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CULTURA E POLÍTICA NA ELEIÇÃO DE 2002:
AS ESTRATÉGIAS DE LULA PRESIDENTE
Antonio Albino Canelas Rubim *
ResumoRefletir sobre as estratégias esboçadas na campanha Lula Presidente, quase no calor dahora, é o objetivo do trabalho apresentado. Após destacar a importância que a mídiaadquiriu nas eleições brasileiras pós-ditadura e de assinalar o caráter singular davisibilidade das eleições presidenciais de 2002, inclusive anotando suas peculiaridades,busca-se analisar o episódio eleitoral através dos dois momentos / movimentoscaracterísticos, simultâneos e distintos, da competição política e eleitoral em uma situaçãode Idade Mídia: a disputa pela interpretação da realidade e a disputa em torno das imagenspúblicas dos atores político-eleitorais. Ênfase analítica é dada à disputa das imagenspúblicas dos candidatos Lula e Serra nas eleições de 2002. As figuras emblemáticas do“Lulinha paz e amor” e do “Lula negociador” são tratadas como operadores políticossignificativos e plenamente inscritos na estratégia de disputa eleitoral em 2002.
Ao responder uma pergunta sobre as condições que levaram o Partido dos
Trabalhadores à vitória no pleito presidencial de 2002, Luiz Dulci, ex-secretário-geral do
PT e atual secretário-geral da Presidência da República, enumerou um conjunto bastante
amplo e diverso de fatores. A resposta de Dulci foi textualmente a seguinte:
“Foram muitos, com certeza, os fatores que contribuíram para a vitória,
tanto gerais como específicos. A crise do modelo neoliberal, as fraturas no
bloco dominante, a pertinência de nossa alternativa programática, nossas
alianças sociais e partidárias, a escolha do candidato a vice-presidente, a
sintonia fina de Lula com o sentimento popular, a admirável unidade do PT, a
lucidez e o entusiasmo da base, a agilidade tática da coordenação, a
competência dos programas de rádio e TV, entre tantos outros” 1.
1 DULCI, Luiz. Mudança desde o início (entrevista à Ricardo de Azevedo). Teoria e Debate. São Paulo,(52):4, dezembro de 2002 – janeiro / fevereiro de 2003.
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A complexidade da resposta de Luiz Dulci guarda intima relação com o próprio
caráter complexo e singular de qualquer decisão eleitoral que, em seu desenrolar, aciona
necessariamente inúmeros componentes vitais para a escolha do voto.
Dentre os tantos outros fatores explicativos da vitória de Lula para presidente deve ser
lembrado também, em um viés atento ao campo da comunicação e política, o
comportamento da mídia. Aliás, Duda Mendonça em palestra realizada em janeiro de 2002,
em Porto Alegre, em seminário promovido pela PUC-RS que antecedeu o Fórum Social
Mundial enfatizou, diversas vezes, que sua principal preocupação na disputa eleitoral do
ano passado seria o comportamento da mídia. A atenção reivindicada por Duda relativa à
atuação da mídia como ator importante na disputa eleitoral não era de modo algum
desmotivada. A história recente da intervenção da mídia nos pleitos presidenciais, em
especial no Brasil, deixou marcas profundas em nosso imaginário social e demonstrou
como a mídia tem desempenhado um significativo papel político e eleitoral, em especial, no
período pós-ditadura, quando o país já se encontra estruturado em rede e ambientado pela
comunicação midiática, vivendo uma situação de Idade Mídia2.
As atuações da mídia têm sido marcantes. Todos lembram da, já emblemática,
intervenção explícita da Rede Globo em favor do candidato Collor de Melo e das suas
acintosas manipulações na eleição de 1989 3. É fácil recordar também do alinhamento da
quase totalidade da mídia brasileira no pleito de 1994, ao assumir e fazer a propaganda,
gratuita e paga, do Plano Real, passaporte de Fernando Henrique Cardoso para sua vitória
presidencial. E o silenciamento deliberado da eleição de 1998, quando FHC ganhou sua
reeleição em uma disputa que quase não existiu, inclusive na mídia 4, deixando exposta
2 Para uma conceituação mais aprofundada da noção de Idade Mídia ver: RUBIM, Antonio Albino Canelas.La contemporaneidad como edad-media. In: LOPES, Maria Immacolata e NAVARRO, Raul (orgs.)Comunicación. Campo y objeto de estúdio. México, ITESO, 2001, p.169-181.3 Ver, por exemplo: RUBIM, Antonio Albino Canelas. Mídia e política no Brasil. João Pessoa, Editora daUFPB, 1999; LIMA, Venício Artur de. Mídia, teoria e política. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo,2001 e MACHADO, Maria Berenice da. Costa. O duelo final: Collor x Lula. Porto Alegre, UFRGS, 1991(monografia de conclusão de graduação).4 COLLING, Leandro. Agendamento, enquadramento e silêncio nas eleições presidenciais de 1998. Salvador,Faculdade de Comunicação da UFBA, 2000 (dissertação de mestrado) e MIGUEL, Luiz Felipe. Política emídia no Brasil. Episódios da história recente. Brasília, Editora Plano, 2002. Ver também diversos textossobre o tema, inclusive alguns depoimentos, em RUBIM, Antonio Albino Canelas (org.) Mídia e eleições de98. João Pessoa, Editora da UFPB, 2000. No pleito municipal de 2000, também constatamos um processo de
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uma convergência de interesses entre o governo e as empresas de comunicação midiática.
Tais estratégias político-midiáticas distintas guardam uma consonância ativa com os
diferentes cenários eleitorais vivenciados no país, mas sempre operaram, de modo explícito
ou sutil, contra a candidatura de Lula.
SOB O SIGNO DA VISIBILIDADE
Em 2002, as eleições no Brasil, em flagrante contraste com as de 1998, foram vividas
sob o signo da visibilidade. Ela emergiu como uma de suas características diferenciais mais
expressivas, sendo inclusive aceita pela maioria, senão a totalidade, dos analistas do
episódio eleitoral. A relevância do lugar atribuído à visibilidade impõe que ela seja tomada
como enigma a ser decifrado se existe alguma pretensão de análise acerca das relações
entre mídia, cultura e eleições de 2002 no Brasil. Mas essa visibilidade, avaliada de modo
distinto, por vezes, nos estudos já realizados, não foi acompanhada por uma intervenção
explícita, nem escancarada da mídia em prol de uma candidatura específica. Em 2002, a
mídia certamente foi bem mais sutil em sua intervenção. Os diversos trabalhos já
publicizados apontam em comum para uma superexposição das eleições e,
simultaneamente, para um não privilegiamento aberto de um candidato, para uma busca de
certa eqüidistância na relação com as candidaturas colocadas, em especial com os quatro
candidatos que, em verdade, disputavam com alguma chance a presidência da República 5.
A intensa visibilidade não significa, sem mais, nem uma informação de melhor
qualidade, nem um horizonte largo de interpretações, nem sequer neutralidade. Luiz Felipe
Miguel, por exemplo, acredita que a maior cobertura, em especial, no caso da Rede Globo,
silenciamento eleitoral, mas provavelmente circunscrito. Ver: RUBIM, Antonio Albino Canelas (org.) Mídiae eleições 2000 em Salvador. Salvador, Edições Feito à Facom, 2002.5 Consultar: RUBIM, Antonio Albino Canelas. Das visibilidades das eleições de 2002: uma reflexão dosenlaces entre política, mídia e cultura. In: Comunicação & Política. Rio de Janeiro, IX (3): 189-207,setembro/dezembro de 2002 e os trabalhos apresentados no III Encontro (Inter)Nacional de Estudos deComunicação e Política realizado de 11 a 13 de dezembro de 2002 em Salvador na Faculdade deComunicação da Universidade Federal da Bahia: ALDÉ, Alessandra. As eleições presidenciais de 2002 nosjornais; MIGUEL, Luis Felipe. A descoberta da política. A campanha de 2002 na Rede Globo; PORTO,Mauro. Televisão e eleições presidenciais 2002: notas sobre as relações entre horário eleitoral e cobertura doJornal Nacional no primeiro turno e VASCONCELOS, Rodrigo Figueiredo de. Mídia, Política e Eleições: ACobertura das Eleições Presidenciais de 2002 pelo Jornal Nacional.
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e a proclamada “imparcialidade”, através do tratamento mais equânime dos candidatos,
serviram para fixar fortemente as fronteiras do “politicamente aceitável”, do
comportamento “responsável” e “confiável”, fechando as fronteiras do campo político,
conforme uma interpretação inspirada em Pierre Bourdieu 6.
Luis Felipe assinala que “ Nas eleições de 2002, o principal instrumento de
fechamento do campo discursivo – e ‘enquadramento’ dos candidatos num figurino estrito
– foi o agravamento da crise econômica” (p.13). Assim, através principalmente da
recorrência à crise econômica em curso, o autor detecta duas estratégias principais de
fechamento do campo discursivo e enquadramento dos candidatos na cobertura eleitoral. A
primeira e mais evidente delas consistia na exigência que os candidatos assumissem
determinados compromissos. Tal estratégia está descrita por Luis Felipe Miguel nas
seguintes palavras:
“Nas entrevistas e nos debates, o âncora do Jornal Nacional, William
Bonner, cobrava de todos (mas em especial dos três oposicionistas) a
‘manutenção dos contratos’, o pagamento das dívidas externa e interna e o
compromisso com o ajuste fiscal. Da forma como o diálogo era posto (e uma
vez que nenhum candidato se dispunha a contestá-lo), parecia que Bonner
exigia algo tão evidente quanto à honestidade no trato com o dinheiro público –
isto é, algo que não permitisse discordâncias no campo da política, algo que
marcasse o desviante como portador de um déficit moral”. (p.14)
A segunda estratégia dizia respeito ao agendamento e ao enquadramento dos temas e
ao silenciamento de certas questões, como, por exemplo, a negociação com os Estados
Unidos para a formação da Área de Livre-Comércio das Américas (ALCA), considerada
crucial para o país não só por sua elite, como também por setores da oposição que naquele
instante realizavam um plebiscito nacional sobre o tema. Apesar disso, a ALCA pouco
esteve nos noticiários e quando apareceu era completamente dissociada das eleições. Em
6 BOURDIEU, Pierre. A representação política. Elementos para uma teoria do campo político. In: ___. Opoder simbólico. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, s.d., p. 172.
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contraste com esse silêncio, Luis Felipe cita, em sua análise da Rede Globo, não só uma
ampliação do tempo do noticiário dedicado à economia brasileira – de 6,9% do tempo do
Jornal Nacional em 1998 para 9,4 % em 2002 – como também, e principalmente, uma
atitude quase obcecada com as “sensibilidades” e os “humores” do mercado, com o sobe-e-
desce da bolsa e do câmbio, com o “risco-Brasil”, sempre estreitamente vinculados à
temática eleitoral.
Assim, conforme a análise de Luis Felipe, a intensa visibilidade das eleições, apesar
de não ter privilegiado um determinado candidato como em outros momentos, agiu
tentando restringir o espaço do dizível no campo do debate político possível, além de
buscar extrair dos candidatos compromissos cada vez mais abrangentes com a continuidade
da política econômica neoliberal vigente. Em suma, a mídia, através de sua atuação, buscou
delimitar a agenda pública possível de debate político, estigmatizando qualquer posição de
questionamento mais radical de aspectos do modelo econômico, tomados desse modo como
acima do embate eleitoral, além de buscar comprometer os candidatos com temas que
considerava inquestionáveis nessa agenda.
Mauro Porto em seu trabalho também observou a intensa visibilidade e o destaque
assumido pela agenda econômica nas eleições. Para este autor, inspirado nas teses do
enquadramento, a mídia atuou adotando um único enquadramento interpretativo restrito no
tratamento do tema da economia no Jornal Nacional, impedindo a pluralidade interpretativa
acerca da temática. Em quase 75% das matérias analisadas foi detectada a opção por um
enquadramento interpretativo restrito (p.7). Mas, diferente de Luis Felipe, Mauro Porto
associa tal enquadramento a uma atitude que privilegia uma das candidaturas postas:
“A partir destes dados preliminares podemos concluir que economia foi o
principal tema das controvérsias apresentadas pelo Jornal Nacional e que os
enquadramentos do governo e seu candidato tiveram uma posição privilegiada
no desenvolvimento destas controvérsias, em que pese a presença importante
dos candidatos de oposição.” (p.9)
6
Independente da polêmica acerca do privilegiamento ou não de candidaturas, os dois
trabalhos convergem no sentido de apontar os limites - qualitativos e não quantitativos - da
visibilidade operada pela mídia, em especial pela Rede Globo que prometeu realizar em
2002 sua maior cobertura eleitoral. Também o recurso a determinados expedientes de
cobertura como destacar a “má política” - ou seja, os aspectos criticáveis da política, como
corrupção, beneficiamentos etc. e buscar associá-los aos candidatos e seus aliados -
contaminou essa visibilidade e a cobertura de alguns veículos de comunicação, com a Folha
de São Paulo.
De qualquer modo, pode-se concluir que a intensa visibilidade eleitoral se conformou
a partir de limites pronunciados da agenda pública selecionada pela mídia. O debate acerca
das possíveis interpretações da realidade, um dos movimentos significativos do embate
político, encontrou assim fronteiras bastante rígidas na mídia, apesar de todo a visibilidade
das eleições presidenciais de 2002.
DISPUTANDO A INTERPRETAÇÃO DA REALIDADE
A delimitação da agenda pública de discussão sobre a interpretação da realidade só
não foi ainda mais empobrecida, devido a singular possibilidade comunicativa existente no
momento eleitoral brasileiro representada pelo horário gratuito de propaganda eleitoral. Um
exemplo ilustrativo do descompasso possível entre a agenda pública construída pela mídia e
a agenda pública produzida pelo horário gratuito aparece no texto de Mauro Porto.
Enquanto o tema do emprego e do salário foi enfaticamente tratado no horário eleitoral por
praticamente todos os candidatos, servindo de mote central inclusive para algumas
candidaturas, como a de José Serra, ele solenemente foi desconhecido pelo Jornal Nacional,
pois a temática foi tratada em apenas 1% das 602 matérias do telejornal dedicadas ao pleito
presidencial (p.17).
Assim, o horário eleitoral na televisão e no rádio pode ser acionado, com base nas
estratégias de campanha dos candidatos, para tentar reinstalar determinados temas na
agenda pública da eleição, garantindo a possibilidade de disputa em torno da interpretação
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da realidade. A capacidade da reinserção do tema na agenda pública depende de um
conjunto de fatores, dentre eles a competência comunicativa do horário eleitoral e o próprio
lugar ocupado pelo assunto em cena na conjuntura eleitoral. Assim, uma interação, desigual
mais combinada, entre a agenda da sociedade - detectada através de sondagens de opinião e
expressa em atos e falas de atores sociais - a agenda da mídia e a agenda elaborada pelo
horário eleitoral conformam, pela via da complementação e do confronto, uma agenda
pública de temas inscrita no cenário eleitoral, que terá importante papel na disputa pela
interpretação da realidade, um dos movimentos vitais da luta política e eleitoral.
Mauro Porto em seu texto, depois de analisar os programas do horário eleitoral dos
quatro principais candidatos, concluiu que cada um deles utilizou uma estratégia de
campanha específica. De acordo com o autor: “ O candidato Lula priorizou a análise da
conjuntura; Serra, a apresentação do seu plano de governo; Ciro deu maior prioridade à
propaganda negativa; e, finalmente, Garotinho à apresentação de suas realizações
passadas” (p.17).
Fixando o olhar analítico em Lula, como base em dados da pesquisa de Mauro Porto,
pode-se detalhar a estratégia político-comunicacional adotada pelo PT. Lula dedicou 28,2%
do tempo total ao tratamento da análise da conjuntura. O apelo prioritário de sua campanha
na TV foi o diagnóstico dos problemas do país, sendo o programa que mais dedicou tempo
a essa temática. A atenção às políticas futuras a serem desenvolvidas ficou em segundo
lugar com 18,4% do tempo. Desse modo, Lula associou a avaliação da situação brasileira à
apresentação de soluções para os problemas e de propostas de seu governo. Cabe destacar o
tom light da campanha do PT. Nesse caso, dois números trazidos por Mauro Porto são
expressivos: Lula foi o candidato que mais dedicou tempo às músicas e jingles (10,6%) e o
que menos utilizou o recurso da propaganda negativa (2,5%).
Dentre os temas tratados por Lula em suas análises de conjuntura, podem ser
anotados: a situação da economia nacional, com quase metade do tempo; os problemas
sociais e a violência e a segurança pública, que ocupou um espaço bem menor. Com
relação as suas políticas futuras, a campanha Lula Presidente enfatizou as questões sociais,
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em especial a saúde e a educação; as propostas de política econômica – maior tempo dentre
os candidatos analisados por Mauro Porto – e a temática do emprego e do salário. Assim,
Lula deu destaque ao tema da economia no seu principal apelo, a análise de conjuntura,
além de ter sido o candidato que mais discutiu a política econômica e que dialogou de
modo mais explicito com as controvérsias apresentadas pelo Jornal Nacional.
A competência dos programas do horário eleitoral, anotada por Luiz Dulci, não pode
se circunscrever ao momento de embate acerca da interpretação da realidade, pois tal
disputa se realizou em meio a alguns obstáculos significativos. Como já se observou, a
mídia, por exemplo, impôs um fechamento do horizonte discursivo da agenda em debate e
também privilegiou um enquadramento restrito dos temas veiculados. Com isso, a cena de
disputa da interpretação da realidade se viu restringida.
Mas a fragilidade da disputa em torno da interpretação da realidade não decorre só da
visibilidade particular trabalhada pela mídia. Em uma eleição marcada pelo agendamento
de temas sociais, em especial desemprego/emprego e segurança, todos os candidatos
convergiram para uma plataforma bastante próxima de proposições sociais, apenas
acrescidas com sutis distinções. Deste modo, as contraposições entre as interpretações
diferenciadas que avaliavam a realidade brasileira e o governo FHC e as divergências entre
as formulações alternativas ao modelo político vigente ficaram em um patamar aproximado
e tornaram-se, muitas vezes, bastante genéricas.
O fechamento de proposições imposta pela mídia, a “convergência” dos discursos dos
candidatos e os compromissos assumidos, em especial em relação à colaboração com o
FMI, sem dúvida, tornaram restrito em muito o leque de disputa pela interpretação da
realidade na eleição de 2002, com a fragilidade de tal dimensão da competição eleitoral.
Aliás, os compromissos assumidos por Lula - em documentos como A Carta ao Povo
Brasileiro e o Compromisso com Soberania, Emprego e Segurança do Povo Brasileiro -
tiveram um papel importante no resultado da eleição de 2002, pois garantiam a todos uma
mudança sem grandes rupturas. O empresário Benjamin Steinbruch chegou até a escrever:
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“ A atitude e os compromissos publicamente assumidos por Lula naquela hora de tensão
provavelmente lhe garantiram a eleição” 7.
A rigor, uma análise que busque uma compreensão vigorosa e ampla da vitória de
Lula não se pode desconsiderar este e muitos outros aspectos envolvidos na competição
eleitoral. Um deles diz respeito aos movimentos da disputa. Como já se observou em texto
anteriormente publicado8, o embate político e eleitoral em uma sociedade instalada em
situação de Idade Mídia se efetua em dois movimentos, desiguais e combinados, para usar a
expressão de Trostky, que obedecendo hoje a dinâmicas diferenciadas, mantêm uma
profunda articulação.
Tais movimentos, que acontecem de modo simultâneo e imbricado, podem ser
nomeados como: disputa pela interpretação da realidade que irá predominar no processo
eleitoral e disputa envolvendo a existência e a caracterização públicas dos atores políticos
em competição. Em um movimento a disputa trava-se em torno da interpretação e da
avaliação da realidade que irá prevalecer no final do embate eleitoral, possibilitando, em
condições de normalidade, a vitória daquele que formulou tal interpretação. No outro
movimento a disputa se dá pela afirmação ou negação da existência social dos atores
sociais em competição e pela caracterização, positiva ou negativa, destes atores. A disputa
pela afirmação da existência social e da caracterização pública torna-se também decisiva
para o desenvolvimento da capacidade de vitória das candidaturas concorrentes.
Por conseguinte, um estudo eleitoral para ser coerente com tal formulação deve não
só analisar a disputa em torno das interpretações da realidade, consubstanciadas muitas
vezes nas formulações das propostas programáticas diferenciadas e nos discursos das
candidaturas, mas também dedicar sua atenção à luta, que acontece a cada instante, pela
construção e desconstrução das figuras políticas, individuais e coletivas, que participam da
competição eleitoral. A disputa pela construção e desconstrução acontece inclusive e
7 STEINBRICH, Benjamin. Mãos à obra, presidente. In: Folha de São Paulo, 31 de dezembro de 2002, p.B2.8 Sobre os dois movimentos ver com mais detalhes: RUBIM, Antonio Albino Canelas. Das visibilidades daseleições de 2002: uma reflexão dos enlaces entre política, mídia e cultura. In: Comunicação & Política. Riode Janeiro, IX (3): 189-207, setembro/dezembro de 2002.
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principalmente através do embate comunicativo, inerente a este momento singular da
política. Em suma, uma análise abrangente das eleições em uma situação de Idade Mídia
deve necessariamente abranger, de modo articulado, esses dois movimentos, ao mesmo
tempo distintos, indissociáveis e, por vezes, profundamente entremeados.
DISPUTANDO AS IMAGENS PÚBLICAS
Antes de avançar na análise deste tipo de competição no pleito eleitoral de 2002, cabe
assinalar a complexidade e exigências da disputa de imagens públicas. Em primeiro lugar,
deve-se anotar que a imagem pública emerge como um passaporte que possibilita a
existência visível do ator político na contemporaneidade. Sem habitar o espaço eletrônico
em rede, que ambienta a sociabilidade atual, fica impossível posicionar bem um ator na
cena política contemporânea. Em segundo lugar, cabe assinalar que a construção da
imagem pública na política sempre acontece em um campo de forças, no qual o
protagonista, seus aliados e seus adversários disputam a cada instante a construção e a
desconstrução das imagens públicas dos entes envolvidos no jogo político. Nas eleições,
um momento político singular, tal competição se potencializa e se acelera. Em terceiro
lugar, torna-se necessário afirmar que a construção de uma imagem pública não pode ser
pensada como ato arbitrário, porque descolado de seu tempo e espaço.
A construção aciona diversas dimensões espaciais e temporais. Do passado, a imagem
acolhe a história compartilhada, a tradição sedimentada e os estoques simbólicos que
conformam a personalidade do ente político. O passado comum não elimina interpretações
diferenciadas do personagem, mas fixa alguns limites significativos. Ainda que os ângulos
escolhidos e enfatizados possam ser diferenciados, possibilitando algumas nuances
importantes na construção das imagens públicas, existe um horizonte para a reinvenção das
imagens públicas políticas. Do presente, a imagem reivindica um encaixe adequado no
cenário político atualizado, recolhendo e reconhecendo suas demandas e seus
constrangimentos. O posicionamento satisfatório do ator político no contexto da atualidade,
colocando-se em posição privilegiada para a disputa eleitoral, exige uma imagem pública
que interaja substantivamente e se inscreva nos horizontes que tecem tal contexto. Do
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futuro, a imagem deve captar qualidades que deixem antever a possibilidade de construir
novas perspectivas.
Assim, a construção da imagem política é sempre disputa pública – em especial em
um momento político singular e intenso como a eleição – que se realiza considerando
demandas e constrangimentos do tempo (passado, presente e futuro) e do espaço geográfico
e/ou eletrônico. A imagem pública aparece como dado fundamental para o ator político
existir socialmente na contemporaneidade e para adquirir possibilidade efetiva de competir,
porque bem posicionado na cena da competição política.
Esboçadas tais premissas, torna-se possível analisar as estratégias da campanha Lula
Presidente com relação à disputa de imagens públicas, que juntamente com a disputa por
interpretações da realidade, já trabalhada, forjam a eleição presidencial de 2002 no Brasil.
Um dos instantes mais emblemáticos dessa disputa, ainda que não esteja vinculada de
modo direto à campanha de Lula, certamente aconteceu com a vertiginosa ascensão nas
sondagens de opinião de Roseana Sarney alimentada pelos programas e especialmente
pelos spots produzidos por Nizan Guanaes9. O intenso debate que aconteceu então sobre a
ausência de proposições políticas nas aparições da (pré)candidata parece elucidativo da
dificuldade de parcelas do campo político e mesmo da esfera midiática de perceber a
possibilidade de distinção, de autonomização e de tratamento operacional apenas do
movimento de disputa da imagem pública. A estratégia de Guanaes de construir uma
apresentação pública, uma imagem social e uma visibilidade nacionais da (pré)candidata
não imediatamente sedimentada em sua atuação e proposições políticas, portanto na sua
modalidade de interpretação da realidade, reforça e exemplifica a hipótese, defendida neste
e em outro texto, da distinção analítica dos dois tempos da luta política midiatizada.
9 Sobre o fenômeno Roseana Sarney ver: OLTRAMARI, Alexandre; LIMA, Maurício e GASPAR, Malu. Adama da sucessão. In: Veja. São Paulo, 14 de novembro de 2001, p.36-42; PINHEIRO, Daniela. A novacampeã de audiência. In: Veja. São Paulo, 14 de novembro de 2002, p.44-46 e principalmente CARVALHO,Rejane. Roseana: como se faz e desfaz um ‘fenômeno eleitoral’. Trabalho apresentado no XXVI EncontroAnual da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais. Caxambu, 22 a 26 deoutubro de 2002.
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Não só a construção da (pré)candidata instalou-se apenas no movimento de
construção de imagem pública, como também sua demolição aconteceu fundamentalmente
inscrita nesse ato. Não foram as suas interpretações da realidade ou as dos seus adversários
que detonaram sua (pré)candidatura, mas o acionamento de segmentos do Estado, por
adversários seus, para atingir sua imagem pública, alvejada especialmente através de uma
imagem visual contundente que registrava um possível envolvimento seu com desvio de
recursos públicos. A desqualificação se processou recorrendo-se uma vez mais aos aspectos
podres, negativos da política.
Retornando à campanha de Lula, fica fácil reconhecer que, simultânea a sua estratégia
para a disputa da interpretação da realidade, esboçada acima, aflorava a exigência de um
outro enfrentamento eleitoral a ser efetuado. Para Lula uma das questões essenciais para
tornar a quarta eleição competitiva e construir uma possibilidade efetiva de chegar à
presidência do Brasil colocava-se cristalinamente no âmbito da disputa de imagem. A
dialéctica entre esperança e medo, na já compacta formulação de Duda Mendonça, está no
cerne do problema. Imprescindível (re)construir a imagem pública de Lula de tal modo que
ela ajudasse a superar o medo, inclusive de votar e correr um risco com Lula, e
possibilitasse a vitória da esperança.
Lula deveria personificar a esperança da mudança – uma das demandas populares
detectadas nas sondagens e um dos emblemas mais potentes da eleição 2002 – o que não
parecia improvável por ele e pelo PT, mas simultaneamente – e isto era essencial – ele
deveria transmitir uma garantia que a mudança aconteceria e ocorreria sem sobressaltos,
deslocando a apreensão e superando o medo.
Uma das faces do dilema respondia pela denominação competência, ou melhor, pela
atribuição e reconhecimento públicos da competência de Lula governar o país, realizar a
mudança, trilhar um itinerário novo, mas seguro. O esforço da campanha para demonstrar
que o candidato Lula detinha um programa de governo qualificado e uma equipe
competente para poder gerir o país está presente já na formatação produzida para a
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apresentação inicial de seu programa no horário eleitoral gratuito: especialistas de diversas
áreas trabalham com Lula na construção de um projeto para o Brasil.
O desafio de demonstrar capacidade para governar o país implicou no enfrentamento
estratégico de, pelo menos, dois atributos, problemáticos em termos eleitorais, ambos
associados à anterior imagem pública de Lula: a sua radicalidade e seu despreparo para
governar, sendo este último aspecto sobredeterminado pelo preconceito social com relação
à falta extração social do candidato e a ausência do diploma universitário de Lula.
Um destes enfrentamentos foi fartamente anotado no período eleitoral. A formula
“Lulinha paz e amor”, que ganhou elogios até de FHC após a eleição 10, expressou com
precisão e sintetizou este empreendimento. A construção dessa imagem não foi um mero
produto de marketing. O próprio Duda Mendonça, em entrevista, reconheceu: “ Na verdade,
o Lula mudou porque o PT mudou” 11. A conversão da política do Partido dos
Trabalhadores e da imagem de Lula foi, em verdade, um processo longamente vivenciado,
formulado e construído, em termos políticos e de mídia, nos últimos anos pelas
experiências políticas e administrativas do partido e pela liderança do grupo hegemônico no
PT. Não foi algo meramente eleitoral ou mesmo alguma invenção genial de marketing de
Duda Mendonça. A política petista governou claramente esta reconversão eleitoral
midiática.
O empreendimento de mudança de Lula e do PT, além de estar alicerçado em um
longo processo político, também significou um maior investimento do partido no campo da
comunicação. Uma das exigências de Lula para ser novamente candidato foi contar com
uma estrutura de comunicação mais profissionalizada. O desempenho desta equipe
certamente está presente em um uso mais estratégico dos horários partidários não eleitorais,
em campanhas publicitárias como “No fundo, no fundo você é um pouco PT” e na
(re)significação das anteriores derrotas de Lula agora olhadas como signo de persistência e
não mais como perdas inevitáveis.
10 MELO, Murilo Fiúza de. FHC elogia ‘Lulinha paz e amor’. In: Folha de São Paulo, 20 de dezembro de2002, p.A14.11 MENDONÇA, Duda (entrevista). In: Soterópolis, dezembro de 2002 / janeiro de 2003, p.7.
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A fórmula - “Lulinha paz e amor” -, em verdade, traduz o enfrentamento e a
superação de duas dimensões da imagem - aproximadas, mas distintas - de um Lula radical.
De um lado, a radicalidade de Lula derivava de uma postura agressiva, crítica, negativa,
destrutiva, intransigente, oposicionista etc. É este Lula radical que aparece no seguinte
trecho do artigo do empresário Benjamin Steinbruch: “ Depois de eleito, Lula cativou e
tranqüilizou o país. Mostrou carisma, maturidade, moderação, paciência, tolerância e
humildade. Para a sorte dos brasileiros, é esse o Lula, e não o radical do passado, que
receberá amanhã a faixa presidencial” 12. De outro lado, a radicalidade de Lula provinha
das suas propostas políticas, inscritas na trajetória e no programa do PT, de enfrentamento
social, de luta de classes, de rupturas societárias e de mudanças bruscas.
A construção da imagem “Lulinha paz e amor” – substituindo a imagem do Lula
radical – foi produzida por um conjunto complexo de expedientes que conjugavam desde a
progressiva moderação do discurso político de Lula e do PT, a aceitação de atitudes
tomadas e de compromissos assumidos pelo governo FHC até o quase abandono da
propaganda negativa e dos ataques aos candidatos adversários e o uso intensivo de jingles e
músicas, como estratégia configurada para o horário eleitoral.
Tal reformatação da política petista e da imagem pública de Lula, realizada por meio
de procedimentos combinados e simultâneos, adquiriu uma tal relevância e visibilidade que
a formula “Lulinha paz e amor”, ao se tornar uma das marcas registradas da eleição de
2002, obscureceu um outro deslocamento fundamental também estrategicamente elaborado
e efetivado na imagem pública de Lula: a construção da imagem pública do Lula
negociador. Tal dimensão tem sido subestimada nas análises efetuadas acerca das eleições
de 2002. Cabe anotar sua relevância, sua precisão e sua oportunidade para o
posicionamento satisfatório da candidatura petista no embate eleitoral, realizado em meio a
uma crise econômica e social anunciada.
12 STEINBRUCH, Benjamin. Ob.cit.
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A construção da imagem de Lula negociador, do mesmo modo que a anterior, não
pode ser considerada apenas um mero expediente de marketing no horário eleitoral. O
trabalho de Alessandra Aldé, por exemplo, indica que a cobertura da imprensa, mesmo
antes do horário eleitoral, já realçava em Lula dimensões de articulador e de estadista
competente 13. Fácil perceber a proximidade de tais dimensões com a figura de um Lula
negociador. Caberia então trabalhar, desenvolver, aprimorar e consolidar tal imagem.
A construção da imagem pública do Lula negociador foi enfaticamente perseguida na
estratégia midiático-eleitoral, desenvolvida pelo PT e por Duda Mendonça. A potência da
imagem produzida não decorre principalmente desta persistência, mas das essenciais e
pertinentes conexões passadas e presentes em tal construção.
Primeiro, obrigatório ressaltar o caráter não arbitrário da (re)construção da imagem
em relação à Lula e sua trajetória política. Se foi possível atribuir uma dimensão de
intransigência a esse itinerário, com engenhosidade certamente seria possível, de modo
também pertinente através da utilização de um outro olhar privilegiado, destacar a
dimensão de negociador sempre presente na história de uma liderança, que oriunda do meio
sindical, teve que exaustivamente negociar com os patrões e com o governo. Aliás, o
próprio Lula não cansa de repetir em muitos espaços geográficos e midiáticos “que o que
mais fez na vida foi negociar” 14.
Tal construção foi então realizada com admirável competência e instalou a imagem
pública de Lula negociador na disputa de imagens que marcou a competição eleitoral.
Sintomático que a Folha de São Paulo na sua edição de 01 de janeiro de 2002, sob o
indicador jornalístico Perfil/Lula, tenha publicado a reportagem “ABC do negociador”, com
um subtítulo emblemático: “ Como líder sindical em São Bernardo do Campo (SP), Lula já
exibia o perfil conciliador que ensaia levar ao Planalto” 15. A potência e a impregnação
desta imagem podem ser também observadas na entrevista de Luiz Felipe de Alencastro,
13 ALDÉ, Alessandra. Ob. Cit. p.19.14 Por exemplo, ver: LULA propõe fundo contra a fome no mundo. In: A Tarde, 27 de janeiro de 2002, p.15.15 ANTENORE, Armando. ABC do negociador. Folha de São Paulo, 01 de janeiro de 2002, p.A11.
16
quando ele afirma: “ O Lula é o conciliador das camadas sociais brasileiras. Isso é
percebido desse jeito, cada vez mais, dentro e fora do país” 16.
Ao tornar presente a imagem de Lula negociador, alicerçada em seu passado e
trajetória, a campanha petista posicionou politicamente a candidatura na cena eleitoral de
modo muito preciso e pertinente, considerada a conjuntura existente no país, dominada por
uma latente crise sócio-econômica. A crise potencial aparece como questão vital a ser
enfrentada e este enfrentamento - para ser efetuado de modo satisfatório - solicita
habilidades e capacidades bastante precisas, especialmente aquelas voltadas para a
construção coletiva de alternativas societárias e para a aglutinação das forças presentes no
cenário político e social. Neste contexto, a imagem do Lula negociador, não só serviu para
diminuir resistências, como aconteceu privilegiadamente com a imagem do “Lulinha paz e
amor”, mas politicamente posicionou o candidato em um lugar privilegiado na
circunstância de crise, dotando-o da possibilidade simbólica de liderar, via negociação, um
processo de reconstrução de alternativas para o país.
A pertinência e oportunidade da construção da imagem do Lula negociador fica
evidente por esta sua adequação aos desafios inscritos no momento presente. Mais que isto,
tal processo permite um interessante deslocamento que, sem dúvida, foi importante para a
vitória de Lula: o momento de crise requer para a sua superação uma competência política
– e não técnica – de conversar para aglutinar atores e interesses em torno de uma saída,
negociada e alternativa, que abra a possibilidade de desenvolvimento social e econômico
para o país. Este deslocamento das competências exigidas, não mais prioritariamente
administrativas e técnicas, mas agora essencialmente políticas guarda uma sintonia fina
com a imagem do Lula negociador e, por conseguinte, potencializa sua atuação eleitoral e
pós-eleitoral, inclusive17.
16 ALENCASTRO, Luiz Felipe (entrevista) “Viúvas da esquerda são risco para Lula”. In: Folha de SãoPaulo, 05 de janeiro de 2003, p.A-12.17 O depoimento Eleonora Mendes Caldeira, mulher do empresário Ivo Rosset, dono da Valisère, nessaperspectiva torna-se emblemático: “ As pessoas que tinham horror a esse personagem passaram a acreditarnele como mediador entre o Brasil que eles conhecem e o Brasil de que eles têm medo”. Na mesma matériajornalística, em que se encontra o depoimento, pode-se também ler: “ Sinal dos novos tempos: o antigoincendiário das greves metalúrgicas virou esperança de ‘diálogo’ entre ricos e pobres ”. “GOLDEN Lulaconquista ‘higt society”. In: Folha de São Paulo, 01 de dezembro de 2002, p.A-18.
17
Simultaneamente, este deslocamento agrava a situação da candidatura José Serra que,
além dos problemas de apoio político e de ordem pessoal, se defrontou com a dificuldade
de ser candidato do governo em meio a uma conjuntura que solicita mudanças18. A
estratégia político-midiática de ser governo e ser mudança, sintetizada no improvável
slogan “continuidade sem continuísmo”, intentada por Serra, bloqueou, sem dúvida, sua
performance eleitoral. Mas o deslocamento das capacidades e competências exigidas pelo
momento, como assinalado, também teve um efeito talvez mortal para a sua capacidade de
competição e, enfim, para as suas pretensões presidenciais. Sua campanha estava
essencialmente baseada no confronto de sua imagem de competência administrativa e
técnica – melhor ministro da saúde do mundo, como dizia sua propaganda – com o
despreparo administrativo e técnico presumido de Lula.
Com o deslocamento acontecido nas competências requisitadas, conforme a hipótese
aqui sustentada, Serra não só perdeu certo lastro relevante para a sua candidatura, como se
viu questionado como liderança capaz de enfrentar a crise, posto que sua trajetória eleitoral,
longe de trazer marcas de alguma capacidade política de aglutinação, como aconteceu com
a de Lula, foi exaustivamente anunciada como um árduo combate e um violento atropelo
dos seus adversários. Basta lembrar: Tasso na disputa no interior do PSDB, Roseana na
pré-campanha eleitoral e Ciro, principalmente, e Garotinho durante a disputa das eleições.
O “vampiro” Serra, imagem adquirida na campanha, que atingia a jugular de seus
adversários, certamente não poderia passar com facilidade a imagem de ser o mais
competente para realizar a aglutinação de atores e de interesses que o momento de crise
estava a requerer. Nesse novo contexto eleitoral a candidatura Serra perdeu muito de suas
possibilidades de efetiva competitividade.
Assim, as estratégias das campanhas das principais candidaturas destacaram a disputa
entre imagens públicas, movimento imprescindível hoje da luta eleitoral midiática, como
estiveram enredadas mesmo nas suas teias e artimanhas. Os temas dominantes no segundo
18 Sobre o tema consultar: ALMEIDA, Jorge. Serra e a mudança: um discurso fora do lugar de fala. Trabalhoapresentado no III Encontro (Inter)Nacional de Estudos de Comunicação e Política. Salvador, 11 a 13 dedezembro de 2002.
18
turno são exemplares neste sentido: a pretensa de fuga de Lula dos debates, conforme as
acusações da campanha de Serra que com isto buscava “demonstrar” o despreparo de Lula,
e o medo de um possível governo petista, devido às mutações de Lula, como exposto no
polêmico depoimento de Regina Duarte. Em ambos os casos a questão da imagem pública e
sua disputa governam a campanha.
A reconfiguração da imagem pública de Lula e do PT – já tentada bruscamente no
início da campanha de 1998 com a substituição das bandeiras vermelhas pelas bandeiras
brancas – resulta de um longo processo, no qual política e marketing interagem de modo
exemplar, assegurando a consistência e a competência das reformatações pretendidas. A
política empreendida pelo partido e o trabalho de Duda Mendonça apresentam-se como
dados imprescindíveis e imbricados do processo. Sua expressão no horário eleitoral pode
assim se realizar de modo bastante satisfatório, colocado o programa televisivo petista nas
sondagens realizadas pelo Datafolha sempre entre os de melhor avaliação do eleitorado.
A coexistência política de um mesmo Lula e de um Lula novo nas eleições de 2002
impõe-se como dado essencial para a vitória do PT. Esta essencialidade está sintetizada nas
perspicazes palavras de Luiz Dulci:
“ Lula conseguiu, nesta campanha, algo quase inacreditável: em sua quarta
campanha presidencial, sendo supostamente o mais previsível e ‘batido’ dos candidatos,
constituiu-se na grande novidade da disputa. E o que é fundamental: mantendo-se
rigorosamente fiel a si mesmo e aos seus compromissos históricos. Com ousadia e
humildade, soube superar-se, transcender-se, tornando-se uma enorme e positiva surpresa
para toda a sociedade brasileira, inclusive para a parcela que já o apoiava. Arrisco-me a
dizer que até nós, petistas, fomos surpreendidos com suas novas artes”19.
Por óbvio, tal novidade, essencial para a vitória presidencial de 2002, não foi uma
produção apenas individual. Ás qualidades e ao carisma indiscutíveis de Lula, devem ser
obrigatoriamente acrescidos componentes vitais como a mudança política do PT,
19 DULCI, Luiz. Ob cit. p.5.
19
conduzida, em especial pelos grupos que têm liderado o partido, e o trabalho de marketing
político e eleitoral desenvolvido por Duda Mendonça e sua equipe. Tais estratégias
políticas e comunicacionais, em conjunto com as outras intervenções anotadas no início
deste texto, configuram-se como dados explicativos fundamentais para a compreensão da
vitória eleitoral de 2002.
SOB O SIGNO DA MUDANÇA: OBSERVAÇÕES ÚLTIMAS
Em uma cerimônia de posse inovadora e transbordante de participação popular, o
presidente Luis Inácio Lula da Silva reafirmou, em seu discurso e em seu comportamento, o
signo da mudança como emblema de seu governo. A atitude de Lula expressa a consciência
de que no Brasil de hoje mudança é a palavra-chave que rege e impulsiona o imaginário e a
prática sociais.
Em uma disputa presidencial agendada por esse tema, Lula foi o candidato que, pelo
seu passado, inclusive partidário, e pelo seu presente melhor corporificou tal exigência.
Razoável, pelo conjunto de aspectos mencionados, sua vitória com uma admirável votação.
No período pós-eleição os desejos e as expectativas da população, detectados por pesquisas
e diversos atos sociais, têm reiterado a constatação que o Brasil e o novo governo estão
instalados em um cenário marcado pela exigência da mudança.
Mas a eleição de Lula, independente de qualquer desdobramento que venha a ter seu
governo, se constitui já em um ato de mudança. E tal mudança teve como componente
essencial a manutenção e a transformação na imagem pública de Lula, como demonstrado
no texto. Este signo não se inscreve apenas no campo político. Ele tem um significado mais
largo e profundo. Hoje a mudança perpassa diversas dimensões sociais no país, inclusive
agindo como um potente amálgama da atualidade brasileira. Tem razão a deputada federal
eleita Luciana Genro quando escreve em seu artigo “Mudança é a palavra-chave” que a
posse de Lula é “sem dúvida, uma mudança política e cultural, sem precedentes na história
brasileira” 20.
20 GENRO, Luciana. Mudança é a palavra-chave. In: Folha de São, 14 de janeiro de 2003, p.A3.
20
Nesta perspectiva, cabe formular para concluir um conjunto substantivo de perguntas:
qual a transformação política e cultural que já se encontra em curso? Qual o significado
desta mutação?
A já famosa e iluminada expressão “a esperança vence o medo” condensa de modo
perspicaz a mudança em processo. Ela aponta para um povo que, apesar de todas as
dificuldades e preconceitos, passou a acreditar em si mesmo, através da eleição de um líder
que, em termos da tipologia construída por Roger-Gérard Schwartzenberg no livro L’ État
Spectacle21, pode ser classificado como “homem comum”, como liderança que se conforma
através da empatia e da identificação popular com seus traços de gente do povo. Mas, e isto
é essencial, um homem do povo que, tendo enfrentado todas as dificuldades da pobreza,
venceu na vida. Tal raciocínio pode, guardado o devido cuidado e distancia, contemplar o
vice José Alencar, um homem do povo também vencedor, só que na esfera econômica da
vida e não na política, como é o caso de Lula.
Acreditar e ter esperança em um “igual” para dirigir o país implica em superar o medo
e o preconceito enraizados pela sociedade de classe. Significa acreditar em sua
potencialidade e apostar na abertura de um horizonte maior de possibilidades sociais. Trata-
se, em suma, da mutação da auto-estima do homem comum, dado essencial nas mudanças
culturais e políticas.
Ao revolver as práticas, sensibilidades e ideários cotidianos e ordinários, ao colocar
em cheque preconceitos, ao configurar novas cartografias de possibilidades para as vidas
prejudicadas, para lembrar a expressão de Theodor Adorno, a mutação da auto-estima tem,
por sua potencia, repercussões substantivas em inúmeras e diferenciadas dimensões, sejam
elas individuais ou sociais, todas intrinsecamente articuladas. Os indivíduos passam a ter
novas posturas. Os excluídos e marginalizados passam a se comportar e a exigir que sejam
vistos como cidadãos. O MST é exemplar neste aspecto. Enfim, a mutação da auto-estima
do povo brasileiro tem repercussões no modo de imaginar o país.
21 SCHWARTZENBERG, Roger-Gérard. L’État spectacle . Paris, Flamarion, 1977.
21
A profunda, e por vezes sutil, mudança política e cultural em processo foi percebida
pela escritora e psicanalista Betty Milan em seu texto “Brasileiro sem complexo de
inferioridade”. No parágrafo final do artigo, ela escreve: “Seja qual for o governo Lula, ele
já cumpriu um grande papel, porque nós devemos a ele a dissolução do nosso secular
complexo de inferioridade. A Lula e a nós mesmos, que o elegemos” 22.
A Era FHC foi perpassada, na prática e na imaginação, por um programa de fazer o
Brasil “contemporâneo” pela via de uma globalização subordinada ao chamado Primeiro
Mundo. A adoção, sem adequações, e mesmo a mera imitação dos valores e da cultura
daquele ideal de sociedade tornaram-se as suas marcas registradas. Em contrapartida a
nação e o nacionalismo foram reiteradamente estigmatizados, na prática e na imaginação.
Valores culturais como o globalismo, o individualismo, a competitividade, dentre outros,
conformaram-se como as matrizes do panorama cultural vigente. Em síntese, o horizonte
existencial orientava-se por um olhar subalterno e embevecido para o Primeiro Mundo. Ao
Brasil restava o esquecimento, quando não a vergonha e a repulsa. O amesquinhamento
cultural propiciado por essa atitude fica evidente. A “aventura interrompida” – para
recordar a expressão de Gilberto Gil em seu discurso de posse como Ministro da Cultura –
do país enquanto projeto de nação encontrava assim novas interdições, que reforçaram
nosso complexo de inferioridade nacional ao imaginar um outro sempre idealizado.
A reinvenção da auto-estima e a retomada de valores, como a solidariedade; a
preocupação com o outro e com o social; a atenção ao nacional, inclusive ao Brasil
profundo e excluído; a negociação e a paz social; a tolerância e a pluralidade conformam
uma nova constelação de valores que constituem uma consistente base para formular uma
política em sintonia fina com a mudança política e cultural ensejada pela ascensão de Lula
ao poder nacional.
22 MILAN, Betty. Brasileiro sem complexo de inferioridade. In: Folha de São Paulo, 07 de janeiro de 2003,p.A3.
22
Ao contrário do antagonismo proclamado em manchete na Folha de São Paulo – “No
primeiro dia, PT substitui ‘paz e amor’ por mudança social” 23 – caberia perguntar se faz
sentido nesta trajetória do PT formular este antagonismo. Seria possível e eleição de Lula
sem, dentre outros movimentos, um enfrentamento estratégico, político e cultural, das
imagens públicas de Lula e do partido? Este enfrentamento aparece então como
imprescindível à superação de um dos principais obstáculos objetivos e subjetivos à eleição
de Lula: o medo de apostar em um homem comum, em um igual; de arriscar, de acreditar e,
enfim, de optar pela mudança. Aliás, a superação do medo foi prenunciada através da tênue
repercussão do apelo de Regina Duarte na propaganda midiática e foi enfaticamente
confirmada pelo resultado das urnas no segundo turno eleitoral.
* Professor e Diretor da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da
Bahia. Pesquisador do CNPq. Coordenador do Grupo de Pesquisa Cultura e Política.
23 “NO primeiro dia, PT substitui ‘paz e amor’ por ‘mudança social’. In: Folha de São Paulo, 03 de janeiro de2003, p.A-4.