiva descreve e explica a conversão dos percursos narra-

tiyos em percursos temáticos e a cobertura destes por meio das figuras. A tema-

tização e a figurativização são, no modelo clássico da semiótica, realizações do

suíeíto da enunciacão que as utiliza como elementos mantenedores da coerência

discursiva, na medida em que são estabeleci das, com a recorrência de temas e

e figuras; isotopias temáticas e figurativas, respectivamente.

Na tematização, háa passagem para o nível discursivo dosvalores assumidos

pelo sujeito na instância narrativa, sob a forma de temas organizados em percursos.

Para recobrir esses temas, o sujeito da enunciação utiliza-se da figurativização,

entendida como procedimentos discursivos empregados, na enunciação, para

co ncreti zá - lo s sensorialmente.

A figurativização pode ocorrer de maneiras diferentes nos vários tipos de

discursos. Por um lado, o investimento figurativo pode ser esporádico e não reco-

brir totalmente os percursos temáticos, que se mantêm com isotopias temáticas.

Por outro, as figuras podem espalhar-se no discurso todo, organizando-se em

isotopias figurativas, como é o caso do discurso literário.

Assim. é oossível afirmar que ~existem discursosQfig:urativos. ma

sim discursos em que, ao contrário dôitferário. há um orocesSOde filiu[2tjvjzação

menos intenso.

 

~cx..Ti z ~  

É também por meio da urativiza ã ue a enuncia ão rocura criar o~

.efeitos de sentido de realidade.

 O

enuncla.90r util iza as figuras do discurso para '~

fazer-crer, ou seja, para fazer o

enu nciatário

reconhecer 'imagens do mundo' e,

7J\

a partir daí, a 'verdade' do discurso (Barros, 1988, p. I 18).

Responsável, portanto, por criar na linguagem o efeito de referência ao

mundo, a figuratividade fundamenta-se no contrato de veridicção estabelecido

culturalmente entre sujeitos, nas suas crenças compartilhadas. Resulta de uma

grade cultural de leitura, nas palavras de Bertrand (2000).

Apontada pelo mesmo autor, a outra maneira de apreender a figuratividade, a

que fizemos menção no início deste item, não diz respeito à percepção do mundo

estabilizada; antes, decorre, em termos da fenomenologia, de uma  suspensão 

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43 2

M U S SA LlM • S EN TE S

possibilitam-nos prosseguir a reflexão sobre a figuratividade e retomar aspectos

da análise semiótica apresentados anteriormente.

Vimos que a semiótica identifica dois programas narrativos, elementares

da significação, consti tut ivos de toda linguagem: o programa de conjunção e o

de disjunção; o primeiro programa narra uma busca e o segundo, uma fuga (Lo-

pes, 1995). Dedicada primeiramente à descrição do

fazer-ser,

do simulacro das

ações do homem no mundo, a semiótica incorpora à sua reflexão o próprio ser,

a passionalização do ser. As transformações dos estados de coisas do mundo

resultam das ações do sujeito e relacionam-se com seus estados de alma ; em

outras palavras, as transformações do fazer, seu ritmo, valor e direção, estão

vinculadas às mudanças do ser, à intensidade e orientação de seu querer. Não há

nem pode haver um programa do fazer que não seja vivido na interioridade dele

como um programa do ser (Lopes, 1995). O dualismo estados de alma / estados

de coisas , interioridade/exterioridade, sujeito/mundo encontra, assim, no corpo

que sente e deseja (busca ou foge), uma dimensão semiótica homogênea, em que

se correlacionam as ações e os afetos.

Os dois textos que nos motivam a reflexão tomam a intransponível relação

sujeito/mundo, seja como tema que coloca sujei tos diante de seu mundo, seja na

relação do enunciador/enunciatário com o mundo construí do no próprio texto.

Tomemos o primeiro caso.

Verifica-se, nos dois textos, uma transformação principal em cujo estado final

o sujeito encontra-se com seu objeto. Os dois textos narram, portanto, uma história

de melhoramento; introduzem um mundo às escuras - metáfora da guerra e da

repressão - e, após o momento de sua transformação, oferecem, principalmente

aos olhos, o espetáculo, as figuras de um novo mundo que sepode ver, antever.

Ambos os textos uti lizam a oposição dia/noite, que se relaciona às figuras

da visibilidade (claro/escuro, ver/não ver), mas também da audição (sonoro/

silencioso, ouvir/não ouvir) , do movimento (estát ico/dinâmico, mover-se/não

mover-se) e ainda se vincula, no nosso imaginário, à oposição vida/morte.

No poema de Drummond, a figura da noite, da não visibilidade, é reiterada

ao longo detoda a primeira estrofe. Na noite, não se vê o homem. A noite desce,

Mas, sob o sono dos séculosl Amanheceu o espetáculo/Como uma chuva de pétalas/Como se o céu vendo

as penaslMorresse de pena E chovesse o p erdão

E a prudência dos sábioslNem ousou conter nos lábios/O sorriso e a paixão

Pois transbordando de f loresl A calma dos lagos zangou-sei A rosa-dos-ventos danou-seiO leito dos rios

fartou-selE inundou de água

docel

A amargura do mar

Numa enchent e amazônicaINuma explosão atlântica/E a multidão vendo em pânico/E a mult idão vendo

atônita  Ainda que

tarde  O

seu despertar .

IN T R O D U Ç Ã O À Ll N G uí S T lC A

43 3

cai sobre o mundo e o esconde, dissolve os homens, as pátr ias, espalha o medo,

é mortal, tremenda, completa. Tem-se aí descrita, sempre na perspectiva de um

sujeito em primeira pessoa (debreagem enunciativa), uma cena desumana, de

guerra, de morte, um mundo fascista, sem fraternidade, sem amor, sem esperança,

sem movimento.

De modo semelhante, porém sempre em terceira pessoa (debreagem enunci-

va), Rosa dos ventos reitera também várias figuras do não humano nas suas duas

primeiras estrofes. O amor, a solidariedade inexistem; imperam o escândalo, o

trágico, a tortura, o pálido, a passividade. Há movimento, mas pelas trevas, e o

som é um murmúrio entre as pregas.

Nas duas histórias, a desumanidade chega repentinamente e acontece an-

teriormente ao momento de sua narração; os verbos, nos textos, indicam ações

pontuais e já ocorridas. O poema de Drummond diz: A noite desceu , A

noite caiu , A noite anoiteceu tudo . No outro texto, a conjunção e introduz

mudanças inesperadas e continuadas, ações que se precipitam em sucessão e

simultaneidade ao longo de todo o texto: E do amor gri tou-se o escândalo/Do

medo criou-se o trágico .... . Até um novo hábito é repentinamente adquirido: E

na gente deu o hábito/De caminhar pelas trevas .

No restante dos dois textos, o excesso, a intensidade da noite anuncia

uma ruptura, uma grande mudança ilumina um novo mundo, introduzida por

conjunções adversativas, que contrariam o que foi dito anteriormente.

No poema, tendo diante de si o mundo negro, despojado de vida, o sujei to,

desencantado, privado de visão, anseia um novo mundo, que já antevê, pressente.

A presença desse novo mundo anuncia-se como a aurora,  6 presumida, imaginada,

aguardada pelo sujeito em primeira pessoa, que se dirige a ela ( Aurora,/entretanto

eu te diviso ... ) já modificado, emocionado: minha carne estremece na certeza

de sua vinda . A aurora que surge, tímida, mas resoluta, move-se, com delicade-

za, sem pressa, expulsando a treva noturna e espalhando vida: as mãos dos

sobreviventes se enlaçam,/os corpos hirtos adquirem fluidez,/uma inocência, um

perdão simples e macio .../Havemos de amanhecer . Nesse momento de promessa,

de voto, o eu junta-se ao nós, na luta, no apossar-se da nova vida.

Com modulações aspectuais diferentes da aurora, em Drummond, que lenta

e continuamente vai desprendendo o dia da noite, no texto de Chico Buarque a

manhã rompe abruptamente a longa noite ( o sono dos séculos ). E, com ela, o

acordar, uma chuva de perdão, o sorriso, a paixão. A intensidade incide sobre a

16.Termo complexo, que estabelece uma continuidade possível entre

S I

Idia  x s2 noite  

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434

M U S S A L lM • S E N T E S

cena do despertar, marcada pela aceleração, pelo excesso, por uma revolução,

por uma convulsão, que põe a girar a rosa dos ventos, enfurece os lagos, adoça

o mar, provoca uma enchente amazônica, uma explosão atlântica.

O despertar, o l ibertar da multidão é uma doação, vem de outro sujei to. A

enchente, a explosão, a rapidez das ações tomam a multidão de surpresa, que

assiste atônita e em pânico à sua própria mudança.

Duas histórias de transformação, de libertação de um povo. Em um texto,

o caminho para a transformação é árduo, mas o sangue que escorre é doce . O

valor eufórico está no tempo desacelerado, no tempo do que não é ainda , mas

será em breve ( teus dedos frios ainda senão modelaram/mas que avançam ... ),

nele o sujeito já antevê o futuro. É um sujeito afetado pela espera (tensa, eufórica,

durativa), estremecido pela chegada iminente do objeto esperado. Em

Rosa dos

ventos,

ao contrário, o valor eufórico está na explosão (pontualidade, intensidade)

que marca o encontro do sujeito e seu objeto, no tempo extremamente acelerado

do que já é . Nesse tempo, é também outro o estado passional do sujeito. Ele

vive uma ruptura com o tempo; é afetado pela surpresa, pela admiração, pelo

susto diante da nova cena.

É

o novo mundo que se ergue diante dele e o toma

de admiração.

Em ambos os textos, sobre as figuras incidem uma intensidade e uma foria;

elas apresentam-se, assim, afetadas por um sujeito apaixonado, que as percebe e

sente; apresentam-se com um matiz emocional, disfórico e eufórico, que se rela-

cionam a movimentos de repulsão (fuga, conformismo, morte) e atração (espera,

espanto, vida), medidos, regulados pelo tempo: pela pontualidade/duratividade,

pela aceleração/desaceleração.

Os textos, tomados como um todo, também revelam o enunciador/enuncia-

tário diante de seu mundo. No poema de Drummond, a fala é de esperança, de

utopia, de antecipação, modalizada pelo querer e pelo crer. Na canção de Chico

Buarque, com os verbos no passado, a antecipação desejada apresenta-se como

já realizada; o que, fora do universo da arte, chamamos, às vezes, ideologia.

Ainda que desde as primeiras configurações da semiótica, destaquem-se

suas bases linguísticas, também se evidencia a especificidade de seus domínios

e proposições em relação a elas. A contribuição da semiótica reside no fato de

que possibili ta a descrição não apenas do sentido mais evidente, mais superfi-

cial, mas da organização do sentido - em termos hjelmslevianos, da forma do

conteúdo - manifestado por meio de diferentes linguagens, diferentes textos.

Constitui, assim, um importante referencial de análise, que, num primeiro mo-

mento, teve sua consolidação fundada num arcabouço estrutural, mas que levou

em consideração, desde logo, a questão da enunciação e vem incorporando,

IN TR O D U Ç Ã O À L lN G u íS T IC A

435

pouco a pouco, novas problemáticas, relacionadas com seu nível fundamental,

narrativo e discursivo, tais como a modalização, a sensibilização, as paixões, a

aspectualização, a tensividade. A semiótica atual insere-se também, como vimos,

.num domínio de reflexão ainda problemático, em que busca relacionar a forma

do conteúdo à substância do conteúdo.

Desse modo, a semiótica, que em suas primeiras fases se caracteriza episte-

mologicamente por meio do princípio da descontinuidade, quer seja considerada

sua formalização por meio de categorias, quer seja examinada a delimitação do

objeto, que propõe, desenvolve-se teoricamente para apreender - e formalizar

- a continuidade entre elementos discretos, entre diferenças semânticas estabi-

lizadas, entre sujeito e objeto, homem e mundo. A consideração da continuidade,

no entanto, não rejeita a diferença, não descarta o recorte , que é condição para

inteligibilidade, antes o dinamiza, o temporaliza, o modaliza, o  sensibiliza .

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