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Caderno CRH ISSN: 0103-4979 [email protected] Universidade Federal da Bahia Brasil Gurza Lavalle, Adrian; Castello, Graziela SOCIEDADE CIVIL, REPRESENTAÇÃO EA DUPLA FACE DA ACCOUNTABILITY: cidade do México e São Paulo Caderno CRH, vol. 21, núm. 52, enero-abril, 2008, pp. 67-87 Universidade Federal da Bahia Salvador, Brasil Disponible en: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=347632174006 Cómo citar el artículo Número completo Más información del artículo Página de la revista en redalyc.org Sistema de Información Científica Red de Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal Proyecto académico sin fines de lucro, desarrollado bajo la iniciativa de acceso abierto

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Caderno CRH

ISSN: 0103-4979

[email protected]

Universidade Federal da Bahia

Brasil

Gurza Lavalle, Adrian; Castello, Graziela

SOCIEDADE CIVIL, REPRESENTAÇÃO EA DUPLA FACE DA ACCOUNTABILITY: cidade do México

e São Paulo

Caderno CRH, vol. 21, núm. 52, enero-abril, 2008, pp. 67-87

Universidade Federal da Bahia

Salvador, Brasil

Disponible en: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=347632174006

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INTRODUÇÃO

Quando o controle social sobre o poderpúblico e suas burocracias é exercido por atorescoletivos organizados e não por cidadãos em suacondição inerentemente individualizada (“cidadãosavulsos”), necessariamente ocorrem modalidadesde representação política cujas lógicas de funcio-namento, constituição e legitimidade ainda nãoforam investigadas o suficiente, embora venhamdespertando cada vez mais atenção, como demons-tra o surgimento e o crescimento de agendas de

SOCIEDADE CIVIL, REPRESENTAÇÃO E A DUPLA FACE DAACCOUNTABILITY: cidade do México e São Paulo

Adrian Gurza Lavalle*

Graziela Castello**

* Doutor em Ciência Política pela USP. Professor do De-partamento de Ciência Política USP e pesquisador doCentro Brasileiro de Análise e Planejamento - CEBRAPRua Morgado de Mateus 615 Vila Mariana São Paulo/SP- 04015902. [email protected]

** Mestranda de Ciências Sociais na Universidade Esta-dual de Campinas - UNICAMP e pesquisadora do CentroBrasileiro de Análise e Planejamento – [email protected] os comentários criteriosos de ErnestoIsunza, Cícero Araújo, Monika Dowbor e RobertaSoromenho a versões preliminares deste texto, que re-sume e adequa para o debate local nosso capitulo escritopara o livro de Ernesto Isunza Vera e Adrian Gurza Lavalle.Veredas de innovación democrática. Teoría y práctica dela representación, la participación y el control ciudadanosen América Latina. Ciudad de México, Editorial Porrúa.(Trabalho não publicado).

investigação sobre a accountability interna nas or-ganizações da sociedade civil e das práticas de re-presentação política que elas exercem.1 Essas no-vas práticas de representação política se situam, atual-mente, na fronteira da inovação democrática, mas suasimplicações para a democracia dependem não ape-nas de faculdades e capacidades de controle e inci-dência sobre o poder público e suas estruturas admi-nistrativas, mas também das relações que os novosatores da representação mantêm com os eventuaisbeneficiários, em nome dos quais falam e exercem essarepresentação. Portanto, o velho dilema do controledos controladores torna-se iniludível, revelando quea accountability societal exige uma análise que leveem consideração as duas faces do controle. Este artigoaborda essa questão do ponto de vista da teoria demo-crática, a partir de uma análise comparativa entre prá-ticas de representação exercidas por organizações ci-

1 Vide, por exemplo, apenas para citar a literatura interna-cional, as publicações de Chalmers e Vilas (1997), parti-cularmente o capítulo do próprio Chalmers, Martin ePiester (1997). Mais recentemente, vide, também, ostrabalhos de Friedman e Hochstetler (2002), Urbinati(2000), Urbinati e Warren (2007), Castiglione e Warren(2005), Törnquist, Webster e Stokke (Trabalho não pu-blicado).

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vis em duas metrópoles latino-americanas.A accountability societal, quer dizer, a que

é acionada por parte de atores coletivos em fun-ções de representação que são desempenhadas de

jure ou de facto perante o poder público e suasinstâncias administrativas, tem grande relevânciapara a teoria democrática e para o futuro das ino-vações democráticas participativas ensaiadas aolongo dos últimos anos em latitudes diversas. Areestruturação profunda das economias, as trans-formações do estado e a mudança de paradigmasburocrático-administrativos – expressos em idéiascomo “governança”, “Estado-rede”, “pluralizaçãodo Estado” e “heterogeneidade do Estado”, entreoutras – multiplicaram as interfaces de contatoinstitucionalizado entre o poder público e interes-ses sociais organizados e representados, nas quaisdiferentes modalidades de accountability societalpassam a ser possíveis.2 Isso acontece para alémdas instâncias tradicionais de representação polí-tica e das estratégias de concertação, em que gran-des corporações oriundas do mundo do trabalhoocupam posições privilegiadas.

Na verdade, não se trata, atualmente, de pro-cessos de macrorrepresentação social incumbidosde produzir consensos sobre a definição dos objeti-vos gerais do governo, bem como sobre a distribui-ção dos benefícios e a imposição das perdas, asso-ciadas a tais objetivos – processos que são própriosda representação eleitoral e funcional (gremial ousindical). Antes, as transformações em curso estãoassociadas à pluralização da representação, isto é,à proliferação de experiências de representação emníveis micro e médio, destinadas a incidir no de-sempenho das burocracias e dos serviços públicos,com vistas a aperfeiçoá-los (Gurza Lavalle; Houtzager;Castello, 2006a). Mais precisamente, é possível iden-tificar um impulso favorável a inovaçõesinstitucionais participativas e, como conseqüênciainvoluntária, um deslocamento progressivo em di-

reção à pluralização dos atores da representaçãopolítica e das funções tradicionais da própria repre-sentação: outros atores coletivos distintos de parti-dos ou sindicatos, exercendo funções que não sãode legislação ou controle da cabeça do executivonem de negociação com relação à distribuição socialda riqueza na forma de lucros ou beneficio do traba-lho, e sim de fiscalização e co-gestão de políticasdentro do próprio poder executivo.3

Entretanto, esse novo panorama apresenta aquestão da dupla face da accountability societal.4 Aaccountability supõe a obrigação de prestar contas,implica a possibilidade de sanção e compõe umsubconjunto do repertório de práticas de controleinterinstitucional e social. No caso do controle so-cial, sempre que se fala em nome de alguém, ou osujeito da fala comparece como membro de umaentidade ou grupo nas inovações institucionaisparticipativas e nos espaços de negociação, a lógicada auto-apresentação como explicitação de interes-ses e opiniões individuais, própria da participação,é substituída pela lógica da representação. Sendoassim, cabe perguntar pela qualidade ourepresentatividade dessa representação, pelos me-canismos que a tornam legítima não apenas em re-lação ao poder público, mas também em relaçãoaos representados ou beneficiários em nome dosquais se atua e se negocia. Nesse sentido, modali-dades de controle societal, nas quais se encontram

2 A multiplicação de idéias com um registro semelhantemanifesta o espírito do tempo pós-fordista e pós-desenvolvimentista. Distintos autores desenvolveramas idéias listadas no texto. Vide, por exemplo, os traba-lhos de Ansell (2000), Dagnino, Olvera e Panfichi (2006),Marques (2006) e Chandhoke (2003).

3 Sem entrar em questões de mérito ou eficácia, há váriosexemplos de inovações institucionais que apontam paraa pluralização da representação política e da accountabilitysocietal: leis de direito à informação e a transparência,orçamentos participativos, conselhos gestores de políti-cas, comitês participativos em diversas instâncias da ad-ministração pública, a multiplicação da presençainstitucional de ombdusmans, audiências públicas, ob-servatórios cidadãos, legislações sobre o terceiro setor.Para países do hemisfério norte, vide a coleção de traba-lhos no volume editado por Cain, Dalton e Scarrow(2003); para o hemisfério sul, vide os volumes editadospor Cornwall e Coelho (2007) e por Santos (2002); paraAmérica Latina, vide os trabalhos do volume editado porIsunza e Gurza, no prelo; para o caso mexicano, consul-tem-se os volumes coordenados por Isunza e Olvera(2006a); Fox, Haight, Hofbauer e Sánchez (2007). NoBrasil, a literatura sobre orçamento participativo e con-selhos gestores é farta.

4 Aspectos da questão da dupla face da accountabilitysocietal foram explorados mediante as idéias de “repre-sentação presuntiva”, “representatividade”, “represen-tação virtual” e “paradoxos da representação da socieda-de civil” em Gurza Lavalle, Houtzager e Castello, 2006a;2006b; da mesma forma, em Gurza Lavalle e Isunza,Houtzager e Gurza Lavalle (Trabalhos não publicado).

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organizações civis que representam interesses, es-paços de interlocução institucionalizados e facul-dades decisórias com caráter vinculante, revelam-se altamente exigentes em um duplo sentido. Porum lado, satisfazem as expectativas mais elevadasdo ideário da democracia participativa, cujos ex-poentes acusam freqüentemente as insuficiênciase distorções que nesses espaços minam a “partici-pação” e obstaculizam tentativas autênticas de “par-tilhar o poder” – segundo a influente formulaçãode Dagnino (2002). Mas, por outro lado, impõemexigências a respeito da representatividade,responsividade5 e sanção dos que falam em nomedos demais, suscitando a velha questão do con-

trole dos controladores.Sem dúvida, seria possível, ainda que pou-

co produtivo, cancelar analiticamente o registro darepresentação, partindo-se do princípio de que setrata de representação sem autorização nemconstituency claramente definidas e, portanto, decontroladores aparentemente emancipados de qual-quer controle social. Nessas condições, a repre-sentação seria, por definição, impossível ou não-democrática.6 Esperar que organizações civis sa-tisfaçam os requisitos da representação como sefossem partidos ou sindicatos indica profundainsensibilidade com relação à pluralidade e ao ca-ráter de novidade do fenômeno em questão. Nãoexistem modelos históricos nem analíticos consa-grados de representação e accountability de orga-nizações civis e, por isso, parece pertinente bus-car uma alternativa que permita avançar na

problematização e na compreensão da pluralizaçãoda representação, mais do que cancelar as pergun-tas no nascedouro.

Na verdade, é possível seguir outro cami-nho, como mostram os recentes redirecionamentosda literatura, aos quais subjaz a convicção de queos processos de pluralização da representação emcurso exigem a construção de novas estratégiasconceituais. A crescente difusão da semântica docontrole nos campos da teoria democrática, da so-ciedade civil e do terceiro setor constitui a adoçãode uma estratégia conceitual que permite situar aproblemática da legitimidade das práticas de re-presentação exercidas pelas organizações civis emum terreno diferente do da autorização, com fre-qüência precária ou simplesmente inexistente.7 Poroutras palavras, perante a impossibilidade de seequacionar satisfatoriamente o quesito da autori-zação, a dimensão da accountability vem sendoresgatada como alternativa para explorar teórica eempiricamente a eventual legitimidade das novaspráticas de representação por organizações civis(Peruzzotti, 2007; Alnoor; Weisband, 2007;Urbinati; Warren, 2007; Castiglione; Warren, 2006).A operação de deslocar a atenção da autorizaçãopara centrá-la na accountability abre passo para sepensar na legitimidade em função, não de um atoinicial de consentimento, mas dos processos me-diante os quais as organizações civis internalizam,definem e depuram as prioridades e propósitosda representação por elas exercida.

Este artigo dá continuidade a uma linha deinvestigação e reflexão teórica sobre os processosde pluralização da representação. Principalmentesobre as funções de representação política exercidaspor organizações civis, os processos dereconfiguração da representação, a relação de am-bos com as inovações democráticas participativas,assim como a conexão entre essas modalidades derepresentação e os eventuais mecanismos deaccountability a elas associados, que foram tratadosem outros artigos.8 Aqui abordamos, no plano

5 “Responsivo” é que tem inclinação a responder. A“responsividade política” se refere, normalmente, à sen-sibilidade do governo e dos representantes diante dasinquietudes e demandas dos governados e dos represen-tados, expressada mediante algum tipo de resposta. Dessaforma, a “responsividade” guarda parentesco semânticoestreito com “responsabilidade”, mas, nesse caso, serresponsável pressupõe responder pelo cuidado de algoou de alguma coisa e estar sujeito a penalização. A dife-rença entre responsabilidade e responsividade é crucialpara as teorias da representação, pois, diferentemente darepresentação de interesses no direito civil, na represen-tação eleitoral o representante não pode ser responsabi-lizado juridicamente por descumprir o “contrato“ ouacordo com o representado. As eleições são um meca-nismo de sanção e autorização, mas funcionam promo-vendo a responsividade do representante (Vide Sartori,1962; Galvão 1971; Campilongo 1988; Gurza Lavalle;Houtzager; Castello 2006a).

6 Vide, por exemplo, Przeworski, 2002 e Chandoki, 2003.7 Para um balanço desse deslocamento, vide Gurza Lavalle;

Isunza (Trabalho não publicado).

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empírico, a dupla face da accountability societal,utilizando os resultados de dois surveys realizadosna Cidade do México e em São Paulo. Foram entre-vistadas mais de 400 organizações civis (líderes oumembros da direção) e os critérios de escolha privi-legiaram as organizações ativas nos segmentos maispobres da população, o que torna os resultados aquiexpostos particularmente oportunos para as agen-das de aprofundamento da democracia.9 Cabe men-cionar que este artigo parte de uma análise realizadapara o caso de São Paulo (Gurza Lavalle; Houtzager;Castello 2006b), mas a reformula à luz do debatesobre a dupla face da accountability societal e dosresultados da Cidade do México, contemplando asvariações apresentadas pelos diferentes tipos deorganizações civis nos dois contextos – resultadosque são totalmente inéditos. Sempre que for perti-nente, e com vistas a evitar repetições, serãoindicadas ao leitor as formulações já publicadas,reservando-se estas páginas para formulações maisdepuradas e de caráter comparativo.

Com o propósito de problematizarempiricamente a dupla face da accountability societal,serão examinadas as noções de representação exis-tentes no seio das organizações civis da Cidade doMéxico e de São Paulo. Mais precisamente, o artigocentra a atenção nas noções sedimentadas no discur-so público das organizações que, nos dois contextosurbanos, assumem a representação de seus públicosou dos grupos da população que defendem(doravante, “beneficiários”). Ao adotar como objetode análise as noções de representação presentes nosuniversos de organizações civis estudados, não é pos-sível afirmar que as organizações em questão exer-çam práticas de representação em instânciasinstitucionalizadas e investidas de faculdades

decisórias vinculantes. Ainda assim, os resultadossão ricos do ponto de vista empírico e suficiente-mente esclarecedores acerca de possíveis respostas àquestão da dupla face da accountability societal e decomo elas estão sendo construídas na prática pelosnovos atores da representação. Em todo o caso, asnoções foram controladas pelo exercício efetivo depráticas de representação perante o poder público,algumas das quais acontecem em espaçosinstitucionalizados, e se mostraram nitidamente con-sistentes (Gurza Lavalle; Houtzager; Castello, 2005).

Os resultados do estudo oferecem um pa-norama mais rico e diversificado do que fariamsupor as posições apriorísticas de defesa ou con-denação do papel da sociedade civil nas democra-cias. Ás vezes, existem expedientes de autorizaçãoque medeiam a relação de representação entre or-ganizações civis e beneficiários, mas, na maior partedos casos, trata-se de práticas de representação

presuntiva, ou seja, unilaterais por parte daquelesque as exercem e não autorizadas pelos beneficiáriosem nome dos quais são exercidas. A representa-ção presuntiva, própria de uma parte do repertó-rio de atividades levadas a cabo pelas organiza-ções civis – por exemplo, aquelas compreendidasna rubrica advocacy, para mencionar só um con-junto óbvio de atividades – pareceria incompatí-vel com a idéia de accountability, pois essa pres-supõe a definição clara do agente de controle comcapacidades de sanção e diante do qual se pres-tam contas, no caso, os beneficiários. Não obstante,a opção analítica de trabalhar com noções de re-presentação, em sua maior parte presuntivas, mos-trou-se pertinente pelo fato de ajudar a evidenciaros custos cognitivos de posturas que formulamveredictos acerca da legitimidade ou ilegitimidadeda chamada sociedade civil in toto. Curiosamen-te, às vezes, defensores e detratores da sociedadecivil coincidem em tomar como premissa aunicidade do universo das organizações civis.

Muito embora dois terços ou mais das organi-zações civis examinadas nas duas cidades presumama representação de seus beneficiários, fazem-no en-frentando de maneira distinta as duas faces daaccountability societal e lançam mão de justificativas

8 Vide, em Gurza Lavalle, Acharya e Houtzager, 2005; GurzaLavalle, Houtzager e Castello, 2006a e 2006b; GurzaLavalle e Isunza (Trabalho não publicado).

9 Os resultados empíricos apresentados nestas páginasformam parte do projeto de investigação “Rights,Representatiom and the Poor: Comparing LargeDeveloping Country Democracies. Brazil, India andMexico“. Informações e publicações do projeto estão dis-poníveis para download em www.ids.ac.uk/gdr/cfs/research/Collective%20Ators.html. As publicações tam-bém podem ser acessadas na biblioteca virtual do CentroBrasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP):www.cebrap.org.br

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diferentes quanto à sua legitimidade. Um exame mi-nucioso das noções de representação revelou a pre-sença de seis tipos consistentes de justificativa: eleito-ral, de filiação, de identidade, de proximidade, de ser-viços e de intermediação. Alguns desses tipos con-tam com mecanismos internos de controle social, masoutros acusam lógicas incompatíveis com exigênciasdemocráticas mínimas. Mais além, parte das justifica-tivas reside em mecanismos de controle social plena-mente consagrados e de uso corrente nas instituiçõesdemocráticas. Também se observa a concentração decertos argumentos em determinados tipos de organi-zações civis. Assim, se, por um lado, a variação põeem cheque respostas apriorísticas únicas, animadaspor concepções positivas ou negativas da sociedadecivil, por outro, os padrões encontrados sugerem al-ternativas de teorização atentas aos efeitos das caracte-rísticas funcionais das organizações civis sobre as prá-ticas de intermediação política que exercem.

Além dos parágrafos desta introdução, oartigo está dividido em quatro seções: inicialmentese expõe a operacionalização dos conceitos queguiaram a investigação, assim como a origem e asprincipais características dos dados utilizados; naseção seguinte, apresentam-se os resultados dainvestigação sobre a elaboração discursiva associ-ada às práticas de representação exercidas pelasorganizações civis na Cidade do México e em SãoPaulo e, mais especificamente, de suas implica-ções para a inovação e o aprofundamento demo-cráticos do ponto de vista da dupla face daaccountability societal; na quinta e última seção,são exploradas as conseqüências mais gerais dosresultados apresentados, as semelhanças suscetí-veis de maiores aprofundamentos analíticos e tam-bém apontam-se, de forma muito breve, as varia-ções significativas entre contextos.

ACCOUNTABILITY COMO ESTRATÉGIA DEINVESTIGAÇÃO

A idéia de “accountability” oferece clarasdistinções analíticas e orientações para a pesquisaempírica, que permitem captar simultaneamente

as práticas de representação por organizações ci-vis em sua extraordinária diversidade, sem as con-denar em conjunto, a priori, por seus déficits delegitimidade ou representatividade, mas sem dei-xar de julgá-las ex post, conforme os parâmetrosnormativos comumente aceitos na teoria democrá-tica. Nesse sentido, a accountability opera simul-taneamente como núcleo analítico com implicaçõesrelevantes para a teoria democrática e como estra-tégia de investigação. Como núcleo analítico, in-troduz exigências flexíveis, porém incontornáveisdo ponto de vista da representação democrática,quanto à relação entre representante e representa-do: a prática do primeiro deve ser informada, emalguma medida e mediante algum mecanismo, pelaavaliação do segundo. Assim, optar por uma es-tratégia analítica que permite ampliar o horizontedas práticas de representação, esquivando osimpasses do requisito da autorização, não equiva-le a se furtar do momento da avaliação. Também épossível disputar os parâmetros da própria teoriademocrática (vide, por exemplo, Young, 2002), masessa opção não é menos controversa, exige de in-vestimento de fôlego no plano da teoria políticanormativa e escapa dos limites deste artigo.

Como estratégia de investigação, a idéia deaccountability sugere a utilidade de documentardiferentes modalidades de responsividade das or-ganizações civis e de examiná-las em busca doseventuais mecanismos internos de controle e san-ção que as animam. Sem dúvida, também ressaltaa importância de examinar cuidadosamente asmodalidades de controle que essas organizaçõesexercem sobre o poder público e suas instânciasadministrativas. Essa última face da accountability

societal tem recebido mais atenção e, com algumafreqüência, foi tratada sob uma tônica de denúnciaou defraudação das expectativas associadas aoideário participativo.10 Nestas páginas, as duas fa-ces serão contempladas na reconstrução dos re-sultados, mas apenas a primeira será sistematica-

10 Um balanço inicial da literatura sobre participação nasinovações institucionais brasileiras, onde se mostra a tô-nica de denúncia e o sentimento de defraudação, pode serconsultado em Tatagiba, 2002; vide, também, Cornwall eCoelho, 2007b, Fung e Wright, 2003 e Heller, 2002.

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mente examinada com o propósito de extrair ana-liticamente suas conseqüências mais gerais.

Frente à ausência de constituencies pré-defi-nidas e de procedimentos claros que permitissemidentificar a relação entre representantes e repre-sentados, indagando a representatividade das açõesdos primeiros, decidiu-se levar a sério e analisarcom cuidado o discurso das organizações civis acercade sua qualidade de representantes. Essas organi-zações podem rejeitar ou assumir unilateralmenteou de modo presuntivo o papel de representantesde seus beneficiários, mas, uma vez escolhida a se-gunda opção, torna-se imperioso invocar justifica-ções para sustentar publicamente a índole genuínadas relações de representação correspondentes(Gurza Lavalle; Houtzager; Castello, 2006b). Aoenfocar a representação presuntiva, esta análise sedesenvolve integralmente no plano da elaboraçãodiscursiva dos atores analisados; não obstante, estálonge de ser arbitrária e apresenta resultados queapontam a padrões claros.

Segundo sugerem os resultados, as justifica-tivas inerentes à representação presuntiva tendemà decantação como discurso público plausível àmedida que esses atores exercem mais funções derepresentação e enfrentam questionamentos acercade sua representatividade. Assim, os motivos invo-cados atualizam a questão da representatividade epõem o ator em posição de explicitar (invocar) even-tuais mecanismos internos de accountability comoparte de sua justificação. Em realidade, em algumasocasiões, segundo se verá, as justificativas contem-plam de modo explícito ou implícito mecanismosinternos de accountability, mas, em outras, as no-ções de representação sustentadas pelas organiza-ções civis são claramente incompatíveis com as exi-gências democráticas.

Os trabalhos de campo foram realizados,respectivamente, no município de São Paulo, du-rante oito meses de 2002, e na Cidade do México(Distrito Federal) durante seis meses do ano se-guinte. Há registro de 229 organizações localiza-das em São Paulo e 196 na Cidade do México.Para conformar a amostra, as organizações foramescolhidas utilizando-se a técnica “bola de neve”,

cujas vantagens e limitações são conhecidas(Atkinsom; Flint, s.d; Goodman, 1961; Sudmam;Kalton, 1986). Questionários, critérios de adminis-tração dos fluxos de entrevistas gerados pela bolade neve e testes realizados sobre desviosindesejados na amostra estão disponíveis ao pú-blico.11 Aqui só é pertinente apontar que, ademaisda aplicação dos mesmos critérios na definição daamostra nas duas cidades, a administração do flu-xo de entrevistas seguiu critérios de saturação se-gundo diferentes tipos de organizações civis. As-sim, se o peso das mesmas na amostra não guardaqualquer relação estatística com a composição deum universo (desconhecido) de organizações ci-vis, os resultados para cada tipo (saturado) de or-ganização civil são indicativos de suas característi-cas e comportamentos.

Em duas perguntas abertas sucessivas, so-licitou-se aos entrevistados que especificassem ogrupo de pessoas para o qual a entidade trabalha-va e se esta se considerava representante do grupodefinido previamente; só depois, e em caso de aresposta à segunda pergunta ser afirmativa, per-guntou-se “por que”, isto é, os motivos pelos quaisa organização afirmava representar os interessesdos beneficiários. A partir do exame e da codificaçãoda última pergunta, noções foram cuidadosamen-te sistematizadas em uma tipologia empírica com-posta por categorias dotadas de coerência internae com certo grau de abstração.12

DOIS UNIVERSOS DE ORGANIZAÇÕES CIVIS

A análise requer identificar e tornar compa-ráveis as organizações civis oriundas de dois con-textos nacionais e metropolitanos distintos. Os

11 Vide a nota de rodapé 9, e Houtzager, Gurza Lavalle eAcharya, 2003.

12 A representação presuntiva será aqui examinada so-mente mediante estatísticas descritivas, mas, em outrostrabalhos, ela recebeu tratamento sistemático como va-riável dependente no campo das estatísticas inferenciais,especificamente utilizando-se estimativas de probabili-dade (relative risk ratios e logistic regressions).Para uma exposição mais técnica, vide os anexos emGurza Lavalle, Houtzager e Castello 2005, e Houzager,Gurza Lavalle e Acharya 2003. Vide, também, GurzaLavalle, Houtzager e Castello 2006b.

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rótulos normalmente utilizados para distinguir ato-res coletivos costumam ser objeto de disputa sim-bólica com relação ao sentido atribuído à sua atua-ção.13 Por isso, as organizações civis não foram clas-sificadas com base em suas autodefinições, e simconforme critérios objetivos de dois tipos: a rela-ção com seus beneficiários e o perfil das ativida-des normalmente realizadas. No primeiro caso, (i)o conjunto dos beneficiários encarna uma unida-de real ou abstrata (por exemplo, os moradores dobairro ou os cidadãos, respectivamente), (ii) cujoscomponentes são indivíduos, organizações e ato-res coletivos, ou segmentos da população, (iii) con-cebidos como membros ou sócios, como públicoobjetivo ou como a comunidade. No segundo caso,a cada tipo de organização civil corresponde (iv)uma estratégia de atuação distintiva e (v) combina-ções excludentes de atividades dirigidas a reivin-dicação e mobilização, oferta de serviços, organi-zação popular ou intermediação entre o governo eos beneficiários.

Mediante a aplicação desses critérios, foipossível delinear uma primeira classificação deorganizações civis, cujos aspectos ficam intuitiva-mente claros pelas denominações aqui utilizadas:associações de bairro, associações comunitárias,ONGs, pastorais, articuladoras, fóruns e entida-des assistenciais. As caracterizações comuns naliteratura dos tipos de organizações civis aqui exa-minados e a consistência da tipologia podem serconsultadas em outros trabalhos (Gurza Lavalle;Castello; Bichir, 2007; 2008). Contudo, asarticuladoras e as associações comunitárias mere-cem um breve comentário, pois são organizaçõescivis com características menos intuitivas do queas demais. As primeiras são entidades criadas poroutras organizações especificamente para coorde-nar sua ação e defender seus interesses frente aoEstado e a outros atores econômicos e societais; assegundas são atores locais e territoriais de solida-riedade mútua ou que trabalham com pequenos

grupos e comunidades nos quais os beneficiáriose os membros da organização coincidem (gruposda terceira idade, clubes locais de jogadores debocha, escolas de samba, centros da juventude,entre outros).

A composição dos universos das organiza-ções civis coincide em boa medida na Cidade doMéxico e em São Paulo, mas a correspondência nãose dá ponto por ponto, nem seria razoável esperarque assim fosse. Uma vez resolvida a classificaçãoinicial, optou-se por criar categorias mais abstratas,que permitissem ampliar a comparabilidade entreos países e o diálogo com a literatura internacio-nal. A Tabela 1 apresenta a tipologia final adotadapara esta análise e as classificações iniciais nasquais não há correspondência. Vale a pena recor-dar que as amostras foram geradas seguindo-seprocedimentos iguais em ambas as cidades, ou seja,os pesos específicos dos diferentes tipos de enti-dades foram afetados da mesma maneira pelasopções metodológicas adotadas e, por conseguin-te, as semelhanças e variações em sua composiçãoobedecem aos contextos investigados.

Com relação às não-correspondências, deve-

13 Além disso, a elaboração de uma identidade pública e aaceitação de determinados perfis organizacionais com-partilhados costumam ser desafios complexos para asorganizações civis que, às vezes, seguem caminhos tor-tuosos para fazer frente a eles, como mostra a históriadas ONGs no Brasil (Landim, 1998).

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se prestar atenção a três tipos de organizações. Asassociações de base na Cidade do México teriampresença modesta na amostra se não fosse pelaexplosão dos comitês de vizinhos, gerada pela Leide Participação Cidadã.14 Por sua vez, a teologia daliberação e o ativismo da Igreja Católica no Brasilperderam força depois da transição, mas o traba-lho pastoral ainda se encontra suficientemente dis-seminado para aparecer na amostra. O trabalho decoordenação horizontal e de condensação de agen-das comuns entre constelações de atores vincula-dos por afinidades temáticas também parece maisdifundido em São Paulo, a julgar pela ausência defóruns na capital mexicana. Em termos gerais, con-tudo, a composição da amostra guarda proporçõessemelhantes, seja nas subcategorias compatíveisou nas categorias agregadas (associações de base,organizações orientadas tematicamente, entidadesde coordenação e entidades assistenciais).

A DUPLA FACE DA ACCOUNTABILITYSOCIETAL NAS DUAS METRÓPOLES

As razões citadas pelos distintos tipos deorganizações civis para justificar a representaçãopresuntiva compõem grandes constelações de sen-tidos, e a tipologia as adensa e sistematiza seuselementos centrais. Assim, a tipologia de argumen-tos de representação presuntiva é resultado da in-vestigação, prescinde de elementos conceptuaisnormativos apriorísticos que operam comoparâmetros dedutivos e, em princípio, nada signi-

fica em relação à forma como as organizações civisdeveriam construir suas funções de representaçãopolítica. Claro que isso não impede, antes possi-bilita, a avaliação das implicações dos argumentosapresentados do ponto de vista de sua compatibi-lidade com exigências democráticas inescapáveis.Nesse caso, o interesse na eventual presença demecanismos de accountability leva a enfocar, nadefinição da tipologia, o modo em que se conju-gam as relações entre representado e representan-te, e entre o representante e o lócus da representa-ção, sempre em busca de sua capacidade para ani-mar e sustentar modalidades de controle social. Olócus, convém precisar, é, ao mesmo tempo, a ins-tância na qual a representação é exercida e osinterlocutores frente aos quais se exerce, notoria-mente o poder público, mas não só ele, tambémoutros atores da sociedade civil e, em última ins-tância, a sociedade como um todo. Cada argumen-to constitui uma modalidade particular de orde-nação das relações entre representante, represen-tado e lócus, cuja nota distintiva é a ênfase depo-sitada pela organização civil em determinadas ca-racterísticas dessas relações, as quais ela invocacomo prova da autenticidade da representaçãopresuntiva.

Na metrópole sul-americana, 73% das orga-nizações civis se consideram representantes de seusbeneficiários, ao passo que a representaçãopresuntiva, na Cidade do México, chega a 58% daamostra. As razões apresentadas pelas organiza-ções civis definem seis argumentos de justificaçãopresentes nos dois contextos: eleitoral, de identi-

dade, de filiação, de serviços, de proximidade e de

intermediação. Os três primeiros são conhecidosou constitutivos da história da democracia moder-na e costumam receber tratamento no campo dasteorias da representação, mas aparecem em posi-ção francamente secundária como justificações docaráter genuíno da representação exercida pelasorganizações civis estudadas, oscilando entre 4%e 15% (Gráfico 1). Enquanto isso, os argumentosmais invocados – serviços, proximidade eintermediação – correspondem plenamente a mo-dalidades de representação presuntiva, resultam

14 Embora se possa argumentar que os comitês de vizi-nhos não pertencem à sociedade civil, sua exclusão re-meteria a uma compreensão normativa da sociedade ci-vil em que se postulam características distintivas comoautonomia, espontaneidade e inserção genuína no teci-do social. Aqui, evitamos intencionalmente essas com-preensões normativas (para um exame crítico das for-mulações altamente estilizadas e normativamentesobrecarregadas da sociedade civil que dominaram o de-bate durante os anos 1990, vide Gurza Lavalle, 2003a).Ademais, a técnica de bola de neve foi desenhada com opropósito de gerar cadeias de referências originadas apartir de organizações civis reconhecidas por seu traba-lho e atividade em bairros pobres das duas cidades, ouseja, entrevistaram-se os atores localmente relevantesquando e onde foram encontrados. Assim, os comitêsde vizinhos constantes na amostra são resultado do re-conhecimento de outros atores locais de sua presençaativa e do valor do seu trabalho.

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em parte estranhos à tradição democrática e nãosão necessariamente compatíveis com exigênciasdemocráticas mínimas. Paradoxalmente, dentrodesse segundo conjunto, também se encontram osargumentos mais novos e promissores. No terrenocomparativo, os resultados deambas as metrópoles contrastame permitem esboçar padrões ni-tidamente diferenciados, com im-plicações relevantes não só paraas teorias democrática e da soci-edade civil, mas também para acompreensão das capacidades erepertórios de ação dos atores emquestão. Aqui trataremos somen-te das primeiras implicações. OsGráficos 1 e 2 sintetizam os re-sultados comparativos datipologia de argumentos, bemcomo sua relação com os dife-rentes tipos de organizações ci-vis que os utilizam nas duas ci-dades.

Os seis argumentos foram expostos siste-maticamente a propósito de um exame das práti-cas de representação política das organizações ci-

vis de São Paulo. Nesse artigo, os argu-mentos serão brevemente resumidospara dar passagem à comparação e, prin-cipalmente, à especificação de suas con-seqüências do ponto de vista da duplaface da accountability societal.15

Convém iniciar destacando asdiferenças no grau de estabilização dosargumentos nas duas cidades, revisan-do as cifras do Gráfico 1 corresponden-tes à presença de argumentos múltiplos,residuais e inclassificáveis como justi-ficativas de representação. O fato deque a esmagadora maioria das organi-zações civis paulistanas (94%) recorraa um só argumento, enquanto 19% dasentidades mexicanas lançam mão devários deles simultaneamente, sugere

a presença de formulações relativamente mais es-tabilizadas no primeiro contexto. Além disso, en-tre as entidades da Cidade do México, um núme-ro superior a 10% utiliza três argumentos ou mais,enquanto, em São Paulo, só 1% da amostra usatrês argumentos. Isso está em sintonia com a gran-

15 Remetemos o leitor a uma exposição detalhada dos ar-gumentos em Gurza Lavalle, Houtzager e Castello(2006b).

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de dispersão de argumentos de representaçãopresuntiva encontrada na capital mexicana, cujataxa é sete vezes superior à de São Paulo; em ou-tras palavras, 22% dos argumentos citados pelasorganizações civis mexicanas são residuais, poisnão foram suscetíveis de classificação na tipologiade argumentos nem apresentaram semelhançassuficientes para configurar outro argumento. Porsua vez, na cidade brasileira, a categoria residual“outras” compreende somente 3% das entidadesda amostra. Por último, também não foi possívelclassificar como argumentos de representaçãopresuntiva, vale dizer, como justificativas de legi-timidade, 5% das formulações pronunciadas pe-las organizações civis da Cidade do México. A ri-gor, a categoria “sem argumento” compreende res-postas que, mesmo segundo critérios generosamen-te amplos, não configuram uma justificativa comrelação ao beneficiário. Na amostra de São Paulo,não houve sequer uma entidade agrupada nessacategoria.

No argumento eleitoral, as organizações ci-vis invocam a existência de mecanismos de elei-ção dos líderes ou dirigentes como evidência desua representatividade.16 O lócus implícito como

pano de fundo são os diversos órgãos do poderpúblico, mas o argumento não contempla nemexplicita as funções que serão desempenhadas.Uma porcentagem muito pequena de organizaçõescivis em São Paulo, só 4%, argumenta que a exis-tência do voto como mecanismo da eleição de lí-deres ou membros das direções constitui uma evi-dência contundente da legitimidade da represen-tação presuntiva. A cifra é quase quatro vezes maisalta na Cidade do México (15%), em boa medidadevido aos efeitos da Lei de Participação Cidadãna explosão de comitês de vizinhos e na conse-qüente adoção e generalização de uma formaorganizativa específica reconhecida e regulamenta-da pela lei.

As eleições são o mecanismo mais conheci-do e estudado de autorização e de accountability.Embora estejam longe de ser sinônimos derepresentatividade, como demonstram os debates

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Gráfico 3 - Representação Presuntiva segundo Tipo de Organização Civil - Cidade do México

Eleitoreal

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Filiação

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16 Por motivos óbvios, esse argumento cai no terreno bemdefinido na literatura especializada sob rubricas comogoverno representativo (Manim, 1995), mandato repre-sentativo (Sartori, 1962), accountability eleitoral(Przeworski, Stokes e Manim, 1999), representação elei-toral, conceito de representação acting for¸ ou “agir emnome de” (Pitkin, 1985 [1967]), modelo de congruênciaou representação política moderna (Galvão, 1971).

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na literatura especializada,17 elas oferecem meca-nismos de controle e sanção sobre os representan-tes e tendem a estimular sua sensibilidade frenteàs demandas e necessidades dos representados(responsividade). Apesar de carecerem do escrutí-nio público e do grau de formalização própriosdos processos eleitorais do governo representati-vo, as eleições no seio de organizações civis se-guem a mesma fórmula e os mesmos critérios delegitimidade. Nesse sentido, não se trata de umamodalidade de representação presuntiva, e sim deexpedientes de representação autorizados. Se asorganizações civis que exercem funções de repre-sentação se encontram submetidas a mecanismoseleitorais em sua relação com os beneficiários, umadas duas faces da accountability societal – a docontrole dos controladores – responde plenamen-te a exigências democráticas. A baixa freqüênciada representação autorizada, que seria ainda me-nos expressiva se não fosse pelo peso dos comitêsde vizinhos nas associações de base da Cidade doMéxico, está em sintonia com as preocupações daliteratura com a legitimidade das organizações ci-vis no desempenho de seu papel de intermediári-as entre distintos interesses sociais e o poder pú-blico. Como o campo da representação de interes-ses pelas associações de base é relativamente pou-co estruturado e regulamentado, a outra face daaccountability, ou a relação entre o representante eo lócus da representação, é pouco clara; vale dizer,a gama de funções permitidas ao primeiro e as fron-teiras do segundo não estão especificadas nem sãoóbvias a ponto de dispensar essas especificações.

No argumento de identidade as organizaçõesinvocam uma coincidência substantiva plena en-tre o representante e o representado em virtude decaracterísticas existenciais – gênero, raça, origemétnica – como base da legitimidade da representa-ção por elas exercida.18 Não existem expedientes

de autorização e o lócus permanece implícito, ouseja, representam-se interesses animados por umalógica identitária frente aos demais e em instânciasimplicitamente consideradas pouco sensíveis àsdemandas dos grupos portadores dessas identi-dades. As dinâmicas da representação exercida pororganizações civis parecem pouco ou nada guia-das por lógicas identitárias, tanto em São Paulo(5%) quanto na Cidade do México (4%). Emboraapenas as entidades assistenciais prescindam to-talmente de reivindicações de legitimidadecentradas na identidade, o argumento é igualmen-te irrelevante para todos os tipos de organizaçõescivis. Dentro de sua presença limitada no conjun-to de argumentos, chama a atenção que a justifica-ção baseada na identidade seja a mais utilizadapelas ONGs na capital mexicana (quase 75%), aopasso que em São Paulo ela aparece dispersa e compresença igualmente baixa em todos os tipos deorganizações civis.

Na medida em que o argumento de identi-dade se baseia nos efeitos atribuídos a semelhan-ças existenciais ou substantivas, descuidam-se osmecanismos de controle e sanção, pois, em prin-cípio, a semelhança existencial encerraria tudo oque o representante deve ser para atuar conformeespera o representado. Assim, o eventual controlesocial do representante se torna supérfluo pelo tipode coincidência substantiva pressuposta no argu-mento. A questão da dupla face da accountability

societal emerge com força: não apenas as faculda-des e responsabilidade no lócus da representaçãosão pressupostas sem qualquer especificação, mastambém pouco se pode compensar a ausência deautorização e de mecanismos de controle com aintrodução de pressupostos tão controversos comoa derivação hipotética de condutas – do represen-tante – mediante a postulação de coincidênciassubstantivas. Mesmo assim, quando o pressupos-

17 Não apenas as numerosas denúncias da impotência dospartidos para resolver o déficit de representação das de-mocracias contemporâneas (Chalmers; Martim; Piester,1997; Friedmam; Hochstetler, 2002; Roberts, 2002), comotambém diagnósticos agudos acerca das limitações es-truturais do voto ou mecanismo eleitoral e do parla-mento como lócus da representação para garantir aresponsividade e o controle dos representantes eleitos(Sartori, 1962; Manin, Przeworski; Stokes, 1999b).

18 O argumento de identidade encontra eco na literaturasob formulações diversas: conceito de representaçãostanding for (pôr-se em lugar de)(Pitkin 1985 [1967]),representação de minoria (Young 2002), representaçãoespelho ou descritiva, identitária e, inclusive, em partedas posturas que defenderam historicamente a introdu-ção da representação proporcional como critério de com-posição do parlamento (Pitkin, 1985 [1967]).

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to da relação direta entre características existenci-ais do representante e suas escolhas ou sua atua-ção é suficientemente flexibilizado, torna-se plau-sível atribuir a tais características certo olhar ouuma perspectiva (Young, 2002, p.153) – de gêneroou de raça, para citar dois exemplos óbvios – que,de forma ampla, ou seja, sem pressupor interes-ses ou opiniões pré-definidas, tenda a colocar emdiscussão problemas pertinentes aos grupos soci-ais considerados como indesejavelmente sub-re-presentados. É conveniente observar que, sob talperspectiva, o argumento também permite vislum-brar quão mais ampla é a medida da democratiza-ção em relação ao parâmetro da dupla face daaccountability societal e como essa última é umatentativa de introduzir formas e institucionalizarrestrições que reduzam a contingência e os riscosinerentes a essa amplitude.

No argumento de filiação, as organizaçõescivis invocam a afiliação de seus membros comoevidência de sua legitimidade e enfatizam implíci-ta ou explicitamente a gênese simultânea da pró-pria organização e dos interesses por ela represen-tados. Trata-se não apenas de entidades criadasespecificamente para representar os indivíduos ouatores coletivos envolvidos em sua criação, mastambém, e, sobretudo, de organizações civis querepresentam interesses delimitados e instituídosmediante o ato de sua própria fundação.19 Assimsendo, representado e representante são geradosno mesmo processo. Nesse argumento, o lócus éum elemento imprescindível, visto que a funda-ção de um ator com propósitos de representaçãosó adquire sentido pela existência de instâncias einterlocutores pré-definidos (na maioria dos casos,o poder público, mas também outros atores e ins-tâncias privados ou societários). Ilustrativamente,os sindicatos supõem a interlocução tripartite en-tre trabalhadores, poder público e patrões, assimcomo a existência de regulação e de instâncias de

negociação. O argumento de filiação também é fran-camente minoritário, sendo invocado por 7% dasorganizações civis paulistanas examinadas e por5% das mexicanas. Não obstante e apesar de seupeso modesto na amostra nos dois contextos, tra-ta-se do principal argumento das entidades de co-ordenação (São Paulo – SP –: 23%; Cidade doMéxico – MX –: 26%); isto é, concentra-se quaseque exclusivamente nesse tipo de organização.Levando-se em conta que a filiação guarda estreitavinculação com determinadas formas e funçõesorganizativas, não deve surpreender tal concentra-ção em entidades fundadas por outras entidadescom vistas a representar seus interesses e a coor-denar sua atuação.

Aqui também se lança mão de razões de fac-

to e, a respeito disso, a semelhança com o argu-mento eleitoral não é fortuita, remetendo àcorporativização de interesses em sindicatos aolongo do século XX. Nenhum dos dois constitui,obviamente, argumento desenvolvido para lidarcom os dilemas da representação presuntiva, poisos dispositivos de autorização são prévios e de-sempenham simultaneamente o papel de mecanis-mos de controle (voto e afiliação). Seja devido àscotizações e a outras formas de contribuição mo-netária, seja à participação na eleição da direção,ou ainda à ameaça latente do direito de saída, oupor outros mecanismos de sanção e controlefreqüentemente associados à noção de afiliação oumembership, o argumento pressupõe mecanismospara fixar e manter relações de controle social en-tre a organização e seus beneficiários. Por sua vez,a outra face da accountability societal aparece ga-rantida com maior solidez que em qualquer outroargumento, pois a fundação da organização poraqueles que serão seus membros implica aespecificação das funções e do domínio da repre-sentação. Não é de estranhar que a idéia de umademocracia de associações tenha sido exploradano campo da teoria democrática privilegiando as-sociações baseadas na filiação devido, precisamente,à presença de mecanismos de controle societal in-ternos e à especificação das fronteiras e da matériada delegação (Cohen, 1995; Warren, 2001).

19 O argumento de filiação corresponde a um conjunto depráticas de representação que admitiram leituras positi-vas e negativas em relação a seus efeitos sobre a demo-cracia: representação funcional ou corporativa, ou in-clusive a idéia de membership nas propostas de demo-cracia associativa.

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No argumento de serviços, as organizaçõescivis invocam benefícios outorgados a seus públi-cos-alvo como fonte de sua legitimidade, ou seja,enfatizam que sua atuação melhora a vida das pes-soas, normalmente mediante a prestação de servi-ços.20 A relação entre representante e representadoou beneficiário é de índole unilateral e seconsubstancia na concessão de um benefício. Amaior singularidade do argumento reside em queo lócus nem ao menos aparece levemente insinua-do ou, de modo mais direto, é omitido por com-pleto. A bondade da concessão de benefíciosinvocada é apresentada como auto-evidente, semque a origem desses benefícios apareça como re-sultado de uma intermediação perante alguém oualguma instituição em nome dos eventuais benefi-ciados. Trata-se de um dos três argumentos maisutilizados nas duas cidades, que alcança níveisum pouco superiores a vinte pontos percentuais(SP: 23%; MX: 21%), e também o único claramen-te associado a um tipo de organização civil. Narealidade, mais da metade das entidadesassistenciais na metrópole sul-americana (56%) ena capital mexicana (53%) invocam benefícios comojustificativa da legitimidade da representaçãopresuntiva por elas assumida. No entanto, cabeobservar que todos os tipos de organização lan-çam mão dessa justificativa nas duas cidades e que,em São Paulo, as associações de base a utilizamcom freqüência considerável (27%), em nível su-perior ao que ocorre na Cidade do México (16%).

Esse argumento opera uma sinonímia entrea capacidade de distribuir ou produzir benefíciosreais e a sinceridade do compromisso de repre-sentar para o bem dos beneficiários, sugerindo,diga-se de passagem, uma crítica à representaçãopolítica tradicional, por sua incapacidade de fazeruma diferença real – de solucionar problemas enecessidades dos representados ou decorresponder a suas expectativas. Dado que a efi-

cácia aparece como peça-chave do argumento, ajustificativa é especialmente vulnerável a todas asadvertências formuladas na teoria democrática con-tra concepções não-procedimentais (substantivase igualitárias) da democracia. Mas aqui só interes-sam suas implicações do ponto de vista da ques-tão da dupla face da accountability societal. Emprimeiro lugar, o argumento não contempla meca-nismos de controle ou sanção societal dos repre-sentantes, e os representados figuram em posiçãodependente, como receptores de uma concessão.Em teoria, seria possível pensar nas eventuaisopções do beneficiário, quer dizer, na capacidadede mudar de benfeitor, e nos mecanismos deindução sobre o representante, associados a essacapacidade. Mas, como se trata de um beneficio“gracioso”, os efeitos de uma possível concorrên-cia entre representantes parecem nulos no caso dasentidades assistenciais e reduzidos no das associ-ações de bairro – a não ser em condições de dispu-ta territorial de beneficiários, no caso das últimas.Em segundo lugar, visto que a justificativa resideem proporcionar diretamente benefícios, no argu-mento aparece cancelada a função de intermediaçãoe, portanto, o lócus. Mais precisamente, o argu-mento oculta a intermediação inerente a todas aspráticas de representação, pois a ênfase na conces-são de benefícios opera sem que a origem ou olócus de negociação ou obtenção dos mesmos apa-reça ao menos insinuado. A ausência deintermediação e do lócus anula a essência da re-presentação e o próprio sentido do controle doscontroladores.

No argumento da proximidade as organiza-ções civis enfatizam a qualidade de sua relação comos beneficiários, invocando vínculos marcadospela contigüidade e horizontalidade como demons-tração de seu interesse e seu papel genuíno de re-presentantes. A proximidade pode permitir mo-dalidades “frágeis” de controle social, não reco-nhecidas formalmente como tal. Existe um lócussugerido no argumento, pois as organizações queo invocam enfatizam seu compromisso de favore-cer o protagonismo e a capacidade de reivindica-ção e resolução de problemas dos beneficiários, o

20 Esse argumento poderia ser classificado nas concepçõesparciais de representação de Pitkin (1985 [1967] p.123-156) como uma noção substantiva (distribuir benefíci-os), embora, devido às características expostas na análi-se do argumento, é difícil enquadrá-lo dentro da lógicado acting for que, segundo a autora, corresponde às mo-dalidades de representação substantiva.

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que remete a algum interlocutor pressuposto. Mes-mo assim, como em todos os argumentos de re-presentação presuntiva, as faculdades e funçõesdo representante no lócus da representação care-cem de especificação – ainda que somente no casodo argumento de serviços o lócus desapareça porcompleto. A justificativa é das mais utilizadas emSão Paulo (27%), ao passo que, na Cidade do Mé-xico, é menos comum (16%), permanecendo nomesmo nível do argumento eleitoral. Na primeirametrópole, a proximidade como fonte de legitimi-dade é invocada principalmente por ONGs (30%)e associações de base (30%), e, na segunda, porONGs (23%) e entidades de coordenação (21%),mas todos os tipos de entidades utilizam esse ar-gumento nos dois contextos.

A este argumento subjaz uma crítica implí-cita à representação política eleitoral, e tal críticaanima uma resposta que contempla, em algumamedida, o controle social. No que tange à crítica,acusam-se as distorções causadas pelas estruturasinstitucionais de intermediação política eleitoral,assumidas como incapazes de transmitir com fi-delidade a voz e os anseios da população. A res-posta, por sua vez, baseia-se nas virtualidadespositivas da proximidade (física) e da participa-ção. Participação e proximidade física constituem,em principio, condições favoráveis ao reforço darelação entre representantes e representados,viabilizando algumas formas de controle ou san-ção, a começar pela verbalização direta de deman-das ou insatisfações, e pela capacidade dosbeneficiários de impor aos representantes perdasde prestígio na localidade. A face da accountability

societal entre o representante e o lócus da repre-sentação é tão ambígua como desestruturado é ocampo da representação de interesses ocupadopelas organizações civis. Mais além, à ausência deespecificação das funções do representante é pre-ciso acrescentar que o argumento valoriza oprotagonismo do beneficiário como caminho paraeliminar as intermediações e, nessa perspectiva, aprópria idéia de “representação” perde o sentido.

O argumento de intermediação faz com quea legitimidade da organização civil não dependa

da relação com os beneficiários, e sim do lócus darepresentação, ou seja, confere à intermediação emsi a posição de fundamento da autenticidade dopapel desempenhado pelo representante.21 As fun-ções de intermediação levadas a cabo pela entida-de conseguem abrir as portas e franquear o acessoa instâncias de tomada de decisões no poder pú-blico, as quais, de outra forma, permaneceriaminalcançáveis para os beneficiários. Assim, a du-pla face da accountability societal aparece inverti-da em relação aos outros argumentos, ou seja, nes-se caso, a relação com o lócus é particularmenteclara, ao passo que a relação com o representado éa que permanece totalmente difusa, além de se re-petir a ausência de expedientes de autorização. Oexercício de uma intermediação assim entendidaconstitui a justificativa mais invocada em São Pau-lo (31%), ocupando uma posição bem mais mo-desta na Cidade do México (13%), inferior à dosargumentos de serviços, de proximidade e eleito-ral. A freqüência com que os diferentes tipos deorganizações civis lançam mão do argumento éigualmente contrastante: por um lado, em São Pau-lo, ele constitui a primeira ou segunda justificati-va mais utilizada por todos os tipos de entidadesaqui contempladas (apresentando cifras que osci-lam entre 26% e 36%, segundo o tipo de organiza-ção considerado), ao passo que, por outro lado, nacapital mexicana só as ONGs utilizam majoritaria-mente esse argumento (23%), enquanto, para osdemais tipos de entidades, a justificativa é margi-nal ou nula.

Em relação à dupla face da accountability

societal, o argumento se mostra invertido e parti-cularmente preciso em um dos flancos, quandocomparado com os outros. Por um lado, a impor-tância conferida à intermediação perante o Estadovem associada à especificação das funções do re-presentante no lócus, ou seja, à explicitação dotipo de controle que o representante realiza ou as-pira a realizar sobre as instituições políticas. O ar-

21 Trata-se de um argumento bastante inovador. Como oargumento de serviços, corresponde claramente à famí-lia das concepções de representação substantiva, mas,nesse caso, responde de modo pleno à lógica do actingfor (Pitkin, 1985 [1967] p.123-156).

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gumento estabelece como ponto de partida a ur-gência de aliviar uma desigualdade que não é dire-tamente de renda, e sim de acesso ao Estado; issoimplica, do ponto de vista do ator, não apenas as-sumir que se possui um posicionamento privile-giado na desigual distribuição da capacidade deacesso ao Estado, como também um compromissode utilizar essa capacidade para levantar a voz da-queles que, de outra forma, não seriam escutados.Entretanto, a outra face da accountability societalé bastante vulnerável. Não existe, no argumento,nenhum indício de controle social sobre o repre-sentante, sequer sob a pressuposição de algumacoincidência substantiva ou simbólica, como ocorreno argumento da identidade. As organizações ci-vis verbalizam interesses ou opiniões de eventu-ais beneficiários, pressupondo que os propósitose eventuais efeitos de sua intermediação sejam lou-váveis ou, ao menos, publicamente defensáveis.

PERSPECTIVAS DA ACCOUNTAVILITYSOCIETAL

Os resultados examinados nestas páginasapresentam variações importantes entre as duascidades. Explorá-las exigiria outro tipo de aborda-gem, atenta às variáveis contextuais e menos preo-cupada com os deslocamentos analíticos recentesna teoria democrática. Esse esforço foi realizadoem outras oportunidades e atentou para as dife-renças genealógicas mediante o exame dos proces-sos de construção política das sociedades civis nasduas cidades (Gurza Lavalle; Houtzager; Castello2005b; Gurza Lavalle; Houtzager; Acharya 2005).22

Em geral, na Cidade do México, algumas experi-ências participativas foram desenvolvidas a partirdas administrações locais do PRI na década de 80,foram redefinidas e, em alguns aspectos, amplia-das pelos governos do PRD (Sánchez-Mejorada;Álvarez, 2002). Em poucos casos, essas experiên-cias foram institucionalizadas e introduzidas sis-

tematicamente na produção de políticas públicase, salvo raras exceções, só foram convocadas algu-mas organizações civis para participar de espaçosad hoc com funções consultivas. Na verdade, osesforços de mobilização social e de criação de no-vos atores, característicos do período de transição,não se sedimentaram em espaços ou inovaçõescapazes de resguardar institucionalmente oprotagonismo momentâneo conquistado pelas or-ganizações civis; tampouco, portanto, estimularamo desempenho de práticas de representaçãopresuntiva nem a correlativa decantação de argu-mentos justificativos precisos ou novos. Contu-do, esses esforços certamente deixaram um legadoinstitucional inédito em termos mundiais, com acriação do Instituto Federal Eleitoral, e abriramcaminho para que diferentes atores continuem dis-putando inovações institucionais para ampliar oscontroles democráticos sobre o poder público; aLei de Transparência e o Instituto Federal de Aces-so à Informação Pública (IFAI) são exemplos cla-ros disso.

Em São Paulo, as organizações civis cons-truíram novas modalidades de representação polí-tica dentro da administração pública subordinadaao poder executivo nos planos federal, estadual emunicipal. A inovação mais notável são os conse-lhos gestores de políticas públicas, cujos alicercesinstitucionais, uma vez sancionados pela Consti-tuição de 1988, sedimentaram-se no contexto pós-transição, mediante sua regulamentação eimplementação em distintas políticas setoriaisdurante os últimos quinze anos. Os governos lo-cais podem ser mais ou menos favoráveis, e atécontrários, ao funcionamento dessas modalidadesde representação política pela via das organizaçõescivis, mas, definitivamente, não está em suas mãosbanir sua existência. Além da estrutura dos conse-lhos em diferentes áreas de políticas com mandatoconstitucional, a multiplicação de fórmulas de co-gestão animadas pela reforma do Estado dos últi-mos anos e a expansão das experiências de orça-mento participativo por todo o território do Brasil– experiência que estava sendo implantada em SPno momento da investigação – vieram a reforçar as

22 Dobrowolsky e Jensom (2002) analisaram um processosemelhante, no caso da representação política exercidapor organizações de gênero no Canadá.

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funções de representação política desempenhadaspor organizações civis. A magnitude dessas novasfunções parece ter animado uma progressiva de-cantação de argumentos mas precisos de represen-tação presuntiva, assim como uma maior prolife-ração do argumento mais novo, a saber, o deintermediação.

No terreno analítico da teoria democrática,privilegiado nestas páginas, os argumentos de re-presentação presuntiva examinados expressam asjustificativas invocadas pelas distintas organizaçõescivis para sustentar publicamente a legitimidadede suas práticas de representação, apesar e, preci-samente, diante da inexistência de um componen-te sine qua non do modelo de representação polí-tica consagrado nas democracias: a autorização.Foram encontrados seis argumentos recorrentes,invocados pelas organizações civis na Cidade doMéxico e em São Paulo. Isso sugere que o conjun-to das práticas de representação exercidas por es-ses atores, incluindo o repertório de eventuaismecanismos de controle social, é, pelo menos, tãodiversificado quanto os tipos de argumentos ani-mados por essas práticas, evidenciando os custoscognitivos das posturas que emitem veredictoshomogêneos a priori sobre a (in) compatibilidadeentre a representação política democrática e as ati-vidades características das organizações civis.

Os argumentos de representação presuntivanão são invocados em proporções semelhantespelos distintos tipos de organizações civis, e exis-tem certos padrões que indicam a consistência in-terna desses argumentos. As razões que se podeminvocar, como fundamento da legitimidade, guar-dam relação com o tipo de ator ou, em outras pala-vras, os argumentos de representação presuntivanão se comportam como um repertório de lugares-comuns igualmente acessível a todas as entidades.Em vez disso, as entidades parecem forçadas a ela-borar justificativas dentro dos limites das ativida-des e papéis que definem sua especificidade fun-cional no campo das organizações civis. Isso apontaà possibilidade de generalizar resultados e dereformulá-los em níveis mais abstratos, incorpo-rando as implicações de uma sociologia

organizacional das associações civis ao campo dateoria democrática. Assim, seria possível especifi-car que características das organizações civis favo-recem efeitos desejáveis quando se envolvem emfunções de controle sobre o poder público e derepresentação de seus beneficiários, ou, nas pala-vras de Warren (2004), seria possível determinarque “sociedade civil é [ou tende a ser] boa para ademocracia”.

Dos resultados acerca das duas faces daaccountability societal serão extraídas apenas asconseqüências acerca da face do controle dosbeneficiários, isto é, relativa aos déficits ou à fran-ca inexistência de legitimidade das organizaçõescivis que exercem funções de representação. Ostipos de entidades mais tradicionais – como asassistenciais e, em menor grau, as associações debase –, cujas funções se encontram consolidadase delimitadas por uma longa história, apresentampadrões mais nítidos e concentrados; as organiza-ções civis “emergentes” ou comparativamente maisrecentes, como as ONGs, distinguem-se por apre-sentar resultados discrepantes nas duas cidades.Assim, entidades assistenciais mexicanas oupaulistanas não invocaram sequer uma vez os ar-gumentos eleitoral, de filiação ou de identidade,ao passo que apresentaram a maior concentraçãoem um só argumento: serviços. Em ambos os con-textos, as associações de base prescindiram do ar-gumento de filiação e foram, junto com as entida-des de coordenação, os atores que invocaram oargumento eleitoral. De sua parte, as entidades decoordenação respondem sozinhas pela quase tota-lidade dos argumentos de filiação citados, mas sãoas que recorrem, de modo mais equilibrado, a to-dos os argumentos. As ONGs apresentam a com-posição mais contrastante entre os dos contextos:no México, sustentam majoritariamente o argumen-to de identidade e, em São Paulo, os deintermediação e proximidade (nessa ordem).

A diversidade de argumentos invocados érelevante não apenas por evidenciar os custoscognitivos de posturas que optam por cancelar, jáde saída, a problemática da representação no uni-verso das organizações civis, como também, fun-

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damentalmente, por suas implicações para aaccountability societal na inovação democrática.Existem mecanismos formais de autorização e, porconseguinte, de sanção e de controle interno nouniverso das organizações civis, embora os doisargumentos que explicitam a presença desses me-canismos como fonte de legitimidade – eleitoral ede filiação – sejam numericamente pouco expres-sivos quando se consideram os dois contextosurbanos em seu conjunto. Apesar de a ausênciade autorização ser comum nos demais argumen-tos, neles se esgrimem reivindicações de legitimi-dade apoiadas na qualidade da representaçãoexercida ou representatividade e na ausência derepresentação de determinados grupos sociais.Cumpre lembrar que é consenso, no campo dasteorias da representação, o fato de a autorizaçãonão resolver a questão da representatividade(Pitkin, 1985 [1967]; Sartori, 1992; Manin;Prezeworki; Stokes, 1999a, 1999b); em realidade,as queixas sobre a falta de representatividade cor-rem paralelas à construção das instituições do go-verno representativo.

O argumento de identidade se baseia namesma lógica das concepções de representação,que na teoria e nos debates históricos da represen-tação política tem recebido nomes, como represen-tação sociológica, especular, descritiva, simbólica– standing for. Mais: noções de representação es-pecular também animaram, outrora, parte do de-bate político pela introdução da representação pro-porcional e pela concepção das funções do parla-mento.23 Sem dúvida, nessa perspectiva, quantomaior a coincidência esperada entre os atributosencarnados pelo representante e os interesses dorepresentado, menor a urgência de mecanismosde controle e, em última instância, de autorização;por isso, não surpreende que reivindicações de

legitimidade e propostas de inovação políticacentradas na representação de atributos substanti-vos sejam polêmicas. Todavia, a explosão da polí-tica da diferença, a extensão de expedientes de re-presentação proporcional para minoriassociodemográficas, assim como a incorporação àteoria democrática e, especificamente, às teorias darepresentação, das críticas da antropologia e dopensamento pós-moderno às categorias universais,mostram que, nas democracias contemporâneas,há espaço para afirmações de legitimidade ancora-das em posições sociais ou “perspectivas” (Young,2002) de gênero, raça e minorias, quando essasposições sociais são reconhecidas como sistemáti-ca e indesejavelmente sub-representadas ou exclu-ídas dos canais tradicionais de representação. Tra-ta-se de uma legitimidade “metaprocedimental”que, claro está, não pode se sustentar inteiramentesem formas procedimentais, sejam elas de autori-zação ou de controle. A combinação de déficits delegitimidade procedimental com fontes posicionaisde legitimidade socialmente reconhecida ajuda aentender não apenas a ambigüidade das organiza-ções civis orientadas por lógicas identitárias comrelação a seus beneficiários, mas também a domundo das instituições políticas com relação aessas organizações e aos reclamos identitários derepresentação.24

A qualidade da representação e os mecanis-mos de controle também admitem conjugação emum só argumento, como é mostrado na afirmaçãoda proximidade como fonte de legitimidade. Aproximidade não figura como elemento-chave dasconcepções e debates históricos da representaçãoe, sem dúvida, sua estirpe não é liberal. A convic-ção do valor da política de base, do trabalho lado a

23 Parte das primeiras defesas da representação proporcio-nal nos primórdios da história do parlamento concebia afunção dessa instituição política como uma reprodução,em escala, da composição social dos atributossociodemográficos relevantes em uma sociedade dada;uma espécie de miniaturização da sociedade, graças àqual as decisões poderiam ser consideradas como iguaisàquelas que os cidadãos prefeririam se houvesse condi-ções físicas e materiais para se reunir e deliberar (Pitkin,1985 [1967], 1989).

24 Um caso de destaque dessa ambigüidade ocorre com osconselheiros do Instituto Federal Eleitoral (IFE) no Mé-xico, que são eleitos pelos partidos políticos na Câmarade Deputados, privilegiando uma característica definidacomo sendo de representação simbólica, a saber, seucaráter cidadão, entendido como não-partidário. Assim,e por mais que possa parecer paradoxal, os representan-tes do governo representativo elegem representantes ci-dadãos para exercerem uma modalidade altamenteinstitucionalizada de representação presuntiva (nessecaso, imputada ou atribuída) em uma suposta relação deidentidade com os cidadãos. Agradeço a Ernesto Isunzapor me haver apresentado uma cuidadosa reflexão esserespeito.

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lado com o “povo”, foi característica da teologia daliberação na América Latina, com acentuada pre-sença no Brasil, mas também é possível rastrear ovalor da participação dentro da família das esquer-das. Apesar de seu fundo de crítica à separaçãoentre representante e representado, que, em prin-cípio, compromete a própria idéia da representa-ção, o argumento acarreta a possibilidade de quese exerçam controles sobre o representante. Aquinão existe ambigüidade com respeito à relação dasorganizações civis com seus beneficiários, e sim àsua relutância em assumir plenamente a funçãode representantes, ou seja, o compromisso de nãosubstituir os representados, e sim de ajudá-los aconstruir seu próprio protagonismo. Para além domérito desse compromisso, não é possível avan-çar demasiado com o argumento em direção a es-calas amplas de agregação de interesses, ainda queseu valor pareça inegável em micro-processos deexercício de controles locais sobre atores coletivoscom funções de representação.

As críticas e o ceticismo mais agudos frenteao crescente protagonismo das organizações civiscomo agentes de intermediação política se mos-tram pertinentes com relação a boa parte das práti-cas de representação exercidas nas duas metrópo-les aqui analisadas. A representação presuntivajustificada com o argumento de serviços, ampla-mente difundido, tem implicações perniciosas doponto de vista da teoria democrática e se asseme-lha a velhos argumentos de legitimidade esgrimi-dos pelos regimes populistas na América Latina.Não existe accountability possível quando a con-cessão de benefícios se aproxima da dádiva, e orepresentante emerge como outorgante semintermediações. Cumpre mencionar, para evitarmal-entendidos, que a filantropia e a beneficênciadesempenharam historicamente um papel relevanteem sociedades desiguais – como o Brasil e o Méxi-co –, mas as reservas se referem à projeção de suascaracterísticas ao mundo da política, no qual cida-dãos, por intermediação de outros, realizam fun-ções de controle social sobre o poder público.

O argumento mais novo invoca a falta derepresentação de determinados grupos sociais, mas,

como seria de se esperar, não possui mecanismosde controle nem delimitação clara sobre suas pró-prias fronteiras. Embora careça implícita ou expli-citamente de mecanismos de controle pelosbeneficiários, o argumento da intermediação nãopressupõe sua anulação lógica como ocorre no casoanterior, dado que sua peculiaridade está baseadano reconhecimento do exercício de funções deintermediação explicitamente políticas perante opoder público e em nome de segmentos da popu-lação cuja voz é pouco escutada. Esse argumentomostra com nitidez a questão da accountability

societal: por um lado, afirma o valor de uma repre-sentação especificamente política exercida por or-ganizações civis, admitindo a distância entre re-presentantes e representados, e a importância deter acesso ao Estado; por outro, a incidência empolíticas públicas e o controle societal efetuado poressas organizações sobre o poder público ocorremde modo “solto” em relação aos eventuaisbeneficiários, seja pela inexistência de autorizaçãoou pela precariedade ou franca ausência de meca-nismos capazes de sustentar o controle social so-bre sua atuação.

Em suma, a questão da accountability

societal não pode ser ignorada, mas não aceita res-postas fáceis nem conclusões peremptórias de con-denação ou defesa da chamada sociedade civil.Dentro do universo das organizações civis, aque-las que exercem funções de controle societal sobreo poder público o fazem sob um manto desuspeição e, nesse sentido, o uso reiterado demecanismos de controle social ou interno sobre asorganizações pode eventualmente surgir como fontealternativa de legitimidade, diante da ausência deexpedientes de autorização. Aqui, como no cará-ter periódico ou em intervalos regulares das elei-ções (Manin, 1998), o tempo é a variável funda-mental, pois a reiteração do controle por parte dosbeneficiários implica alguma modalidade deanuência sobre a atividade do controlado.

Além do tempo, ou seja, dos efeitos de an-tecipação induzidos pela previsibilidade de even-tuais sanções associadas ao exercício de controlescíclicos ou permanentes, os argumentos comuns

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encontrados na Cidade do México e em São Paulosugerem que é imprescindível conjugar três requi-sitos. Primeiro, no exercício da representaçãopresuntiva e, portanto, desprovida de autorização,o lócus da representação não pode ser omitido,ainda que as funções que nele se exercem possampermanecer subentendidas. Segundo, mesmo comníveis distintos de formalização e com resultadosincertos, é preciso contar com dispositivos de apro-ximação simbólica e física entre organizações ebeneficiários, dispositivos que, por sua vez, pos-sam abrir caminho à eventual estabilização de me-canismos de controle e sanção. Terceiro, indepen-dentemente de que mecanismos sejam esses e dequal venha a ser sua eficácia, é imprescindível pres-supor que sua ativação estará em condições deincidir, em algum grau, sobre a atuação do repre-sentante no lócus da representação. Trata-se derequisitos mínimos para tornar compatível a re-presentação política exercida por organizações ci-vis com princípios básicos da democracia, de modoque sua conjugação permita ou, ao menos, tornedesejável, a projeção da atuação das organizaçõescivis para o plano do exercício de controles societaissobre o poder público em contextos institucionaisdemocráticos.

(Recebido para publicação em janeiro de 2008)(Aceito em março de 2008)

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RESUMOS, ABSTRACTS, RÉSUMÉS

SOCIEDADE CIVIL, REPRESENTAÇÃO E ADUPLA FACE DA ACCOUNTABILITY:

cidade do México e São Paulo

Adrian Gurza LavalleGraziela Castello

Organizações civis desempenham,de modo crescente, funções de repre-sentação política. A análise das condi-ções de legitimidade das novas práticasde representação é crucial para a inova-ção e teoria democráticas. A partir daaccountability, assumida como compo-nente sine qua non da representaçãodemocrática e como estratégia de pes-

CIVIL SOCIETY, REPRESENTATION ANDTHE DOUBLE FACE OF ACCOUNTABILITY:

México city and São Paulo

Adrian Gurza LavalleGraziela Castello

Civil organizations carry out,increasingly, functions of politicalrepresentation. The analysis of theconditions of legitimacy of the newrepresentation practices is crucial for thedemocratic innovation and theory.Starting from the accountability,assumed as a sine qua non componentof the democratic representation and as

LA SOCIÉTÉ CIVILE, LA REPRÉSENTATIONET LES DEUX CÔTÉS DE

L’ACCOUNTABILITY: México et São Paulo

Adrian Gurza LavalleGraziela Castello

Les organisations civilesdéveloppent de plus en plus desfonctions de représentation politique.L’analyse des conditions de légitimitédes nouvelles pratiques dereprésentation est devenue crucialeautantt pour l’innovation que pour lathéorie démocratiques. En partant duprincipe que l’accountability est un

quisa, este artigo (i) examinaempiricamente (com base em resulta-dos de surveys) as noções de represen-tação existentes no seio das organiza-ções civis que assumem funções de re-presentação na Cidade do México e emSão Paulo, e (ii) avalia seus mecanis-mos internos de accountability e suasfunções de controle sobre o poder pú-blico do ponto de vista da teoria demo-crática.

PALAVRAS-CHAVE: sociedade civil, represen-tação, accountability, legitimidade.

research strategy, this paper (i) exami-nes empirically (based in surveysresults) the existing representationnotions among the civil organizationsthat assume representative functionsin Mexico City and in São Paulo, and(ii) it evaluates their internalmechanisms of accountability and theircontrol functions on public governmentfrom the point of view of the democratictheory.

KEYWORDS: civil society, representation,accountability, legitimacy.

élément sine qua non de lareprésentation démocratique et unestratégie de recherche, : (i) on analyse,dans cet article, de manière empirique(sur les bases des résultats des surveys),les notions de représentation quiexistent au sein des organisations civilesassumant des fonctions dereprésentation à Mexico et à Sao Pauloet (ii) on évalue leurs mécanismes in-ternes d’accountability ainsi que leurcontrôle sur les pouvoirs publics, dupoint de vue de la théorie démocratique.

MOTS-CLÉS: société civile, représentation,accountability, légitimité.