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ISSN 2317-0158 8ª edição Segundo Semestre II-2018 ABRAHAM BRAGANÇA DE VASCONCELLOS WEINTRAUB MATHEUS GHITTI BAIONE WHISTLEBLOWERS: UM INSTRUMENTO MODERNO DE COMBATE ÀS FRAUDES E O PAPEL DO CONTADOR MÁRCIO ANTONIO ROCHA SUBSÍDIOS AO DEBATE PARA A IMPLANTAÇÃO DOS PROGRAMAS DE WHISTLEBLOWER NO BRASIL (PARTE I) ANDREI FERREIRA FREDES, GABRIEL DEBASTIANI DE MELLO ANÁLISE SOBRE A PEC 287/16: O PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DA DIGNIDADE HUMANA EM FACE DAS ALTERAÇÕES NAS REGRAS DE CONCESSÃO DA APOSENTADORIA POR IDADE AVANÇADA DO REGIME GERAL DE PREVIDÊNCIA SOCIAL ELISA MARIA CORREA SILVA A DESAPOSENTAÇÃO E A RELAÇÃO CONTRIBUIÇÃO/BENEFÍCIO RAFAEL VASCONCELOS PORTO TEORIA GERAL DO RISCO SOCIAL ALFREDO SANTANNA JÚNIOR, ANTONIO CORDEIRO FILHO A REFORMA DA PREVIDÊNCIA DO SETOR PÚBLICO: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS MATTEO AVOGARO NEW ITALIAN EFFORTS AGAINST FALSE INDEPENDENT WORK AUGUSTO CESAR LEAL, GABRIEL FRANCISCO ZACHI ROMEU, GUILHERME OLIVEIRA POUSO, GUSTAVO LUZ ROMANO, MATHEUS DOS, SANTOS ALVES OS IMPACTOS DA CORRUPÇÃO NOS FUNDOS DE PENSÃO

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ISSN 2317-0158

8ª edição Segundo Semestre II-2018

ABRAHAM BRAGANÇA DE VASCONCELLOS WEINTRAUB MATHEUS GHITTI BAIONE

WHISTLEBLOWERS: UM INSTRUMENTO MODERNO DE COMBATE ÀS FRAUDES E O

PAPEL DO CONTADOR

MÁRCIO ANTONIO ROCHA SUBSÍDIOS AO DEBATE PARA A IMPLANTAÇÃO DOS PROGRAMAS DE WHISTLEBLOWER

NO BRASIL (PARTE I)

ANDREI FERREIRA FREDES, GABRIEL DEBASTIANI DE MELLO ANÁLISE SOBRE A PEC 287/16: O PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DA DIGNIDADE HUMANA

EM FACE DAS ALTERAÇÕES NAS REGRAS DE CONCESSÃO DA APOSENTADORIA POR

IDADE AVANÇADA DO REGIME GERAL DE PREVIDÊNCIA SOCIAL

ELISA MARIA CORREA SILVA A DESAPOSENTAÇÃO E A RELAÇÃO CONTRIBUIÇÃO/BENEFÍCIO

RAFAEL VASCONCELOS PORTO TEORIA GERAL DO RISCO SOCIAL

ALFREDO SANT ’ANNA JÚNIOR , ANTONIO CORDEIRO FILHO A REFORMA DA PREVIDÊNCIA DO SETOR PÚBLICO: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS

MATTEO AVOGARO NEW ITALIAN EFFORTS AGAINST FALSE INDEPENDENT WORK

AUGUSTO CESAR LEAL , GABRIEL FRANCISCO ZACHI ROMEU , GUILHERME OLIVEIRA POUSO, GUSTAVO LUZ ROMANO , MATHEUS DOS, SANTOS ALVES

OS IMPACTOS DA CORRUPÇÃO NOS FUNDOS DE PENSÃO

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Revista Brasileira de Previdência Atuária, Contabilidade e Direito Previdenciário

ISSN 2317-0158 Rua Angélica, nº 100 - Jardim das Flores Cidade: Osasco - SP - Brasil - CEP: 06110-295 [email protected] EDITOR CIENTÍFICO Giuseppe Ludovico Università degli Studi di Milano (Itália) [email protected] EDITOR ADJUNTO Arthur Bragança de Vasconcellos Weintraub Universidade Federal de São Paulo [email protected] CONSELHO EDITORIAL Arthur Bragança de Vasconcellos Weintraub - Universidade Federal de São Paulo Ari Kaplan - University of Toronto (Canadá) Auro Hadano Tanaka - Centro de Estudos em Seguridade – CES Bernando Bissoto Queiroz de Moraes - Universidade de São Paulo Claudio Palavecino Cáceres - Universidad de Chile (Chile) Dan Rodrigues Levy - Universidade Federal de São Paulo Giselle Datz - Virginia Polytechnic Institute and State University (EUA) Giuseppe Ludovico - Università degli Studi di Milano (Itália) Heloisa Hollnagel - Universidade Federal de São Paulo José Luiz Munhoz - Instituto Brasileiro de Governança Corporativa Larry W. Beeferman - Harvard Law School (EUA) Luciano de Franceschi Nunes - Centro de Estudos em Seguridade - CES Luis Hernan Contreras Pinochet - Universidade Federal de São Paulo Michele Squeglia - Università degli Studi di Milano (Itália) Mitch Frazer - University of Toronto (Canadá) Nena Gerusa Cei - Universidade Federal de São Paulo Ricardo Hirata Ikeda - Universidade Federal de São Paulo Túlio de Oliveira Massoni - Universidade Federal de São Paulo Zélia Luiza Pierdoná - Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo EQUIPE EDITORIAL Alessandra Ingrao, Gionata Golo Cavallini, Matteo Avogaro A Revista Brasileira de Previdência é uma publicação digital e gratuita. A partir de 2018 a revista passa a ser semestral. Os trabalhos submetidos à apreciação da Revista devem ser inéditos (nacional e internacionalmente), não estando sob consideração para publicação em qualquer outro veículo de divulgação. A revista segue as diretrizes da Comissão de Integridade de Pesquisa do CNPq (07/10/2011). Todos os artigos são avaliados em processo duplo-cego (blind review) Normas e orientações editoriais sao publicadas no site da Revista

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SUMÁRIO EDITORIAL p. 1 ABRAHAM BRAGANÇA DE VASCONCELLOS WEINTRAUB , MATHEUS GHITTI BAIONE WHISTLEBLOWERS: UM INSTRUMENTO MODERNO DE COMBATE ÀS FRAUDES E O PAPEL DO

CONTADOR p. 3

MÁRCIO ANTONIO ROCHA SUBSÍDIOS AO DEBATE PARA A IMPLANTAÇÃO DOS PROGRAMAS DE WHISTLEBLOWER NO BRASIL

(PARTE I) p. 12

ANDREI FERREIRA FREDES, GABRIEL DEBASTIANI DE MELLO ANÁLISE SOBRE A PEC 287/16: O PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DA DIGNIDADE HUMANA EM FACE

DAS ALTERAÇÕES NAS REGRAS DE CONCESSÃO DA APOSENTADORIA POR IDADE AVANÇADA DO

REGIME GERAL DE PREVIDÊNCIA SOCIAL p. 52

ELISA MARIA CORREA SILVA A DESAPOSENTAÇÃO E A RELAÇÃO CONTRIBUIÇÃO/BENEFÍCIO p. 73

RAFAEL VASCONCELOS PORTO TEORIA GERAL DO RISCO SOCIAL p. 118

ALFREDO SANT ’ANNA JÚNIOR , ANTONIO CORDEIRO FILHO A REFORMA DA PREVIDÊNCIA DO SETOR PÚBLICO: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS p. 158

MATTEO AVOGARO NEW ITALIAN EFFORTS AGAINST FALSE INDEPENDENT WORK p. 187 AUGUSTO CESAR LEAL , GABRIEL FRANCISCO ZACHI ROMEU , GUILHERME OLIVEIRA

POUSO, GUSTAVO LUZ ROMANO , MATHEUS DOS, SANTOS ALVES OS IMPACTOS DA CORRUPÇÃO NOS FUNDOS DE PENSÃO p. 211

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EDITORIAL

Dando continuidade à nova sistemática de duas publicações anuais, diante do aumento

de níveis da Revista Brasileira de Previdência nos rankings qualificados, temos a honra de

apresentar esta 2ª edição de 2018. Inserida nos contextos da governança atuarial e da proteção

previdenciária, a presente edição tem artigos científicos que abordam questões de auditoria,

controladoria e fiscalização contra corrupção no Brasil, previdenciais ou não, além de âmbito

italiano de fraude contábil/atuarial na rubrica de qualificação de segurado/trabalhador.

Das lavras de Abraham Bragança De Vasconcellos Weintraub, Matheus Ghitti Baione,

o artigo “Whistleblowers: um instrumento moderno de combate às fraudes e o papel do

contador”, e de Márcio Antonio Rocha, “Subsídios ao debate para a implantação dos

programas de whistleblower no Brasil”, a edição enfatiza a questão da relevância da figura do

whistleblower na esfera de controle de fraudes e corrupção em condições diversas de

contabilidade e direito atuarial, inclusive na área de gerência do risco de crimes.

De Andrei Ferreira Fredes, Gabriel Debastiani De Mello, no artigo “Análise sobre a

PEC 287/16: o princípio fundamental da dignidade humana em face das alterações nas

regras de concessão da aposentadoria por idade avançada do regime geral de previdência

social” temos as reverberações de lege ferendum nas recentes discussões técnicas a respeito

das reformas do regime de repartição no Brasil.

De Elisa Maria Correa Silva, o tema “A desaposentação e a relação

contribuição/benefício”, apesar da recente decisão do STF sobre desaposentação, ainda é

importante no sentido da discussão de um tema que permanece sendo apresentado inclusive

em demandas judiciais.

Do autor Rafael Vasconcelos Porto o artigo “Teoria geral do risco social” apresenta o

tema tão caro a Paul Durand, e muito ligado ao contrato social. Em verdade, por se tratar de

gestão social de risco, as medidas estatais de proteção dos direitos sociais estão totalmente

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ligadas ao direito atuarial, seara que diferencia a Revista Brasileira de Previdência até mesmo

internacionalmente.

De Alfredo Sant’Anna Júnior e Antonio Cordeiro Filho, “A reforma da previdência do

setor público: problemas e perspectivas” denota o real impacto do sistema previdencial

brasileiro que gera maior déficit atuarial para o menor grupo de segurados, inclusive tendo o

subgrupo de privilegiados que mais agridem a responsabilidade intergerações inerente ao

PAYG system.

Da lavra de Matteo Avogaro o tema “New italian efforts against false independent

work” a importante constatação de fraude em enquadramento formal de trabalhadores para

fins de burlar a rubrica real de tratamento contábil/atuarial de trabalhadores/segurados.

Finalmente, de autoria de Augusto Cesar Leal, Gabriel Francisco Zachi Romeu,

Guilherme Oliveira Pouso, Gustavo Luz Romano, Matheus Dos Santos Alves, “Os impactos

da corrupção nos fundos de pensão”, tema que mostra parte da monstruosidade do ocorrido

nos fundos de pensão brasileiros e que foi explicitada na operação greenfield, com rombos e

déficits bilionário que acabaram por onerar não somente os participantes e assistidos, mas a

população em geral.

São Paulo-Milão, junho de 2018 OS DIRETORES DA REVISTA

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WHISTLEBLOWERS: UM INSTRUMENTO MODERNO DE COMBATE À S

FRAUDES E O PAPEL DO CONTADOR∗

ABRAHAM BRAGANÇA DE VASCONCELLOS WEINTRAUB Professor de Economia e Finanças da UNIFESP e pesquisador do CES

MATHEUS GHITTI BAIONE

Graduando do curso de Ciências Contábeis na UNIFESP

ABSTRACT : The current global scenario is full of scandals and cases of corruption in our

society. Whistleblowers emerge as the most viable alternative to fight against corporate and goverment

transgressions drawing attention of authorities and media in general. This paper is based on the latest

disclosured Brazilian cases, where several executives of public and governamental companies are

involved in investigations of corrupution and fraud. Its objective is to analyse the Whisteblowers

American program and its future implementation in Brazil.

Key–Words: Whistleblowers, Corruption, Creative Accounting, Compliance, Brazil

RESUMO: Em um cenário global de escândalos corporativos e corrupção, os whistleblowers

ganham a atenção de autoridades e da mídia em geral, mostrando-se uma alternativa viável para

combater transgressões em empresas e no governo. Este artigo tem como cenário o atual momento

brasileiro, onde uma série de empresários e políticos são alvos de investigações sobre corrupção e

fraudes, buscando mostrar a aplicabilidade do sistema americano de Whistleblowers e uma futura

implementação no Brasil.

Palavras – Chave: Whistleblowers, Escândalos, Corrupção, Contabilidade Criativa,

Compliance.

∗ Artigo recebido em 29/11/2017 - Aprovado em 15/12/2017

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Introdução

O termo whistleblower refere-se a qualquer pessoa que torna público algo ilícito que esta

ocorrendo de forma secreta. Os denunciantes recebem proteção e incentivos financeiros por sua

cooperação. Esse tipo jurídico caracteriza-se, diferentemente da delação premiada, pelo individuo não

ter participado das irregularidades, apenas possuir informações privilegiadas que podem ajudar as

autoridades competentes a apurar as infrações.

Em um contexto global, notamos que fraudes e corrupção têm se tornado algo constante.

Executivos de diversos segmentos cometem transgressões, muitas vezes recorrendo à contabilidade

criativa, ou simplesmente ao pagamento de propina, para ter favorecimento de diversos tipos no meio

corporativo.

O desafio no cenário brasileiro é ainda mais árduo, sendo que nos últimos anos diversos casos de

corrupção e crimes patrimoniais vieram à tona, abalando a credibilidade do governo e das empresas

nacionais.

Sendo assim, a lei americana de Whistleblowing pode servir de base para uma possível

regulamentação no Brasil, e é nesse sentido que este artigo visa contribuir para o cenário nacional,

analisando a viabilidade de implementação desse modelo.

O artigo buscará conciliar a abordagem teórica às aplicações práticas recentemente observadas

em casos notórios no Brasil e no exterior, analisando a eficiência desse novo instrumento no combate a

fraudes e a corrupção. Todos os casos mencionados serão corroborados por evidências empíricas.

Origem do termo

A palavra Whistleblower é a junção do termo ‘’whistle’’, que em inglês significa apito, com o

termo ‘’blower’’, de significado assoprador. Temos assim o assoprador de apito, termo que faz alusão

ao juiz de futebol que apita quando algo errado esta ocorrendo dentro de campo. Na Comunidade

Jurídica Internacional, refere-se a toda pessoa que alerta sobre um ato ilícito que está acontecendo.

A prática do Whistleblowing nos conduz ao final século XIX, onde o governo britânico, na

forma de polícia desarmada, assoprava o apito para que os cidadãos fossem alertados e pudessem

ajudar na captura de batedores de carteira e outros pequenos infratores.

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Essa atividade foi aderida pelos comerciantes locais, sendo que alguns passaram a carregar

apitos consigo. Temos então um dos primeiros exemplos de parceria público-privada, onde os

comerciantes podiam avisar o governo de delitos e vice-versa.

O WB cruzou o atlântico e chegou aos Estados Unidos da América e por volta dos anos 1970

atribui uma conotação positiva, caracterizado por pessoas de moral e integridade que reportavam

atividades ilegais às autoridades, sacrificando muitas vezes suas vidas pessoais.

Mercados de Capitais

No âmbito dos mercados de capitais destaca-se a Securities and Exchange Commission (SEC)

dos EUA, sendo esta uma agência federal que é responsável pela aplicação das leis de títulos federais e

a regulação do setor de valores mobiliários. Estabelecida em 1934 pelo Congresso americano, foi dada

a SEC a incumbência de regular o mercado de ações e prevenir abusos corporativos, protegendo

investidores, mantendo mercados ordenados e eficientes.

No Brasil, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) foi estabelecida em 1976 dentro do

mesmo escopo, sendo uma entidade autárquica em regime especial, vinculada ao Ministério da

Fazenda, com personalidade jurídica e patrimônio próprios, dotada de autoridade administrativa

independente com o objetivo de fiscalizar, normatizar, disciplinar e desenvolver o mercado de valores

mobiliários nacional.

Dentre as ferramentas institucionais da SEC, destaca-se o escritório de Whistleblower, que foi

criado para gerenciar o programa de denúncias dentro da SEC, sendo que esta acredita que com esse

recurso é possível identificar fraudes e outras violações em um prazo muito mais curto, preservando

assim a integridade do mercado de capitais americano e minimizando perdas para os investidores.

A apresentação de uma denúncia é aberta, e qualquer pessoa pode participar. As denúncias são

feitas online ou por correio, inclusive podendo ser anônimas, sendo que nesse caso precisará ser

representado por um advogado. A identidade do WB é protegida nos termos da lei.

Uma comissão avalia a contribuição que aquela denúncia teve na solução do caso, para dessa

forma definir o valor da recompensa, que varia de 10% a 30% do valor cobrado do contraventor. O

dinheiro vem de um fundo especial, estabelecido pelo Congresso, denominado Investor Protection

Fund, que armazena recursos cobrados de violadores das leis. É importante ressaltar que nenhum valor

é retido dos investidores para pagamentos das recompensas.

Desde 2011, quando o escritório de whistleblower da SEC foi criado, já foram pagos mais de

154 milhões de dólares em recompensas. O WB é um instrumento moderno de combate a ilegalidades,

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além de ter o potencial de trazer mais informações, a denúncia pode interromper o processo criminoso

antes que ele tome maiores proporções. Como vantagem adicional, o Whistleblower não é um

criminoso, e sim uma pessoa que tem informações úteis sobre atos ilícitos e está disposta a apresentar

uma denúncia para acabar com o esquema criminoso sobre o qual ela tem conhecimento.

Casos notórios

Uma instituição financeira que já foi outrora considerada um dos principais players mundiais do

mercado de serviços bancários e financeiros quebrou em 2008. Trata-se do Lehman Brothers, banco

norte-americano que protagonizou a maior falência da história daquele país.

Seus problemas tiveram origem no subprime, crédito de alto risco concedido a um tomador que

não oferece garantias suficientes. Esse tipo de crédito cobra altos juros, o que beneficiou os

investidores do banco em um primeiro momento, mas alastrou prejuízos quando os tomadores

deixaram de pagar suas dívidas.

Outro fator foi decisivo para a bancarrota do Lehman. Sua contabilidade usava um artifício

contábil que fazia parecer que ele era muito menos dependente de dividas do que realmente era.

Denominado REPO 105 (Repurchase Agreement), o truque permitia que a empresa reclassificasse um

empréstimo de curto prazo como venda, para tornar o balanço mais atraente para os investidores.

Estima-se que foram movimentados nas operações cerca de US$ 50 bilhões

A consequência para as ações da companhia foram alarmantes. Elas amargaram uma queda

vertiginosa e, após o aparecimento do problema e a desistência das instituições financeiras que na

época cogitaram assumir o controle da instituição. Com isso, além da não intervenção do governo dos

EUA, o banco declarou falência.

A maior empresa petrolífera do Brasil e uma das maiores do mundo, considerada por muitos

anos como um dos grandes orgulhos nacionais, a Petrobrás foi dilapidada pelo maior escândalo de

corrupção já registrado na história da humanidade.

O caso, que está sendo investigado pela Polícia Federal, envolve políticos e grandes

empreiteiras. O esquema funcionava com a cobrança de propina para facilitar as negociações das

empreiteiras com a Petrobras e a aquisição de licitações para a construção das grandes obras. Os

contratos entre as empreiteiras e demais empresas que faziam parte do acordo eram superfaturados

para facilitar o desvio de dinheiro da estatal, que era recebido pelos doleiros e outros operadores

responsáveis por repassá-lo a políticos e funcionários envolvidos no esquema criminoso.

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Outros fatores fazem parte do cenário trágico em que a estatal brasileira se afundou. Além da

corrupção, a gestão temerária trouxe prejuízos bilionários para a empresa. Foram feitos investimentos

superestimados, com previsão de rentabilidade inviável, e decisões foram tomadas sem o devido

suporte em análises estruturadas de risco. O uso político também participou do quadro negativo da

companhia. Vários apadrinhados políticos foram alocados em cargos de extrema importância na

corporação e, no governo da ex-presidente Dilma Rousseff, os preços dos combustíveis foram

represados, em uma tentativa errônea de conter a inflação no país de forma heterodoxa.

Cenário Nacional

No Brasil, foi dado o primeiro passo no sentido de criar um ambiente jurídico para os

whistleblowers, com a iniciativa do Deputado Onyx Lorenzoni, que criou o Projeto de Lei que institui

o Programa de Incentivo à Revelação de Informações de Interesse Público.

O objetivo da proposta é estimular as pessoas que tenham conhecimento de irregularidades ou

crimes a efetivar uma denúncia, podendo ser recompensadas financeiramente.

A lei não somente cita a recompensa, mas também deixa claro como deve ser feita a denúncia, a

quem deve ser endereçada e a obrigatoriedade de medidas necessárias para assegurar a integridade

física e psicológica do denunciante, assim como sua estabilidade profissional. Outro ponto destacado

na Lei é a garantia do sigilo da identidade do whistleblower, impedindo a divulgação de informações

que identifiquem o autor.

Da mesma forma, também está contemplada a obrigatoriedade para que os agentes públicos

revelem as informações de interesse público que tenham conhecimento e guardem relação direta e

indireta com prática de ato ilícito ou de omissão, por outro agente público.

Segundo o autor do projeto, a deficiência da legislação brasileira sobre a matéria é notória, não

podendo mais o legislador ignorá-la. O objetivo da proposição é introduzir no ordenamento jurídico

brasileiro, instrumentos capazes de fomentar a revelação de informações em prol do interesse público,

a fim permitir ou facilitar a apuração de atos de improbidade administrativa e de ilícitos penais.

Vale ressaltar que a medida não geraria qualquer tipo de ônus financeiro ao Estado, e ainda

estimularia a restauração do patrimônio público lesado. Com a sua aprovação, o Estado passa a ter um

forte aliado, capaz de fornecer informações que, sem o sistema de incentivo e proteção, dificilmente

seriam obtidas de forma espontânea.

O que existe hoje no Brasil é o instrumento denominado delação premiada, que gerou ganhos

expressivos ao combate da corrupção. Entretanto esse artifício legal não é perfeito e encontra algumas

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limitações, baseando-se em pessoas que cometeram um delito e teriam suas penas reduzidas, o que

gera uma discussão se é realmente ético e justo o caminho de premiar um criminoso e traidor, pois o

mesmo teria que entregar seus colegas de crime.

A honestidade e o papel do contador

A palavra honestidade tem sua origem no Latim, sendo proveniente de honestus, que significa

respeitado, e de honos, que tem como significado honra, dignidade e reputação. Em linhas gerais, ela

define a qualidade da pessoa que é verdadeira, que demonstra honradez e age conforme os princípios

da moral vigente.

A honestidade faz com que o ser humano aja com sinceridade consigo próprio e com os outros,

sendo um dos valores fundamentais da sociedade. O dano que uma pessoa desonesta na sociedade

pode causar aos seus semelhantes é incalculável.

No Brasil existe um agravante em relação a essa situação. Somos conhecidos pelo “jeitinho

brasileiro” e pela cultura de sempre tentar levar vantagem, que por vezes são contraditórios aos

princípios de honestidade. Muitas vezes o bem publico, ao invés de ser tratado com se pertencesse a

todos, é encarado com algo sem um dono definido.

O conceito também é válido para as instituições, que devem trabalhar com a verdade, sem

dissimulações. Uma empresa honesta é aquela que não aceita condições que não sejam verdadeiras,

que não desmerece quem nela confia e que pauta sua atuação nas leis e traduz isso em seus registros

contábeis.

Ainda em um conceito mais amplo da honestidade, todos devem tratar aqueles que se encontram

em um escala social inferior da mesma forma que gostariam de ser tratados por alguém. Extrapolando

para o ambiente corporativo, é papel da empresa zelar pelos acionistas minoritários e todas as pessoas

e empresas que têm interesses diretos ou indiretos com aquela corporação.

Em se tratando de uma empresa, destaca-se o papel da contabilidade e a responsabilidade do

contador no que tange o registro fidedigno de informações de suas atividades.

O surgimento e a evolução da contabilidade confundem-se com o desenvolvimento da

humanidade. Ela origina-se da necessidade social de proteção à posse e de perpetuação e interpretação

dos fatos ocorridos e aprimorou-se de acordo com as necessidades de cada período histórico.

Atualmente a contabilidade cada vez mais desempenha um papel importante na vida das

empresas. As grandes organizações não fazem somente a contabilidade local, mas seguem padrões

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internacionais, visando à transparência e o entendimento das suas operações, o que torna cada vez

mais imprescindível a veracidade das informações demonstradas.

O profissional da contabilidade conta com O Código de Ética Profissional do Contador (CEPC),

documento que baliza as suas atividades cotidianas. Nele está presente o que pode ou não ser feito

pelo contador, tanto em relação ao seu trabalho como perante aos seus colegas de profissão.

A globalização do mundo moderno permite um fluxo de investimento muito grande, em especial

nas empresas de capital aberto. O contador desempenha um papel crucial no sentido de evitar o

cometimento de infrações e de condutas antiéticas e está relacionado com a confiança que nele é

depositada perante o bem de terceiros e a manutenção de seus direitos.

Conclusão

O programa de Whistleblower, já utilizado com sucesso em outros países, se mostra uma

ferramenta imprescindível para aumentar a credibilidade da economia brasileira, viabilizando não

somente a maior entrada de capital estrangeiro no país, mas, principalmente, o desenvolvimento de

uma cultura de poupadores e investidores individuais brasileiros. Esse segundo grupo, caso fosse

significativamente grande, representaria a liberdade de nosso país em relação ao fluxo financeiro

internacional. Infelizmente, foram os pequenos investidores brasileiros os mais prejudicados, dado que

não puderam vender suas ações. Muitos trabalhadores, que acreditaram no “projeto” da Petrobrás,

alocaram suas economias presas no FGTS em ações da Petrobrás durante o Governo do presidente

Luis Inácio Lula da Silva. O resultado foi desastroso.

Mais recentemente, a delação premiada, atual mecanismo de combate a fraudes e corrupção,

apresenta certo desgaste perante a sociedade, tendo em vista os grandes valores desviados e o

abrandamento excessivo das penas imputadas aos infratores. Além disso, muitas fraudes estão bem

estruturadas dentro das corporações, o que dificulta sua identificação mesmo em processos de

auditorias externas e somente uma denúncia poderia dar pistas para o seu desvendamento.

O WB, um programa amplo que conta com a participação de qualquer pessoa que tenha

informações, é um instrumento único que pode trazer benefícios incalculáveis, antecipando a

intervenção das autoridades em situações de desvios de conduta. Com o papel de sempre agir em favor

do interesse público, o contador muitas vezes se encontra em situações contraditórias e terá no

programa de Whistleblower um caminho legal e seguro para encaminhamento de denúncias sobre os

malfeitos que ele tem conhecimento.

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Em um país onde a cada dia surgem maus exemplos e a honestidade é uma virtude pouco

valorizada e cultivada, um instrumento como esse pode mudar o rumo da história, pois ser honesto

continuará sendo uma obrigação, entretanto lutar pela honestidade passará a valer a pena.

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SUBSÍDIOS AO DEBATE PARA A IMPLANTAÇÃO DOS PROGRAMA S DE

WHISTLEBLOWER NO BRASIL ∗

(PARTE I)

MÁRCIO ANTONIO ROCHA Desembargador Federal do TRF4

Coordenador da Ação 4 sobre whistleblower Enccla em 2016

Apresentação

O presente estudo visa a complementar os trabalhos desenvolvidos pela Estratégia Nacional de

Combate à Corrupção – Enccla, em sua Ação nº 4, do ano de 2016, fornecendo subsídios para o debate

sobre a adoção de programas de whistleblower no Brasil. A necessidade de estudos para adoção de

programas de whistleblower no Brasil foi percebida na XIII Reunião Plenária da Estratégia Nacional

de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro, Enccla 2016, Fortaleza-CE, 23 a 26 de novembro

de 2015. Em função disso, no curso do ano de 2016, sob a coordenação da Associação dos Juízes

Federais do Brasil, foram feitos estudos dos projetos de lei existentes no Congresso Nacional e das

melhores práticas internacionais sobre o tema, com a realização de seminário internacional sobre o

tema whistleblower, em Florianópolis, no período de 19 a 20 de setembro de 2016, e, por fim, foi

elaborado um anteprojeto de lei, contemplando as melhores proposições existentes no Congresso

Nacional e as contribuições, experiências e expectativas das instituições nacionais, buscando-se, ao

fim, propor ao Congresso Nacional um anteprojeto que englobe amplamente os interesses

institucionais. A ação contou com a colaboração das seguintes entidades: Associação Brasileira de

Inteligência, Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal, Advocacia-Geral da União,

Associação dos Magistrados do Rio de Janeiro, Associação Nacional dos Procuradores da República,

Conselho de Defesa Econômica, Controladoria-Geral da União, Conselho da Justiça Federal, Conselho

Nacional do Ministério Público, Comissão de Valores Mobiliários, Departamento de Polícia Federal,

Grupo Nacional de Combate às Organizações Criminosas, Ministério Público Federal, Ministério

Público do Estado de São Paulo, Ministério das Relações Exteriores, Receita Federal do Brasil e

∗ Artigo recebido em 1/11/2017 - Aprovado em 6/11/2017

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Tribunal de Contas da União. O presente estudo é de autoria do Coordenador da Ação 4 e pode não

expressar, necessariamente, a opinião pessoal das autoridades integrantes das instituições

colaboradoras mencionadas, bem como a opinião pessoal dos especialistas internacionais que

integraram o seminário.

Introdução

O sistema jurídico brasileiro não apresenta codificada a figura do whistleblower, conforme

conhecido na comunidade jurídica internacional. A adoção desse conceito passa por diversas

dificuldades, que se iniciam com a própria tradução do termo e vão ao final desafiar o legislador na

construção de um “programa de whistleblower” brasileiro. Já estando os programas de whistleblower

previstos em instrumentos internacionais e em codificações de vários países, têm-se, na elaboração de

uma legislação brasileira, o conforto de não sermos os pioneiros e o desconforto de não encontrarmos

escusas para cometer erros já outrora superados. Assim, a prudência indica a necessidade de serem

aproveitadas essas experiências internacionais, a fim de serem colhidas, desde o início, as melhores.

Essas experiências revelam uma séria complexidade do tema e informam com lucidez que tais

programas representam, no plano individual, o asseguramento do pleno exercício dos direitos

humanos, na perspectiva do direito de livre manifestação e de participação junto à administração

pública, e, no plano social, ferramentas em prol do interesse público e da sociedade no combate à

corrupção, a fraudes públicas e a irregularidades setoriais. A implantação de tais programas passa pelo

estabelecimento de regras claras para o recebimento de informações e, principalmente, para a proteção

do whistleblower. Este estudo visa, sem a pretensão de exaurir o tema, a reunir, na visão do autor, as

mais importantes perspectivas do tema, fomentando assim o debate e a pesquisa do assunto.

O termo whistleblower

Não existe uma tradução adequada para o português do termo “whistleblower”, segundo seu uso

na comunidade jurídica internacional. Literalmente, representa a união das palavras “apito” (whistle)

(+) “soprador” (blower).1 Ou seja, o termo “soprador do apito” remete à ideia daquela pessoa que,

verificando uma determinada situação relevante, assopra o apito para chamar a atenção sobre o que

está ocorrendo. Aliás, em geral, todo soprar útil de apito está destinado a chamar a atenção de uma

determinada situação, seja quanto à observância de uma regra em um determinado jogo esportivo, seja

1 Nos estudos do tema procedidos por um grupo formado no TRF4, composto de juízes federais, desembargadores federais e um procurador regional da República, foi extensivamente debatida uma tradução para o termo, tendo a Juíza Federal Taís Schilling Ferraz sugerido o termo “reportante”. Esse termo foi adotado nas reuniões e no anteprojeto da Enccla, e é, por vezes, usado no presente estudo para referenciar o whistleblower.

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quanto a uma regra de trânsito ou uma situação de perigo pessoal, como o alarme de um incêndio. A

analogia rápida e fácil à comunicação de uma situação importante faz com que o termo whistleblower

seja perfeito quando utilizado para descrever o sujeito que, pretendendo a observância das regras de

determinada sociedade, sopra o apito para que as autoridades tenham atenção ao fato que necessita de

apreciação. Assim, em uma definição minimalista do conceito de whistleblower, pode-se dizer que é a

pessoa que chama a atenção de autoridades públicas para atos ofensivos à ordem jurídica.

Definição do whistleblower

Por sua vez, os programas de whistleblower visam a organizar essa ação, definindo como,

quando, de que forma, etc., pode o cidadão solicitar a atenção de uma autoridade sobre determinado

fato, por si reconhecido como contrário a determinada regra. Para isso, em geral, os programas

exigem, expressamente ou não, duas condicionantes, entre outras que serão trabalhadas ao longo deste

texto: a primeira, que o fato apontado seja relevante, representando uma violação importante de uma

determinada norma, excluindo-se assim pequenas vindictas pessoais, ou ilegalidades menores que,

embora possam merecer atenção do sistema normativo, podem ser comunicadas à autoridade por vias

usuais, sem que seja necessário um “programa” especial para tanto; a segunda, que esse chamar de

atenção seja razoável, no sentido de que as informações reveladas tenham um sentido lógico,

permitindo, sob um juízo crítico, a conclusão provisória de que há interesse público suficiente para

desencadear uma investigação ou um procedimento de esclarecimento dos fatos. Peter Jubb fornece

uma boa definição.2 A partir dela, pode-se chegar à seguinte composição:

“Whistleblower é a pessoa que, detendo posição privilegiada de acesso a dados

e informações de uma organização, sem ter obrigação legal, voluntariamente relata, a

uma competente autoridade pública, um ato de interesse público, sobre fatos que

entende ilegais, não triviais, ou outras irregularidades sob o controle de uma

organização e que podem configurar atos de corrupção, fraudes ou violação de um

sistema normativo ou regulatório.”

Definição segundo os tratados internacionais

A partir dessa ideia básica, os diversos instrumentos jurídicos, sem adotar versão única,

procuram desenvolver conceitos próprios, buscando encontrar a fórmula que lhes parece melhor para 2 “Australian academic Peter Jubb defines it as being necessarily a public action: Whistleblowing is a deliberate non-obligatory act of disclosure, which gets onto public record and is made by a person who has or had privileged access to data or information of an organization, about nontrivial illegality or other wrongdoing whether actual, suspected or anticipated which implicates and is under the control of that organization, to an external entity having potential to rectify the wrongdoing.” Apud BANISAR, David. Whistleblowing: international standards and developments. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=1753180>.

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definir o whistleblower. Por exemplo, a Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção – Uncac,

como uma norma de conceitos gerais e amplos, prevê o whistleblower como toda pessoa que, de boa-

fé e com bases razoáveis, reporta para uma autoridade competente qualquer fato relativo a ofensas

previstas na Convenção.3 O Conselho Europeu prescreve que age como whistleblower aquele que

reporta uma preocupação ou informação sobre fatos ou omissões que representem ameaça ou dano a

interesse público, cujo conhecimento tenha origem no ambiente de trabalho.4 A Convenção

Interamericana contra a Corrupção estabelece, em seu artigo III, item 8, que os países signatários

devem implementar sistemas de proteção aos servidores civis e aos cidadãos da iniciativa privada que,

de boa-fé, relatem atos de corrupção, incluindo-se a proteção de suas identidades. Similar é a

abordagem utilizada pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico – OECD,

em suas recomendações para combater a corrupção de agentes públicos, quando prescreve que o

programa de whistleblower deve proteger contra ações discriminatórias ou disciplinares os

trabalhadores dos setores público ou privado que reportarem, de boa-fé e com bases razoáveis, para

autoridade competente, atos de corrupção de agentes públicos estrangeiros nos negócios

internacionais.5 A mesma recomendação sintetiza os elementos essenciais para alguém ser considerado

um whistleblower, segundo a OECD: i – revelação de irregularidades ligadas ao ambiente de trabalho;

ii – revelação que tenha dimensão de interesse público, e não mera reclamação pessoal; iii – revelação

que seja direcionada a pessoas ou autoridades dentro de canais próprios e para pessoas previamente

designadas.

Conexão com ambiente de trabalho

Essa conexão com o ambiente de trabalho ressalta uma das principais razões por que o

whistleblower se constitui em agente tão importante para a defesa do interesse público. Tendo a

empresa corrompido um funcionário público, ou praticado ela mesma uma importante violação de

regra setorial, tais ações possivelmente podem chamar a atenção tanto de um funcionário da repartição

pública na qual o funcionário público corrupto trabalha quanto de um colega do setor privado que

3 Uncac, artigo 33: “Cada Estado-Parte considerará a possibilidade de incorporar em seu ordenamento jurídico interno medidas apropriadas para proporcionar proteção contra todo trato injusto às pessoas que denunciem ante as autoridades competentes, de boa-fé e com motivos razoáveis, quaisquer feitos relacionados com os delitos qualificados de acordo com a presente Convenção”. 4 “Whistleblower refers to the act of someone reporting a concern or disclosing information on acts and omissions that represent a threat or harm to the public interest that they have come across in the course of their work.” CONSELHO EUROPEU. Protection of whistleblowers: Recommendation CM/REC(2014)7 and explanatory memorandum. p. 12. Disponível em: <http://www.coe.int/t/dghl/standardsetting/cdcj/CDCJ%20Recommendations/CMRec(2014)7E.pdf>. 5 “IX Recommends that Member countries should ensure that: [...] iii) appropriate measures are in place to protect from discriminatory or disciplinary action public and private sector employees who report in good faith and on reasonable grounds to the competent authorities suspected acts of bribery of foreign public officials in international business transactions.” OECD. Recommendation of the Council for Further Combating Bribery of Foreign Public Officials in International Business Transactions. Disponível em: <www.oecd.org/daf/anti-bribery/44176910.pdf>.

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 16

trabalha na empresa que promoveu a corrupção ou aquiesceu a ela. Ambos tomam ou podem tomar

conhecimento dos mesmos fatos, haja vista a posição de observadores privilegiados do cenário ilícito.

Ambos, portanto, seriam candidatos a tornarem-se whistleblowers. Tendo tomado conhecimento de

fatos havidos no ambiente de trabalho, torna-se o whistleblower detentor de informações que em geral

estão circunscritas a um pequeno círculo de pessoas e que, por pressão do próprio ambiente

corporativo, dificilmente seriam trazidas ao conhecimento público. Trata-se de informação passada

pelo que então se chama de insider. O Congresso Americano sabe há muito da importância dos

insiders, conforme revela o Senador Patrick Leahy, quando, em 1986, anotava fundamentos para a

revisão legislativa americana:

“Nós incluímos uma proteção significativa aos denunciantes corporativos,

como aprovada pelo Senado. Aprendemos com Sherron Watkins, da Enron, que

esses insiders são as testemunhas-chave que precisam ser encorajadas a reportar

fraudes e ajudar a prová-las no tribunal [...] De nenhuma maneira nós poderíamos ter

conhecido [a má conduta de funcionários da empresa Enron]6 sem esse tipo de

denunciante.”7

Ou, nas palavras dos líderes do G20:

“Quando os líderes do G20, na reunião de Seoul, incluíram a proteção do

whistleblower como um elemento-chave da sua estratégia anticorrupção, eles

reconheceram o valor crucial do ‘insider’ para os governos e as companhias como

um primeiro e inicial sistema de alerta para os tipos de práticas financeiras precárias,

corrupção e falhas perante sistemas regulatórios agora provados como um risco

crítico para a economia global.”8

Esses pontos são bem esclarecidos pelo governo da África do Sul, no guia prático para

implementação de sua legislação de proteção aos relatos, conforme previsto na Lei 26 de 2000 (ACT

nº 26 de 2000):

6 Nota do autor. 7 Apud KOHN, Stephen M.; KOHN, Michael D.; COLAPINTO, David K. Whistleblower law: a guide to legal protections for corporate employees. Praeger, 2004. p. 4. 8 “Whistleblower protection has been a priority element of financial, economic and regulatory cooperation between G20 countries since November 2010. When G20 leaders at the Seoul Summit included whistleblower protection as a key element of their global anti-corruption strategy, they recognized the crucial value of ‘insiders’ to government and companies as a first and often best early warning system for the types of poor financial practice, corruption and regulatory failure now proven as critical risks to the global economy.” WOLF, Simon; WORTH, Mark; DREYFUS, Suelette; BROWN, A.J. Whistleblower protection laws in G20 countries: priorities for action. Disponível em: <https://www.transparency.de/fileadmin/pdfs/Themen/Hinweisgebersysteme/Whistleblower-Protection-Laws-in-G20-Countries-Priorities-for-Action.pdf>.

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“Permanecendo silente sobre corrupção, ofensas ou más práticas ocorridas no

ambiente de trabalho, um empregado contribui para e se torna parte de uma cultura

de encorajar tais impropriedades, que irão depreciar sua própria carreira, assim como

serão danosas aos interesses da sociedade da África do Sul em geral. Todo

empregador e todo empregado têm a responsabilidade de revelar condutas

criminosas e irregulares de seu ambiente de trabalho. Todo empregador tem a

responsabilidade de adotar todos os passos necessários para assegurar que os

empregados que revelarem informações estarão protegidos de qualquer represália

resultante da ação de revelar.”9

Assim, por ser em geral o empregado, de menor ou maior hierarquia funcional, possível

observador de atos irregulares cometidos por suas corporações é que se liga a ideia de whistleblower

ao conhecimento advindo do ambiente de trabalho.10 Todavia, é oportuno anotar que pode existir

whistleblower fora do ambiente de trabalho, na medida em que o importante para a caracterização do

whistleblower não é a existência ou não de vínculo funcional, mas sim o fato de ele deter uma

informação relevante e praticar o ato de reportar fatos de interesse público ao conhecimento de

autoridades. Com efeito, a importância e a qualidade do relato não pressupõem necessariamente uma

vinculação a alguma relação de trabalho.

A exigência de vinculação ao ambiente de trabalho pode, entretanto, trazer aspectos positivos e

negativos. Exigindo-se a vinculação, mantém-se certo filtro nos relatos, pois caberá ao whistleblower

demonstrar que seu conhecimento está atrelado ao ambiente de trabalho e, portanto, já de início

mostra-se qualificado. Não se a exigindo, há uma abertura do leque de possíveis relatores, o que pode

gerar maior proteção ao verdadeiro empregado que soube inicialmente do fato. Poderá, ainda, melhor

oportunizar o direito de todo cidadão livremente se manifestar em sociedade, como corolário do

espectro dos direito humanos.

9 “By remaining silent about corruption, offences or other malpractices taking place in the workplace, an employee contributes to, and becomes part of, a culture of fostering such improprieties which will undermine his or her own career as well as be detrimental to the legitimate interests of the South African society in general. Every employer and employee has a responsibility to disclose criminal and other irregular conduct in the workplace. Every employer has a responsibility to take all necessary steps to ensure that employees who disclose such information are protected from any reprisals as a result of such disclosure.” 10 “The term ‘whistleblower’ is traditionally reserved for insiders – organization members who disclose wrongdoing under the control of that organization – and this is generally the focus of national laws.” TRANSPARENCY INTERNATIONAL. Whistleblower protection and the UN Convention Against Corruption . Disponível em: <http://www.europarl.europa.eu/meetdocs/2009_2014/documents/libe/dv/ti_report_/ti_report_en.pdf>.

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Diferença entre whistleblower, informante e testemunhas

Por outro lado, cumpre perceber a existência, ainda, de outros atores auxiliares da atividade

investigativa ou fiscalizatória estatal que não se confundem com o whistleblower: o informante e a

testemunha. O informante, em geral, encontra-se inserido ele próprio em um contexto de violações à

lei, e procura colaborar com o agente investigador a fim de obter de alguma forma um benefício, que

pode ou não estar relacionado com a redução de sua própria punição.11 Via de regra, o informante não

deseja a restauração da ordem jurídica, sendo-lhe indiferente a punição de quem quer que seja,

desejando apenas assegurar a sua própria conduta ou benefícios a si próprio. É o caso, por exemplo, do

usuário e do pequeno traficante que não são presos por decisão informal da investigação policial, para

que, cooperando, a polícia deles obtenha dados para chegar a um criminoso de maior envergadura. Em

geral, o informante consegue o anonimato, pois tradicionalmente apenas subsidia a investigação dos

fatos, sem apresentar um papel relevante quando a apuração evolui para a busca de punição do

responsável no âmbito do devido processo legal. Por isso, o informante comumente não tem valor

probatório e não é admitido no processo judicial. O whistleblower, diferentemente, não é, em tese,

responsável por fatos irregulares, nem busca com sua conduta e com o fornecimento de informações a

diminuição de sua responsabilidade civil ou penal sob qualquer aspecto. Assim, a proteção de

identidade assegurada ao whistleblower decorre de lei, visando a incentivar relatos protegidos por

conterem interesse público. Se o informante é identificado dentro de uma investigação ou em um

processo judicial, tecnicamente aproxima-se da figura de testemunha, depondo frequentemente sem

prestar compromisso, e, por apresentar possível participação em fato típico, poderá em tese debater

aspectos ligados à premiação processual, por meio da chamada delação premiada. Já a testemunha

difere do whistleblower porque em geral coopera para esclarecimento de fato que, na maioria dos

casos, não foi o responsável por levar ao conhecimento da autoridade investigadora. Quando uma

investigação apura que determinada pessoa tem conhecimento sobre os fatos, surge a obrigação legal,

o dever de a testemunha cooperar no esclarecimento dos fatos, sendo inclusive punida com as penas do

perjúrio caso silencie sobre fato relevante. Ainda quando a testemunha tenha sua identidade

preservada por questões de segurança do depoente, mantém-se o dever de depor, e essa garantia dada à

testemunha é feita, sem dúvida, no interesse da testemunha, mas também no interesse da correta

aplicação da lei. A seu turno, o whistleblower via de regra toma a iniciativa de, voluntariamente e sem

estar sujeito a um dever legal, trazer fatos “inéditos” ao conhecimento de uma autoridade, ou, se já

conhecidos, trazer elementos que são decisivos para comprovar fatos investigados. Por trazer

11 “Informants are often themselves involved in some sort of unethical enterprise and are using the disclosure of information as a means to reduce their liability, either voluntarily, or due to coercion. They are in a subordinate place as regards the body or person they are disclosing to and must follow their orders or face sanctions. In comparison, whistleblowing laws do not affect the liability of those that are involved in criminal enterprises.” BANISAR, David. Whistleblowing: international standards and developments. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=1753180>.

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informações que detém dentro do próprio ambiente de trabalho, ou mediante outra forma lícita, a

participação do whistleblower é desde o início válida, e o seu valor reside preponderantemente nas

informações que oferta, e não exatamente no seu depoimento. Idealmente, o whistleblower não deve

ser chamado a depor. O foco são as informações que traz ao processo. Assim, as medidas de proteção

do whistleblower, particularmente ao preservarem a identidade do reportante, embora não o façam de

forma absoluta, condicionam a revelação a uma real necessidade da investigação. Não existe direito

autônomo ou subjetivo do investigado de saber a identidade do reportante. Outrossim, a revelação não

se dará antes de se impor que as defesas do investigado tenham se voltado contra as provas e os fatos

sob investigação.

Diferença entre whistleblower, delação premiada e leniência

Também é importante anotar que o whistleblower não se confunde com os acordos de delação

premiada e leniência, sendo ferramenta de melhor utilidade e aprimoramento quando comparada com

a delação, quando se observa que

“A lei, ao prever a premiação do qui tam author e do whistleblower, faz com

que o Estado, para obter informações e aplicar a lei, deva interagir (destaquei) com

um cidadão honesto, próximo aos fatos e que não obteve qualquer benefício com a

fraude. Essa interação entre Estado e cidadão permitirá que possam eficazmente ser

aplicadas integralmente (destaquei) as sanções previstas em lei e ressarcidos os

danos. Trata-se, portanto, de remunerar e incentivar os cidadãos que se levantam

contra os malfeitores da sociedade. Ao contrário, os acordos de delação premiada e

de leniência impõem deva o Estado, para obter informações e aplicar a lei, negociar

(destaquei) com pessoas e corporações desonestas, que já se beneficiaram

ilicitamente e causaram danos à sociedade e terão as punições atenuadas por

colaborarem com a persecução de terceiros. Ou seja, nos acordos de delação e de

leniência, o Estado é obrigado a renunciar em parte (destaquei) à aplicação das

penalidades na intensidade prevista em lei. Isso equivale à consequência prática de

que a qui tam action e os programas de whistleblower trabalham para que o poder

público atue em sua maior expressão e a remuneração que eventualmente

disponibilizem, além de ser coberta pelo próprio causador do dano, venha a

remunerar uma parte honesta da sociedade por um serviço prestado.”12

12 ROCHA, Márcio Antonio. A participação da sociedade civil na luta contra a corrupção e a fraude: uma visão do sistema jurídico americano focada nos instrumentos da ação judicial qui tam action e dos programas de whistleblower. Revista de

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Evolução legislativa nos Estados Unidos

Os Estados Unidos estão para completar 40 anos da primeira experiência legislativa para

proteção ao whistleblower. Conforme esclarece o professor Robert G. Vaughn, o Civil Service Reform

Act, de 1978, marcou o início da proteção legal para os funcionários federais. Até então, nem no

âmbito federal, nem no âmbito dos estados se reconhecia como legítimo o que hoje se conhece como

whistleblower, não existindo regras protetivas ao funcionário que alertasse sobre fatos irregulares

conhecidos no âmbito do serviço público federal. Desde então, entre outros pontos, procurando repelir

retaliações, a referida legislação atribuiu à agência Merit System Protection Board – MSPB a

incumbência de apreciar as reclamações relacionadas a ofensas aos direitos dos whistleblowers.

Passados anos da primeira lei, a própria agência MSPB manifestara que a lei de 1978 não havia

eliminado o medo de retaliações e, assim, pouco efeito havia gerado no aumento do número de

pessoas que ofertavam denúncias.13 Em atenção ao aspecto, em 1989, o Congresso Americano decidiu

promulgar nova legislação, estabelecendo uma lei especial para o tema, denominada Whistleblower

Protection Act – WPA. Essa lei proibia de forma enfática as práticas de retaliação pessoal ao

whistleblower, criando melhores ferramentas de proteção. De modo especial, atribuiu ao Office of

Special Council – OSC poderes para investigar e representar perante a MSPB para a adoção de

medidas contra retaliações. Esse novo órgão, OSC, acabou por funcionar como uma promotoria

perante a agência MSPB, incumbida de adjudicar as reclamações e assegurar o implemento de

medidas de proteção relativas ao programa do WPA.

É interessante perceber que, desde o primeiro ato legislativo de proteção especial ao

whistleblower, o Congresso Americano prosseguiu em suas preocupações para que os programas

surtissem os efeitos esperados. O Congresso assim agiu ainda que, para tanto, houvesse de redefinir

conceitos, buscando, inclusive, em determinados aspectos, “corrigir” interpretações restritivas do

Poder Judiciário, que acabavam por não fomentar, na prática, a obtenção dos resultados esperados pelo

Congresso.

Tanto é assim que, em 2012, o Congresso Americano aprova nova reforma no regime de

proteção, por meio do Whistleblower Protection Enhancement Act – WPEA:

“O WPEA vai fortalecer os direitos e as proteções asseguradas para os

whistleblowers em âmbito federal e assim auxiliar a extirpar perdas, fraudes e abusos

no governo federal. Os whistleblowers ocupam um papel importante na mantença do

Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 65, abr. 2015. Disponível em: <http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao065/Marcio_Rocha.html>. 13 SENADO AMERICANO. Whistleblower Protection Enhancement Act of 2012: report of the Committee on Homeland Security and Governmental Affairs. Disponível em: <http://fas.org/irp/congress/2012_rpt/wpea.pdf>.

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nosso governo honesto e eficiente. [...] Lamentavelmente, os whistleblowers, no

âmbito federal, têm visto suas proteções diminuídas nos últimos anos, muito como

resultado de uma série de decisões da Corte Federal de Apelações. [...] [A emenda]

S. 743 vai solucionar esses problemas, restaurando a vontade original do Congresso

para a Lei de Proteção do Whistleblower.”14

Afora essa evolução da legislação federal, anota Vaughn que, em vinte anos, as diversas esferas

de governo dos Estados Unidos estabeleceram “centenas” de normas protegendo o whistleblower,

dispostas em várias legislações regrando setores específicos como saúde, abuso de crianças e idosos,

etc., aplicando-se tais regramentos tanto ao setor público quanto ao privado.15 São exemplos de leis

federais americanas com disposições referentes a whistleblowers: Clean Air Act (CAA); Commercial

Motor Vehicle Safety Act (CMVSA); Comprehensive Environmental Response Compensation and

Liability Act of 1980 (CERCLA); Department of Defense Authorization Act of 1987; Dodd-Frank

Wall Street Reform and Consumer Protection Act (Dodd-Frank Act); Energy Reorganization Act of

1974 (ERA); Fair Labor Standards Act of 1938 (FLSA); FDA Food Safety Modernization Act (FDA

Modernization Act); Federal Mine Safety and Health Act (FMSHA); Water Pollution Control Act of

1972 (FWPCA); Longshore and Harbor Workers’ Compensation Act (LHWCA); Migrant and

Seasonal Agricultural Worker Protection Act (MSAWPA); Occupational Safety and Health Act of

1970 (OSH Act); Safe Drinking Water Act (SDWA); Sarbanes-Oxley Act of 2002 (SOX); Solid

Waste Disposal Act (SWDA); Surface Mining Control and Reclamation Act (SMCRA); Toxic

Substances Control Act (TSCA); Whistleblower Protection Enhancement Act (WPEA).

14 “The Whistleblower Protection Enhancement Act of 2012 will strengthen the rights of and protections for federal whistleblowers so that they can more effectively help root out waste, fraud, and abuse in the federal government. Whistleblowers play a critical role in keeping our government honest and efficient. [...] Unfortunately, federal whistleblowers have seen their protections diminish in recent years, largely as a result of a series of decisions by the United States Court of Appeals for the Federal Circuit, which has exclusive jurisdiction over many cases brought under the Whistleblower Protection Act. [...] S. 743 would address these problems by restoring the original congressional intent of the WPA to adequately protect whistleblowers, by strengthening the WPA, and by creating new whistleblower protections for intelligence employees and new protections for employees whose security clearance is withdrawn in retaliation for having made legitimate whistleblower disclosures. More specifically, S. 743 would, among other things, clarify the broad meaning of ‘any’ disclosure of wrongdoing that, under the WPA, a covered employee may make with legal protection; expand the availability of a protected channel to make disclosures of classified information to appropriate committees of Congress; allow certain whistleblowers to bring their cases in federal district court (this provision being subject to a five-year sunset); allow whistleblowers to appeal decisions on their cases to any federal court of appeals (this provision also being subject to a five-year sunset); provide whistleblower and other employee protections to employees of the Transportation Security Administration (TSA); clarify that those who disclose scientific censorship are protected under the WPA; establish a remedy for certain employees of the intelligence community who are not protected under the WPA, modeled on the whistleblower protections for Federal Bureau of Investigation (FBI) employees; and provide federal employees with a way to challenge security clearance determinations made in retaliation against protected whistleblower disclosures.” SENADO AMERICANO. Whistleblower Protection Enhancement Act of 2012: report of the Committee on Homeland Security and Governmental Affairs. Disponível em: <http://fas.org/irp/congress/2012_rpt/wpea.pdf>. 15 VAUGHN, Robert G. State whistleblower statutes and the future of whistleblower protection. Administrative Law Review, v. 51, n. 2, 1999. p. 581-582.

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 22

Importância dos programas na comunidade internacional

Essas diversas construções legislativas no âmbito dos Estados Unidos demonstram o quanto as

autoridades públicas americanas atribuem aos cidadãos um papel importante no enforcement público,

cientes, portanto, de que a aplicação de leis, notadamente as que impõem dever ou omissão, e

normativos setoriais não pode depender exclusivamente de investigações e fiscalizações feitas por

autoridades. De fato, os programas de whistleblower são em geral referidos nos Estados Unidos como

uma das principais ferramentas para deter a corrupção, a violação de regramentos setoriais e a perda de

dinheiro público.

Essa mesma visão da importância de tais programas é manifestada na comunidade internacional,

sendo inclusive objeto de manifestação das Nações Unidas:

“Os governos enfatizam acentuadamente que a proteção daqueles que reportam

não apenas aperfeiçoa a detenção da corrupção, mas também é uma importante

contenção de sua ocorrência, na medida em que reduz a capacidade dos malfeitores

de contarem com o silêncio daqueles que estão à sua volta. Esse aspecto preventivo é

buscado pela Convenção das Nações Unidas para o Combate à Corrupção – Uncac, a

qual encoraja os Estados a promover a participação ativa dos indivíduos –

assegurando que eles podem se engajar de forma segura com as autoridades dos

respectivos governos – e do público para extensamente reportar e prevenir a

corrupção.”16

Aplicação dos programas aos setores público e privado

Os programas de whistleblower aplicam-se ao setor público e ao setor privado. Embora a face

mais previsível fosse a aplicação dos regimes de proteção correlacionados ao setor público,

progressivamente a experiência internacional revelou que os programas de whistleblower são

ferramentas importantes para deter condutas ilícitas também no setor privado. Essa importância pode

ser extraída da leitura do artigo 33 da Uncac, quando recomenda que os países signatários considerem

a adoção de regimes de proteção aos whistleblowers de forma ampla, incorporando qualquer pessoa,

indiferentemente de ser egressa do setor público ou do setor privado: “proteção para qualquer pessoa

16 “Government increasingly emphasize how protecting those who report not only improves the detection of corruption, but is also valuable as a deterrent, as it reduces the capacity of wrongdoers to rely on the silence of those around them. This preventive aspect is underlined by UNCAC, which encourages States to promote the active participation of individuals – ensuring that they can engage safely with government authorities in particular – and the public more widely in reporting and preventing corruption.” NAÇÕES UNIDAS. The United Nations Convention against Corruption: resource guide on good practices in the protection of reporting persons. p. 1-2. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/corruption/Publications/2015/15-04741_Person_Guide_eBook.pdf>.

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 23

que reportar de boa-fé e com bases razoáveis, para a autoridade competente, qualquer fato relacionado

a ofensas estabelecidas na Convenção”.

Essa leitura é vocalizada pela OECD, anotando que nenhum dos principais instrumentos

normativos internacionais, nomeadamente a Convenção Africana sobre Corrupção, a Convenção

Interamericana de Combate à Corrupção, assim como a Assembleia Parlamentar do Conselho

Europeu, distingue entre empregados do setor público ou privado para serem sujeitos dos programas

de proteções em cada país.17 Seguindo esse entendimento, a Resolução 1729 do Conselho Europeu é

expressa, logo no seu artigo primeiro, em reconhecer a importância dos programas de whistleblower

como forma de deter malfeitos que coloquem seres humanos em risco e cujas ações forneçam uma

oportunidade de reforçar a boa contabilidade e apoiar a luta contra a corrupção e a má administração,

tanto no setor público quanto no setor privado.18

Dentro do G20, reconhece-se o contínuo aperfeiçoamento das legislações de whistleblower

também para o setor privado:

“As legislações domésticas expressamente dedicadas à proteção do

whistleblower no setor privado são menos comuns que para o setor público.

Entretanto, o setor privado está progressivamente adotando voluntariamente medidas

para criar canais internos para o seguro e sigiloso relato de irregularidades. Isso pode

estar ocorrendo por inúmeras razões. Um efetivo regime de whistleblower detém os

malfeitos; facilita o relato de irregularidades sem o medo de retaliações; ajuda a

identificar mais cedo as irregularidades, portanto prevenindo potenciais graves

desastres; e reduz o risco de potenciais danos de relatos ao público externo,

incluindo-se aí os órgãos governamentais e a mídia. As proteções aos whistleblowers

são ainda um importante elemento de um programa interno de controle, ética e

17 “As previously mentioned, the 2009 OECD Anti-bribery Recommendation calls on Parties to ensure that whistleblower protections are in place for both public and private sector employees and, in its Annex II, on companies to ensure appropriate and confidential whistleblower reporting channels and protections. Article 33 of the UNCAC calls on Parties to consider adopting whistleblower protections ‘for any person who reports in good faith and on reasonable grounds to the competent authorities any facts concerning offences established in accordance with this Convention.’ At a regional level, the African Union Convention on Preventing and Combating Corruption, the Council of Europe Criminal Law Convention on Corruption, the Council of Europe Civil Law Convention on Corruption, and the Inter-American Convention against Corruption make similar provisions and do not expressly distinguish between private and public sector employees in their call for Parties to require or consider adopting whistleblower protection measures. As noted in Section II.1 of this Study, some G20 countries have included whistleblower protections that expressly cover private sector employees.” OECD. G20 Anti-Corruption Action Plan. Protection of whistleblowers: study on whistleblower protection frameworks, compendium of best practices and guiding principles for legislation. p. 26. Disponível em: <http://www.oecd.org/g20/topics/anti-corruption/48972967.pdf>. 18 “1. The Parliamentary Assembly recognises the importance of whistle-blowers – concerned individuals who sound an alarm in order to stop wrongdoings that place fellow human beings at risk – as their actions provide an opportunity to strengthen accountability and bolster the fight against corruption and mismanagement, both in the public and private sectors.” CONSELHO EUROPEU. Parliamentary Assembly. Resolution 1729 (2010): Protection of “whistle-blowers”. Disponível em: <http://assembly.coe.int/nw/xml/XRef/Xref-XML2HTML-en.asp?fileid=17851&lang=en>.

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compliance, o qual – visto em seu todo – poderá demonstrar aos acionistas e aos

órgãos governamentais de controle que a companhia tem feito esforços para

prevenir, detectar e remediar comportamentos corruptos. Isso pode ser especialmente

relevante quando as empresas estão sujeitas a jurisdições onde a lei contra propinas e

corrupção inclui como elemento de defesa para punições de certas condutas o fato de

a empresa ter implantado procedimentos adequados para prevenir propinas e onde os

critérios seguidos pelas decisões judiciais prevejam sentenças mais brandas para

empresas com essa espécie de programas.”19

Esse aspecto de interesse da própria empresa em adotar programas de whistleblower foi descrito

nas palavras certeiras de Bob Ansell, gerente de controle e compliance da Philip Morris Limited: “Eu

irei preferir muito mais que a pessoa fale para mim do que para um jornal”.20 Sob esse enfoque, o

programa, quando integrado no âmbito de uma empresa, assume papel importante nos esforços de

compliance da empresa e pode evitar prejuízos financeiros advindos dos custos de punições e

processos perante agências reguladoras ou com poder punitivo, bem como danos materiais impostos a

consumidores ou terceiros. Como ferramenta de administração corporativa, um sistema interno, claro e

robustamente estabelecido enseja um canal de diálogo entre funcionários preocupados com questões

de interesse da empresa e seus mais altos administradores, ou entre os funcionários e os sistemas de

controle, fomentando a solução de possíveis problemas antes que tenham dimensão suficiente para

gerar perdas maiores ao conjunto da empresa. Trata-se de ferramenta de consolidação da autonomia

dos interesses da empresa em relação a interesses individuais de um mau funcionário, de um mau

gerente ou de uma diretoria. Com ela fica definitivamente claro à coletividade de funcionários que a

empresa sabe que sua existência a longo prazo presume a conformidade com os setores regulatórios e

19 “Domestic legal provisions expressly devoted to the protection of whistleblowers in the private sector are less common than for the public sector. However, the private sector is increasingly taking voluntary measures to create internal channels for safely and confidentially reporting misconduct. This could be for a number of reasons. An effective whistleblowing regime deters wrongdoing; facilitates the reporting of misconduct without fear of retaliation; helps identify misconduct early on and thereby prevent potentially grave disasters; and reduces the risk of potentially damaging external reports, including to regulators or the media. Whistleblower protections are also an important element of an internal controls, ethics and compliance programme, which – taken in the programme’s entirety – could demonstrate to shareholders and law enforcement that a company has made efforts to prevent, detect and address corrupt behaviors. This could be especially relevant to companies subject to the jurisdiction of anti-bribery and anti-corruption laws that include a defence against liability for certain offences by having ‘adequate procedures’ in place to prevent bribery, or where sentencing guidelines provide more lenient sentences on companies with such programmes in place.” OECD. G20 Anti-Corruption Action Plan. Protection of whistleblowers: study on whistleblower protection frameworks, compendium of best practices and guiding principles for legislation. p. 26. Disponível em: <http://www.oecd.org/g20/topics/anti-corruption/48972967.pdf>. 20 “Bob Ansell, controls and compliance manager for Philip Morris Limited, has described such protection as making ‘a compelling case’ for his organisation to develop an effective approach to learning about wrongdoing first: ‘I would much rather people speak to me than a newspaper or Today Tonight’ (Mezrani 2013).” Apud WOLFE, Simon; WORTH, Mark; DREYFUS, Suelette; BROWN, A.J. Whistleblower protection laws in G20 Countries: priorities for action. p. 20. Disponível em: <https://www.transparency.de/fileadmin/pdfs/Themen/Hinweisgebersysteme/Whistleblower-Protection-Laws-in-G20-Countries-Priorities-for-Action.pdf>.

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a licitude das opções gerenciais com órgãos governamentais, clientes e terceiros. Essa meta de

permanência da empresa a longo prazo em elevado nível de conformação jurídica não será jamais

alcançada se obtida mediante violação da boa governança ou mediante condutas não conformes de

seus empregados e administradores. Nos termos do estudo da Câmara de Comércio Internacional:

“As fraudes permanecem como um dos maiores problemas para os negócios

mundo afora, não importando o país em que a empresa opera, o seu setor industrial

ou o seu tamanho. Uma extensa pesquisa conduzida em 2007 com 5.428 companhias

em 40 países concluiu que aproximadamente 43% dos respondentes sofreram um ou

mais significantes crimes econômicos durante os dois anos anteriores. Apesar da

atenção dos reguladores e dos investimentos das empresas em controles, o atual nível

dos crimes econômicos e os associados danos financeiros e não financeiros não se

reduziram significativamente. As fraudes econômicas destroem os valores de ações,

ameaçam o desenvolvimento das empresas, colocam em perigo as oportunidades de

emprego e enfraquecem a boa governança.”21

Aplicações dentro do setor privado

No setor privado, em geral os programas procuram dar garantias para o relato de práticas

empresariais passíveis de criar ofensas aos consumidores, à justa competitividade no mercado, ou que

estejam contrárias aos regramentos do setor financeiro e de outros setores econômicos.22 É desejável

ainda a expressa menção à proteção dos direitos humanos e dos direitos dos trabalhadores.

Por vezes, poucos dão a devida atenção ao que se chama corrupção do setor privado e às suas

consequências. Embora o termo corrupção tenha um sentido técnico-legal, o qual remete à ação ou

omissão de agente público, quando se fala em corrupção no setor privado utiliza-se o termo com uma

expressiva abrangência, buscando acolher variadas e inumeráveis práticas que atentam contra uma

concepção ético-jurídica de se empreender negócios comerciais. Embora esses erros de atuação 21 “Fraud remains one of the most problematic issues for business worldwide, no matter the company’s country of operation, industry sector or size. An extensive survey, conducted in 2007 with 5428 companies in 40 countries, concluded that over 43 % of the respondents sustained one or more significant economic crimes during the two previous years. Despite the attention of regulators and companies’ investment in controls, the actual level of economic crime and the associated financial and non-financial damages have not significantly decreased. Economic fraud destroys shareholders’ value, threatens enterprises’ development, endangers employment opportunities and undermines good corporate governance. Enterprises should therefore consider putting into place efficient and appropriate internal tools to combat economic fraud and to fight corruption. Research indicates that companies that use effective guidelines and compliance programs are much less vulnerable to economic crime.” INTERNATIONAL CHAMBER OF COMMERCE – ICC. ICC guidelines on whistleblowing. p. 1. Disponível em: <http://www.iccwbo.org/Data/Policies/2008/ICC-Whistleblowing-Guidelines/>. 22 CONSELHO EUROPEU. Protection of whistleblowers: Recommendation CM/REC(2014) 7 and explanatory memorandum. Disponível em: <http://www.coe.int/t/dghl/standardsetting/cdcj/CDCJ%20Recommendations/CMRec(2014)7E.pdf>.

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 26

residam precipuamente no âmbito particular, sem afetação de serviços públicos, em uma expressão

maior, encerram fraudes contra o interesse público, cometidas com ou sem a participação de

servidores públicos. Estudo das Nações Unidas expõe que a corrupção do setor privado apresenta

consequências similares à corrupção do setor público. Embora essas práticas sejam particularmente

danosas quando envolvem contratos para o fornecimento de bens e serviços aos Estados, também

podem gerar consequências para as pessoas além de fronteiras, quando havidas em práticas ligadas ao

comércio internacional. Aponta o estudo que

“a corrupção do setor privado distorce a competição e pode gerar aumento de

custos; cria desfavorável dependência entre os lados da oferta e da demanda, levando

à perda de oportunidades de negócios legítimos e à violação de interesses de

investidores e acionistas. Essas consequências são igualmente relevantes nos casos

de corrupção entre dois atores privados.”23

Podem-se visualizar os malefícios da corrupção do setor privado nas ações de empresas que

cartelizam setores específicos, sendo mais comuns os ligados a obras públicas, que acabam por ter

seus custos elevados em função da ausência de real competição. Nesses casos, independentemente da

participação de um servidor público, as empresas podem impor conhecidas fraudes ao processo

licitatório, adotando práticas tais como a eleição, entre os concorrentes, de um vencedor no processo

licitatório, a rotação de licitantes vencedores, a prática de sobrepreço (superfaturamento) que permita à

empresa vencedora o pagamento de um prêmio para a empresa perdedora do certame ou que permita a

subcontratação das empresas vencidas para realização terceirizada da obra, no todo ou em parte.

Outras formas de distorção do setor privado podem estar ligadas à venda de produtos com

qualificações inapropriadas, com utilização de insumos perigosos aos consumidores. No setor médico-

farmacêutico, uma das preocupações das autoridades norte-americanas, por exemplo, é averiguar a

promoção de compras, por setores públicos, de remédios mais caros e sem consideração de similares

mais baratos, a indução de prescrição para finalidades de eficácia não comprovada, a indução de

procedimentos médicos ou laboratoriais não realmente necessários, a distribuição direta ou indireta de

benefícios a pessoas-chave, etc. Poderiam ainda ser apontados sinais de alerta em todos os setores

produtivos. Todavia, aos fins deste estudo, basta se ter em mente que são inúmeras as formas de agir

contra o interesse público, mesmo fora do setor de obras. Arranjos semelhantes podem ser praticados

no fornecimento de bens e serviços, mediante práticas inapropriadas de mercado, objetivando sempre a

maximização de lucros e, pior, a maximização de vantagens, não raro com danos a consumidores.

Nesse conjunto interminável de possibilidades de lesão ao interesse público e coletivo, não há como se 23 NAÇÕES UNIDAS. The United Nations Convention against Corruption: resource guide on good practices in the protection of reporting persons. p. 1. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/corruption/Publications/2015/15-04741_Person_Guide_eBook.pdf>.

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esperar que haja muita chance de essas lesões serem descobertas sem o incentivo e a proteção para que

pessoas ligadas a tais corporações venham ofertar às autoridades o necessário conhecimento. Os

whistleblowers são, por vezes, experts em assuntos técnicos ou científicos, e alertam para questões de

que dificilmente uma autoridade tomaria conhecimento com a prontidão necessária. Em situações

dessa natureza, os custos de premiação a esses corajosos cidadãos são muito pequenos em relação à

continuidade da prática dos referidos atos lesivos. A libertação da coletividade em relação a esse jugo

espúrio imposto por empresas inidôneas sobressai como o ponto mais importante na equação.

Por outro lado, parece certo que as empresas que incorporam práticas ilícitas em suas atividades

comerciais serão aquelas que menos esforços farão para terem programas efetivos de incentivo às

denúncias internas.24 Não haverá tampouco interesse de se impor controles internos, códigos de

conduta e programas eficientes de compliance que possam expor a empresa aos riscos de uma

atividade fiscalizatória ou punitiva de qualquer ordem.

Todavia, há que se ter em mente que, por vezes, irregularidades praticadas nas relações

comerciais de empresas decorrem de atos isolados de seus funcionários, e não de uma política

empresarial. Nesse contexto, há situações indesejáveis em que existe um distanciamento entre os

interesses ilegítimos de empregados e os interesses legítimos das empresas. O risco que se tem aqui é

de, por atos isolados de poucos funcionários, a empresa e todo o conjunto de empregados virem a ter

seu futuro comprometido, quer sob um aspecto meramente gerencial e econômico, quer pela ameaça

de a empresa sofrer pesadas multas, intervenção e bloqueios judiciais ou administrativos, ou processos

indenizatórios que coloquem em risco a saúde, a imagem das empresas, bem como o prosseguimento

das atividades e a manutenção dos empregos.

Nesse sentido, é esclarecedor o alerta feito pelo governo da África do Sul, quando estabeleceu

seu manual prático de aplicação de sua legislação de transparência, o Protected Disclosures Act – Act

nº 26, de 2000:

“Permanecendo silente sobre corrupção, ofensas ou outras práticas más levadas

a efeito no ambiente de trabalho, o empregado contribui para, ou se torna parte de,

uma cultura que abriga essas irregularidades, que vão enfraquecer suas carreiras,

assim como serão danosas para os legítimos interesses da sociedade da África do Sul

em geral. Todo empregador ou empregado tem a responsabilidade de empreender os

24 CONSELHO EUROPEU. Protection of whistleblowers: Recommendation CM/REC(2014) 7 and explanatory memorandum. p. 12. Disponível em: <http://www.coe.int/t/dghl/standardsetting/cdcj/CDCJ%20Recommendations/CMRec(2014)7E.pdf>.

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passos necessários para assegurar que os empregados que relatarem essas

informações estarão protegidos de qualquer represália como resultado do relato.”25

Cientes desse risco às empresas, gerenciamentos eficientes procuram estabelecer canais internos

de denúncias, cientes de que

“um sistema efetivo de whistleblower é um componente-chave em qualquer

estratégia para desafiar comportamentos inapropriados em todos os níveis de uma

organização. É tanto um instrumento de boa governança quanto a manifestação de

uma cultura organizacional mais aberta. Um sistema é bem-sucedido, em termos de

saúde organizacional, quando as preocupações são levantadas internamente com

confiança nos procedimentos internos e as preocupações são adequadamente

investigadas e, se necessário, corrigidas.”26

Corroborando o exposto, estudo da empresa KPMG na Austrália e na Nova Zelândia indica que,

em 2002, 25% das fraudes foram reportadas pelos próprios empregados. E outro estudo, da mesma

empresa, na África, apontou que 44% das fraudes foram reveladas a partir de informações fornecidas

por whistleblowers.27

Para obtenção de tais resultados positivos, as empresas devem instalar canais de diálogo entre

seus funcionários, preservando o direito de livre manifestação, sem riscos de retaliação, e as

preocupações devem ser levadas ao conhecimento de um setor com atribuições próprias, como, por

exemplo, o setor de compliance, ouvidoria, reclamações, etc. Nesse setor, as preocupações devem ter

tratamento sério e transparente, ainda que haja a possibilidade de o denunciante estar equivocado. Sob

a perspectiva empresarial, embora seja desejável que o erro possa não existir, ainda assim, a empresa

25 “By remaining silent about corruption, offences or other malpractices taking place in the workplace, an employee contributes to, and becomes part of, a culture of fostering such improprieties which will undermine his or her own career as well as be detrimental to the legitimate interests of the South African society in general. Every employer and employee has a responsibility to disclose criminal and other irregular conduct in the workplace. Every employer has a responsibility to take all necessary steps to ensure that employees who disclose such information are protected from any reprisals as a result of such disclosure.” ÁFRICA DO SUL. Department of Justice and Constitutional Development. Practical guidelines for employees in terms of Section 10(4)(a) of the Protected Disclosures Act, 2000 (Act no. 26 of 2000). p. 4. Disponível em: <http://www.justice.gov.za/legislation/notices/2011/20110831_gg34572_n702-disclosure-guidelines.pdf>. 26 “Effective whistleblowing is therefore a key component in any strategy to challenge inappropriate behavior at all levels of an organization. It is both an instrument in support of good governance and a manifestation of a more open organizational culture. Successful whistleblowing, in terms of a healthy organizational culture, is when concerns are raised internally with confidence about the internal procedures and where the concern is properly investigated and, where necessary, addressed.” BANISAR, David. Whistleblowing: international standards and developments. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=1753180>. 27 “Whistleblowing is also useful for bodies that want to improve their internal management to make it more accountable. Employees are usually the first to know of problems and whistleblowing can be an ‘early warning sign’ for employers that something is wrong and should be corrected before it gets out of control. A 2002 KPMG report on fraud in Australia and New Zealand found 25 percent of fraud was reported by employees. A 2005 study from KPMG in Africa found that 44 percent of fraud was revealed by information received from whistleblowers.” BANISAR, David. Whistleblowing: international standards and developments. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=1753180>.

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tem ganhos de qualidade e transparência quando despende um tempo em esclarecer dúvidas que não se

confirmam.

Diretrizes dos programas no setor privado

A Câmara Internacional de Comércio28 propicia algumas diretrizes de como os procedimentos de

relatos internos podem ser estabelecidos dentro das empresas e, portanto, também no serviço público,

destacando-se, entre outros, que: as empresas devem indicar funcionários graduados de induvidosa

reputação e longa experiência para serem os responsáveis pelo setor de whistleblower ou de ouvidoria;

esses profissionais devem ter larga autonomia dentro da corporação e possibilidade de reportarem aos

mais elevados níveis de direção; como parte dos esforços das empresas para instalar adequados setores

de relatos, elas podem designar outras empresas, fora do grupo econômico, especializadas em manejar

relatos de whistleblower; todos os relatos de whistleblowers devem ser diligentemente conhecidos,

registrados e apurados; todos os empregados devem estar em posição de reportar sérias ocorrências,

sem medo de retaliação, discriminação ou ações disciplinares; assim que possível, os principais

resultados do processo de investigação ou esclarecimento devem ser comunicados como um feedback

para o whistleblower; todos os relatos de boa-fé devem ser investigados pelos setores de whistleblower

das empresas, mediante regras de estrita confidencialidade; cada empresa pode decidir, de acordo com

sua conveniência, que tipo de canal de comunicação será utilizado nos seus sistemas de relatos, ou

seja, comunicações orais ou escritas, mediante telefone (serviços de ligação gratuita ou disque-

denúncia) ou sistema informatizado (intranet) ou qualquer outra ferramenta considerada adequada.

Sabendo-se das possíveis falhas de programas de compliance, é importante que o trabalhador,

deparando-se com situações de elevada gravidade ou risco, ou de clara ofensa a disposições legais ou

regulatórias, possa acessar as autoridades públicas e mesmo a mídia, a fim de evitar dano irreparável.

Ainda nessa situação, haverá o sistema jurídico de ofertar proteção aos relatos feitos em bases

razoáveis. A compatibilidade e o equilíbrio entre o asseguramento do direito de manifestação do

trabalhador e os interesses empresariais ligados a informações estratégicas da empresa estabelece-se

pela razoável limitação das informações divulgadas ao mínimo necessário ao esclarecimento dos

fatos.29

28 INTERNATIONAL CHAMBER OF COMMERCE – ICC. ICC guidelines on whistleblowing. Disponível em: <http://www.iccwbo.org/Data/Policies/2008/ICC-Whistleblowing-Guidelines/>. 29 CONSELHO EUROPEU. Protection of whistleblowers: Recommendation CM/REC(2014) 7 and explanatory memorandum. p. 10. Disponível em: <http://www.coe.int/t/dghl/standardsetting/cdcj/CDCJ%20Recommendations/CMRec(2014)7E.pdf>.

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Proteção como elemento-chave dos programas

A proteção ao cidadão é o ponto mais importante de um programa de recebimento de relatos de

whistleblower. Pode-se mesmo dizer que proteger o cidadão reportante é a razão de existir dos

programas de whistleblower. Essa preocupação é bem evidenciada na Convenção das Nações Unidas

contra a Corrupção, quando, em seu artigo 33, prevê que os Estados devem incorporar em seus

sistemas legais um “sistema apropriado de medidas para ofertar proteção quanto a qualquer tratamento

injustificado a qualquer pessoa que reportar fatos ilícitos indicados na convenção”. A proteção é

estabelecida para o livre exercício do direito de manifestação. Os programas, ao preverem proteção,

evidentemente, não criam o direito de manifestação e a liberdade de consciência, os quais têm origem

nos direitos humanos e da cidadania, sendo assegurados constitucionalmente no Brasil.

Embora o ato de reportar fatos de interesse público represente o exercício desses direitos, a

prática revela que essa nobre ação, na maioria das vezes, é feita com subsequentes dissabores e ônus

para o cidadão. Os programas de whistleblower raramente conseguirão eliminar, na integralidade, tais

dificuldades. Por mais que os sistemas busquem repelir, nas palavras da Convenção, “qualquer

tratamento injustificado”, remanescerão possíveis danos. Isso porque, embora possa tratar com maior

força os danos mais prováveis e perceptíveis, tais como a ameaça à integridade física e moral, a perda

do emprego, etc., ainda assim o cidadão frequentemente incorre em danos imateriais de difícil

acautelamento, tais como abalos psicológicos e à carreira, dificuldades nos relacionamentos

interpessoais, familiares e profissionais, tudo em decorrência do ato de reportar.

Essas dificuldades têm sido a difícil realidade de whistleblowers, mesmo em países com

democracia e liberdade de expressão consolidadas ou com regimes de proteção ao denunciante

devidamente estabelecidos. Conforme aponta estudo do Senado Americano,

“Frequentemente, a premiação do whistleblower por sua dedicação aos mais

elevados princípios morais é a ameaça e o abuso. Os whistleblowers frequentemente

se deparam com danos severos para suas carreiras e perdas econômicas substanciais.

Proteger empregados que relatam ilegalidades no governo, desperdício e corrupção é

o maior passo em direção à maior efetividade no serviço público. Na vasta

burocracia federal, não é difícil ocultar irregularidades, tendo em vista que ninguém

tem coragem para relatar a verdade. Sempre que um malfeito tem lugar em uma

agência federal, há alguns empregados que sabem de sua ocorrência, e que estão

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 31

indignados por ela. O que é necessário são meios para assegurar que eles não irão

sofrer se ajudarem a revelar e corrigir os abusos administrativos.”30

De fato, “muitos dos que trazem esses assuntos à luz enfrentam também sérias repercussões para

suas ações. Eles perdem seus trabalhos ou são estigmatizados em suas atividades. Alguns são acusados

de crimes por violações de leis ou acordos de trabalho. Em casos extremos, eles sofrem danos

físicos”.31

Quando inexistentes os programas de proteção, ou se previstos sem cautelas, inclusive quanto a

alguns diplomas legais periféricos, os perigos a que estão expostos os cidadão relatores podem residir

no próprio sistema jurídico ou em fórmulas contratuais. Nesse sentido, não raramente, buscando mera

obliteração do conhecimento público em relação a irregularidades, são levantados contra os relatos dos

whistleblowers argumentos fundados em interpretações exorbitantes de diplomas legais ou normativos.

Assim, embora não limitados a estes, são frequentes os argumentos de existência de revelação de

informação sigilosa institucional ou empresarial, leviandade do relator (embora o “ofendido” não

deseje esclarecer os fatos relatados), rompimento de obrigações de sigilo em contratos trabalhistas,

direito do empregador em demitir livremente seus funcionários, alegação de perda de confiança,

crimes contra a honra, danos morais em favor dos denunciados, etc. Essa panaceia de tipologias

jurídicas é disparada contra o reportante para gerar medo e riscos jurídicos, sendo lançada como uma

cortina de fumaça para encobrir atos de corrupção e relevantes ofensas a sistemas regulatórios. Esses

tipos legais podem ser levantados como ameaças, ou por meio de processos administrativos e judiciais

de cunho retaliatório.

Governos e organizações não governamentais especializadas em acompanhamento de gastos

públicos, ou de jornalismo investigativo, sabem há muito da frequente ocorrência de tais ameaças e

danos. A organização não governamental US Project on Government Oversight traz uma enumeração

das mais frequentes ocorrências no ambiente de trabalho: retirada de atribuições do empregado como

forma de marginalização; retirada das credenciais dos servidores da segurança nacional, deixando-os

(na prática) efetivamente exonerados; rotulagem depreciativa do empregado, fazendo com que fique

30 “As explained in the accompanying Senate Report: Often, the whistleblower’s reward for dedication to the highest moral principles is harassment and abuse. Whistleblowers frequently encounter severe damage to their careers and substantial economic loss. Protecting employees who disclose government illegality, waste, and corruption is a major step toward a more effective civil service. In the vast federal bureaucracy it is not difficult to conceal wrongdoing provided that no one summons the courage to disclose the truth. Whenever misdeeds take place in a federal agency, there are employees who know that it has occurred, and who are outraged by it. What is needed is a means to assure them that they will not suffer if they help uncover and correct administrative abuses.” SENADO AMERICANO. Whistleblower Protection Enhancement Act of 2012: report of the Committee on Homeland Security and Governmental Affairs. p. 2. Disponível em: <http://fas.org/irp/congress/2012_rpt/wpea.pdf>. 31 “However, many who bring these issues to light face also severe repercussions for their actions. They lose their jobs or are ostracized for their activities. Some are charged with crimes for violating laws or employment agreements. In extreme cases, they face physical danger.” BANISAR, David. Whistleblowing: international standards and developments. p. 1. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=1753180>.

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 32

sem condições de obter um emprego rentável; condução de investigações retaliatórias para os fins de

desviar a atenção do desperdício, da fraude ou do abuso que o whistleblower está tentando expor;

questionamentos da saúde mental do whistleblower, da sua competência profissional ou da sua

honestidade; imposição de dificuldades ao whistleblower, atribuindo-lhe tarefas impossíveis ou

procurando neutralizá-lo; transferência geográfica do empregado, deixando-o sem condições de

realizar seu trabalho.32

Esses potenciais danos, somados ao risco de os fatos não serem apurados, são os grandes

impeditivos de uma maior colaboração de indivíduos para o aprimoramento da administração pública e

mesmo do gerenciamento corporativo:

“A maior barreira que evita o relato de whistleblowers é a preocupação quanto

à retaliação que resultará do relato. A retaliação pode variar de uma ameaça menor

no ambiente de trabalho a consequências mais severas. Tipicamente, uma vez que o

empregado assoprou o apito, crescente pressão lhe será posta para rescindir suas

declarações e para evitar futuros relatos.”33

Ainda, “Leis sobre calúnia e difamação são usadas para impedir os whistleblowers de fazer

relatos. Os whistleblowers são ameaçados por oficiais superiores ou outras figuras poderosas que

podem usar os tribunais como um meio efetivo de silenciar opositores”.34 Por isso, pode-se dizer, em

resumo: “As proteções aos whistleblowers têm a intenção de garantir o exercício e o completo

desfrutar dos direitos de personalidade e propriedade, bem como a conservação das condições de

trabalho do whistleblower, sem medo de retaliações ou ameaças”.35

32 “Some common practices under this rubric as listed by the US Project on Government Oversight are: • Taking away job duties so that the employee is marginalized. • Taking away an employee’s national security clearance so that he or she is effectively fired. • Blacklisting an employee so that he or she is unable to find gainful employment. • Conducting retaliatory investigations in order to divert attention from the waste, fraud, or abuse the whistleblower is trying to expose. • Questioning a whistleblower’s mental health, professional competence, or honesty. • Setting the whistleblower up by giving impossible assignments or seeking to entrap him or her. • Reassigning an employee geographically so he or she is unable to do their job.” BANISAR, David. Whistleblowing: international standards and developments. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=1753180>. 33 “The biggest barrier that prevents whistleblowing is concern that retaliation will result from the disclosure. Retaliation can vary from minor harassment at the workplace to far more severe consequences. Typically, once an employee has blown the whistle, increasing pressure will be placed on them to rescind their statement and refrain from further disclosures.” BANISAR, David. Whistleblowing: international standards and developments. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=1753180>. 34 “[...] libel and defamation laws are used to deter whistleblowers from making disclosures. Whistleblowers are threatened by senior officials or other powerful figures who can use the court systems as effective means to silence opposition.” BANISAR, David. Whistleblowing: international standards and developments. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=1753180>. 35 “A- (i) Whistleblower protections are intended to guarantee the exercise and full enjoyment of a Whistleblower’s person and property, and the conservation of a Whistleblower’s working conditions without fear of retribution or threats.” OAS. Rule 101.11: Procedures for whistleblowers and protections against retaliation. Disponível em: <http://www.oas.org/legal/english/gensec/EXOR1403_APPENDIX_A.doc>.

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Frente a tais dissabores usualmente experimentados pelo whistleblower, torna-se relativa a

importância da existência de premiação, ou mesmo a condenação do ofensor à reparação de danos. Na

grande maioria das vezes, a premiação não fará frente às dificuldades enfrentadas pelo whistleblower

durante o processo de apuração dos fatos, muito menos às sequelas pessoais, profissionais e sociais

que permanecerão após o fim de todo o processo. Daí porque, não raras vezes, são colhidas

manifestações de whistleblowers no sentido de que todo o processo de relato e apuração foi muito

mais difícil do que o imaginado e de que pouco efeito teve a premiação quanto à atenuação de tais

dificuldades. Por isso, alguns whistleblowers são expressos em afirmar que o principal móvel para o

relato é simplesmente o desejo de que as irregularidades sejam sanadas, em benefício do interesse

coletivo, não sendo a premiação o principal motivo para o relato.

Abordagens legais quanto à averiguação da boa-fé do whistleblower

Quando da elaboração legislativa, com frequência surge preocupação quanto ao tratamento e, em

especial, à seleção das informações a serem coletadas. Uma primeira preocupação é no sentido de

evitar que reportantes tenham a intenção não de informar, mas de trazer dificuldades infundadas para

pessoas e empresas. Essa preocupação pode ser vista no teor do artigo 33 da Uncac, quando estabelece

que os Estados devem considerar incorporar, nos seus sistemas legais domésticos, medidas

apropriadas para proteção às pessoas que, de boa-fé e com bases razoáveis, reportem fatos às

autoridades públicas. Por sua vez, a Convenção Interamericana de Combate à Corrupção, em seu

artigo III, item 8, estabelece que os Estados-partes estabelecerão “Sistemas para proteger funcionários

públicos e cidadãos particulares que denunciarem de boa-fé atos de corrupção”.

Todavia, a exigibilidade desse requisito de boa-fé pode gerar algumas dificuldades, e, assim, o

que se vê, na prática, é a adoção de tempero para evitar distorções aos sistemas de whistleblower. Isso

porque a inserção de um requisito de boa-fé pode despertar debates sobre o teor anímico do

whistleblower, sem que esse debate seja realmente o interesse público a se buscar, transferindo a

análise antes para quem relata do que para quem deve ser investigado. O interesse, nos programas,

reside fundamentalmente em ter ou não a informação que conduza à apuração de fato importante ao

interesse público. Esse é foco. Frequentemente, porém, a primeira defesa daquele sobre quem se

revelam atos inapropriados é direcionar dúvidas sobre quem reportou, e não esclarecer o que lhe cabe.

O professor Vaughn, analisando condicionantes de tais espécies, contidas em dezenas de legislações

dos estados americanos, encontrou a utilização de “expressões problemáticas” que vão além, exigindo

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que o ato de reportar seja feito “sem malícia” ou “sem consideração de benefício pessoal”.36 Sobre tais

condicionantes, esclarece que elas pecam por focar mais atenção na pessoa do whistleblower do que na

informação revelada.37

Vaughn esclarece, ainda, que o conceito de boa-fé, nas diversas legislações estaduais

americanas, em geral, está ligado ao conhecimento ou não de falsidade da informação: “Algumas

legislações requerem que o whistleblower aja apenas em boa-fé, seja definindo esse termo, seja

excluindo a proteção se o whistleblower souber que a revelação é falsa, ou, adicionalmente, em alguns

diplomas, se agir com negligência deliberada sobre sua veracidade ou falsidade”.38

Na legislação americana, objeto do estudo do Professor Vaughn, adiciona-se por vezes o

requerimento de que o empregado faça uma razoável tentativa de determinar a correção da informação

revelada. Tendo, ao momento do estudo (1999), encontrado tais requisitos, Vaughn estabelece

apropriada crítica no sentido de que “Esse requisito pode impor uma obrigação de investigar para que

se possa cumprir o requisito de se ter um conhecimento razoável”. No aspecto, o sistema europeu traz

importante equilíbrio ao tema, reconhecendo que, mesmo quando se exija alguma investigação ou

diligência de verificação, recomenda-se que ela seja atendida na medida permitida pelas

circunstâncias, conforme decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos.39

Todavia, de modo mais expresso, a inadequação da exigência de boa-fé foi, de fato, percebida

pela Comunidade Europeia, optando o Conselho Europeu por não incluí-la como requisito:

“Um número de diferentes abordagens tem sido adotado em relação ao aspecto

da boa-fé e como esta deve ser interpretada. Em um número de jurisdições, foram

levantadas preocupações relativamente ao risco de superenfatizar o elemento da boa-

fé ou misturá-lo com os ‘motivos’. Onde os indivíduos acreditam que o foco

principal seria dado aos seus motivos para reportar, e não a uma apropriada avaliação

do mérito das informações que foram dadas em boa-fé, eles podem, ao final, não

36 A inexistência de benefício pessoal não se confunde com nem afasta o direito a premiações estabelecidas em lei, conforme se verá adiante. 37 VAUGHN, Robert G. State whistleblower statutes and the future of whistleblower protection. Administrative Law Review, v. 51, n. 2, 1999. p. 604. 38 VAUGHN, idem, p. 604. 39 “The authenticity of the disclosed information. The Court, in Guja v. Moldova, reiterated that freedom of expression carries with it responsibilities, and any person who chooses to disclose information must carefully verify, to the extent permitted by the circumstances, that it is accurate and reliable. The Court, in Bucur and Toma v. Romania, bore in mind Resolution 1729 (2010) of the Parliamentary Assembly of the Council of Europe and the need to protect whistleblowers on the basis that he or she had ‘reasonable grounds’ to believe that the information disclosed was true.” NAÇÕES UNIDAS. The United Nations Convention against Corruption: resource guide on good practices in the protection of reporting persons. p. 44. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/corruption/Publications/2015/15-04741_Person_Guide_eBook.pdf>.

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 35

reportar. Tendo em vista esse risco, o Conselho Europeu não tem incluído o

elemento da boa-fé em suas recomendações.”40

A exclusão do requisito da boa-fé pela Noruega41 e a exclusão e o tratamento dado pelo Reino

Unido42 são abordagens interessantes da mitigação da existência da boa-fé para se dar proteção ao

cidadão em programas de reportantes.

Diante de tais dificuldades, o melhor caminho está em perquirir a boa-fé mediante a integração

do que se descreve legalmente como expor, acreditar em bases razoáveis, ter conhecimento

razoável ou acreditar de forma razoável (reasonable grounds ou reasonably belief) sobre os fatos

que se revela. De fato, a maioria das legislações americanas43 e das legislações de diversos países

aparentemente dá maior peso à razoabilidade dos fatos relatados, decorrendo daí a verificação, em

última análise, de se determinado ato de reportar é razoável, o que por si tende a excluir

automaticamente a má-fé. A importância desse processo de verificação reside no fato de se controlar e

perquirir a razoabilidade não pela perspectiva de quem reporta, mas de quem recebe e analisa a

informação. Por isso, “argumenta-se que o requisito da boa-fé está implícito quando se atende ao

requisito do ‘acreditar razoável’”.44

40 “A number of different approaches have been adopted in relation to the aspect of good faith and how it is interpreted. In a number of jurisdictions, concerns have been raised regarding the risk of over-emphasizing the good faith element or of mixing it up with ‘motive’. Where individuals believe the main focus would be on their motive for reporting rather than on a proper assessment of the merits of the information they could provide in good faith, they might not speak up at all. Due to this risk, the Council of Europe has not included the element of good faith in its recommendations.” NAÇÕES UNIDAS. The United Nations Convention against Corruption: resource guide on good practices in the protection of reporting persons. p. 25. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/corruption/Publications/2015/15-04741_Person_Guide_eBook.pdf>. 41 “Under Norwegian law, for example, bad faith does not rule out lawful reporting. This recognizes that the public interest is served if an employee reports reasonable suspicions, even if his or her personal motivation is malicious. In other words, the information could be necessary and useful to uncover corruption, and the motive of the person reporting does not change this (e.g. if A reports on reasonable grounds information about B, it should not matter if they have a good or bad working relationship). This approach retains the requirement of reasonable grounds and therefore can exclude protection of a reporting person who knowingly reports wrong information or should reasonably have known that the information was wrong.” NAÇÕES UNIDAS. The United Nations Convention against Corruption: resource guide on good practices in the protection of reporting persons. p. 25. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/corruption/Publications/2015/15-04741_Person_Guide_eBook.pdf>. 42 “In 2013, the United Kingdom removed the term ‘good faith’ from its law in relation to determining whether a disclosure qualifies for protection, but retained the criteria in relation to deciding the remedial compensation or reimbursement. Where bad faith is found, the compensation for a person that has been victimized due to reporting can be reduced by up to a maximum of 25 per cent if it is considered just and even-handed given all other circumstances. Ensuring that good faith is not mixed up with motive also might help to prevent the situation wherein individuals take it upon themselves to become amateur detectives rather than reporting the facts as they understand them. Otherwise, the reporting person might fear that ‘premature’ reporting could be construed as bad faith.” NAÇÕES UNIDAS. The United Nations Convention against Corruption : resource guide on good practices in the protection of reporting persons. p. 25. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/corruption/Publications/2015/15-04741_Person_Guide_eBook.pdf>. 43 VAUGHN, Robert G. State whistleblower statutes and the future of whistleblower protection. Administrative Law Review, v. 51, n. 2, 1999. p. 603. 44 VAUGHN, idem, p. 603.

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A figura do observador externo na perquirição da razoabilidade do relato

Para a codificação e a jurisprudência americanas, o requisito de o whistleblower acreditar de

modo razoável no que reporta é uma análise objetiva, conforme esclarece Vaughn: “O standard do

reasonably belief é objetivo e considera o que uma pessoa razoável, na posição do empregado

(whistleblower), acreditaria relativamente à veracidade do relato”.45 Fazendo referência à

Common Law, em precedente firmado em Lachance v. White, um estudo do G20 indica descrição

semelhante46: “O que um observador desinteressado, com o conhecimento dos fatos essenciais

(conhecidos), rapidamente determináveis, conclui pela existência, por parte do empregado, de razoável

conclusão de que as ações do governo evidenciam uma irregularidade definida pelo Código”. É

importante observar, desde logo, conforme aponta o mesmo estudo, que não é o whistleblower quem

tem o ônus da prova da boa-fé, mas sim recai sobre o investigado (empregador) o ônus de comprovar a

falta de boa-fé, pela verificação da ausência de razoabilidade no que se relatou.

A adoção do critério da razoabilidade, ao objetivar a análise de boa-fé, inserido um “observador

externo”, permite, sem maiores dilemas ético-jurídicos, a utilização de outro conceito fundamental

para o incentivo de relatos por parte dos whistleblowers. Diretamente relacionado com o escopo dos

programas sob a ótica do incentivo e da proteção estatais aos relatos, tal conceito impõe que, relatando

fatos de modo razoável, estará a pessoa automaticamente sob a proteção legal dos programas de

relatos. Caso esclarecimentos posteriores indiquem não serem corretos os fatos, ainda assim, não se

afastará todo o regime legal de proteção, incluindo-se aí, essencialmente, a imunidade civil e penal e a

proibição de retaliações.

Qualidade da informação

Também, invariavelmente, são estabelecidos requisitos quanto à espécie de informação para que

o relato seja protegido pelo programa de relatos. A primeira e maior condicionante está em a

informação estar compreendida no rol de atos ilícitos sobre os quais se pretende fomentar a atuação

estatal. Impõe-se, no aspecto, que ao público seja dado conhecimento claro e induvidoso sobre quais

espécies de fatos ou sobre quais regulamentos setoriais há interesse em relatos. No aspecto, ressalta-se

que a mera indicação de aceitação de relatos de “interesse público” pode não ser suficientemente clara,

gerando dúvidas. “Não se pode presumir que o público irá sempre saber o que se intenta com termos 45 VAUGHN, idem, p. 603. 46 “Under U.S. law, the test for determining whether a purported whistleblower had a ‘reasonable belief’ is based on whether ‘a disinterested observer with knowledge of the essential facts known to and readily ascertainable by the employee reasonably conclude that the actions of the government’ evidence the wrongdoing as defined by the statute.” OECD. G20 Anti-Corruption Action Plan. Protection of whistleblowers: study on whistleblower protection frameworks, compendium of best practices and guiding principles for legislation. p. 8. Disponível em: <http://www.oecd.org/g20/topics/anti-corruption/48972967.pdf>.

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 37

genéricos do tipo ‘o interesse público’, portanto faz sentido estabelecer um rol ou tipos de ilícitos que

são acobertados”.47

A segunda condicionante impõe o não conhecimento do relato de fatos frívolos ou vexatórios,

atribuindo-se com isso maior relevância aos programas. Assim, nada obstante tenha sido observado

um ilícito ou irregularidade, se tais fatos não apresentam uma determinada dimensão, as respectivas

informações não são processadas por meio de programas de whistleblower. Isso impõe que, primeiro,

para tramitar perante programas de whistleblower, as informações devem ser consideradas relevantes

para setores previamente identificados pelas agências. Segundo, tais informações, se for o caso, devem

ser levadas ao conhecimento de autoridades por outros canais que não o canal qualificado de um

programa de whistleblower. Exemplo claro desse aspecto é que, “na legislação americana, relatos de

violações triviais não constituem relatos protegidos pelos programas. Também o regimento do serviço

público australiano estabelece que não há obrigatoriedade de investigar relatos de whistleblowers que

sejam ‘frívolos ou vexatórios’”.48

Exemplos de filtros quanto à informação podem ser identificados na legislação americana, que,

em geral, adota como importantes as informações de perdas de recursos públicos, de abuso de

autoridade e má administração. Vaughn esclarece que

“As formas como esses conceitos são definidos são diferentemente

estabelecidas. Perdas, abuso de autoridade e má administração são definidos

amplamente. Para cada um desses, em vários estatutos, e especialmente com o

desperdício de recursos, a maioria dos Estados impõe algum requisito de magnitude,

como a grosseira perda de fundo, o claro abuso de autoridade e a grosseira má

administração.”49 (destaques nossos)

47 “Nonetheless, it cannot be assumed that the public will always know what is meant by broad terms such as ‘the public interest’, so it makes sense to set out the range or type of wrongdoing that is covered. The United States Whistleblower Protection Act, which protects those working in the federal public sector, for example, covers information relating to gross mismanagement, gross waste of funds, abuse of authority, or substantial and specific danger to public health or safety.” NAÇÕES UNIDAS. The United Nations Convention against Corruption: resource guide on good practices in the protection of reporting persons. p. 22. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/corruption/Publications/2015/15-04741_Person_Guide_eBook.pdf>. 48 “Some countries set minimum thresholds on the extent of the wrongdoing before whistleblower protection may be triggered. Protected disclosures under U.S. law, for example, include inter alia gross mismanagement and gross waste of funds. To qualify as ‘gross’ there must be something more than a debateable difference in opinion; the agency’s ability to accomplish its mission must be implicated. Furthermore, under U.S. law, disclosures of ‘trivial’ violations do not constitute protected disclosures. Australia’s Public Service Regulations also state that there is no obligation to investigate whistleblower reports that are ‘frivolous or vexatious’.” OECD. G20 Anti-Corruption Action Plan. Protection of whistleblowers: study on whistleblower protection frameworks, compendium of best practices and guiding principles for legislation. p. 9-10. Disponível em: <http://www.oecd.org/g20/topics/anti-corruption/48972967.pdf>. 49 VAUGHN, Robert G. State whistleblower statutes and the future of whistleblower protection. Administrative Law Review, v. 51, n. 2, 1999. p. 593.

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Respeito à capacidade operacional do órgão

A limitação pode decorrer, ainda, da capacidade de investigação do próprio órgão, o que diz

respeito à racionalização dos serviços da autoridade pública, calibrando-a segundo sua capacidade

operacional. Mediante o estabelecimento de limites financeiros mínimos ou prioridades de áreas de

atuação, ambos devidamente esclarecidos ao público, o programa terá capacidade de selecionar fatos

de maior relevância e interesse, evitando que o excessivo número de relatos de menor importância

possa comprometer a qualidade das investigações decorrentes dos relatos. Reversamente, indicativos

de relevância demasiadamente elevados, infrequentes, podem negar a finalidade do programa e

inclusive o direito das pessoas de participarem da administração pública, auxiliando no combate a

irregularidades.

Indicativos de relevância

Na experiência americana, pode-se ver exemplo desses indicativos de relevância. No Internal

Revenue Service, a receita federal americana, somente haverá processamento do relato e premiação no

programa de whistleblower quando os fatos relatados envolverem tributos, penalidades, juros e outras

quantias em disputa cuja soma exceda 2 milhões de dólares, para o caso de empresa. Para pessoas

físicas, a renda bruta anual do contribuinte deve ser maior que 200 mil dólares.50 Na Securities and

Exchange Commission, somente haverá pagamento de premiação a whistleblower caso as sanções

aplicadas em decorrência dos relatos excedam 1 milhão de dólares.51

Por fim, é importante observar que as agências governamentais devem ter cuidado ao aferir os

indicativos de relevância, dosando-os com a respectiva capacidade de real apuração dos relatos, pois

um importante desafio para o sucesso dos programas de whistleblower reside justamente na certeza de

que, depois de ofertados os relatos, medidas concretas serão adotadas para a sua apuração. Vaughn,

Devine e Henderson esclarecem: “Pesquisas das atitudes dos empregados federais dos Estados Unidos

50 “What are the rules for getting an award? The law provides for two types of awards. If the taxes, penalties, interest and other amounts in dispute exceed $2 million, and a few other qualifications are met, the IRS will pay 15 percent to 30 percent of the amount collected. If the case deals with an individual, his or her annual gross income must be more than $200,000. If the whistleblower disagrees with the outcome of the claim, he or she can appeal to the Tax Court. These rules are found at Internal Revenue Code IRC Section 7623(b) – Whistleblower Rules.” ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Internal Revenue Service. Whistleblower – informant award. Disponível em: <https://www.irs.gov/uac/whistleblower-informant-award/>. 51 “An ‘eligible whistleblower’ is a person who voluntarily provides us with original information about a possible violation of the federal securities laws that has occurred, is ongoing, or is about to occur. The information provided must lead to a successful SEC action resulting in an order of monetary sanctions exceeding $1 million.” ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Securities and Exchange Commission. Frequently Asked Questions. Disponível em: <https://www.sec.gov/about/offices/owb/owb-faq.shtml#P25_7310>.

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de modo consistente concluem que a principal razão dada para permanecerem silentes não é o medo de

represálias, mas a crença de que nada será mudado como resultado das denúncias”.52

Informação original

Outro aspecto ligado à qualidade da informação pode ser a exigência de que as informações

sejam originais, não conhecidas da autoridade pública ou não originadas de arquivos públicos. A

originalidade da informação está ligada ao fato de a autoridade não ter conhecimento dos fatos. Nesse

sentido, admite-se também como “original” a informação ofertada para processos investigativos em

andamento, ou seja, a respeito de fatos já conhecidos pela autoridade, porém em situações nas quais a

informação seja um elemento contributivo importante para a elucidação dos fatos. Ainda, como regra

geral, não se admitem como informações suscetíveis de premiações ao whistleblower as decorrentes de

processos judiciais ou administrativos, salvo se o whistleblower foi a fonte dessas informações.

Legislação abrangente e específica do tema

Existem diversos estudos, baseados nas experiências internacionais, destinados a subsidiar a

adoção de programas de whistleblower pelos países. As Nações Unidas, o G20, por meio da OECD, e

o Conselho Europeu apresentam estudos especializados, ofertando recomendações das melhores

práticas e guidelines. Esses estudos foram parcialmente transcritos aqui, e neles se vê consenso dos

especialistas no sentido de que os países promovam a atualização das legislações, ou a implantação de

novas legislações, seguindo essas recomendações práticas.53 Tais estudos são feitos com a consciência

de que o tema envolve complexidades importantes, a merecer detalhado tratamento. Países com

legislações não compreensivas, não abrangentes da totalidade dos aspectos ou não especificamente

voltadas a estabelecer programas com todos os seus contornos não conseguirão impor programas com

a eficácia necessária ao enfrentamento da corrupção e das fraudes públicas ou privadas. No compêndio

de boas práticas levantadas por especialistas do G20, a primeira catalogada é justamente a necessidade

52 VAUGHN, Robert G.; DEVINE, Thomas; HENDERSON, Keith. The Whistleblower Statute prepared for the Organization of American States and the Global Legal Revolution Protecting Whistleblowers. The George Washington International Law Review, v. 35, n. 4, 2003. p. 857. 53 “In their current G20 Anti-Corruption Action Plan (2013-2014), adopted in Los Cabos in 2012, G20 leaders committed to implement wide-ranging principles for ensuring that whistleblower protection plays this vital role. The current plan provides: ‘9. The G20 countries that do not already have whistleblower protections will enact and implement whistleblower protection rules, drawing on the principles developed in the [Anti-Corruption] Working Group, for which Leaders expressed their support in Cannes and also take specific actions, suitable to the jurisdiction, to ensure that those reporting on corruption, including journalists, can exercise their function without fear of any harassment or threat or of private or government legal action for reporting in good faith.” WOLFE, Simon; WORTH, Mark; DREYFUS, Suelette; BROWN, A.J. Whistleblower protection laws in G20 Countries: priorities for action. p. 8. Disponível em: <https://www.transparency.de/fileadmin/pdfs/Themen/Hinweisgebersysteme/Whistleblower-Protection-Laws-in-G20-Countries-Priorities-for-Action.pdf>.

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de que a legislação, além de ser clara e efetiva, “Seja específica para o fim de assegurar certeza e

clareza legais, e para evitar um enfoque fragmentário ao estabelecer a proteção do whistleblower”.54

A legislação não deve ser limitada ao combate da corrupção

A consciência internacional recomenda uma larga abrangência de setores e procura esclarecer

que não se deve limitar apenas contra a corrupção stricto sensu. É precisa a orientação dada pelo

Conselho de Ministros para os países da Comunidade Europeia, na Resolução 1729:

“A legislação deve ser compreensiva. A definição de relatos que são

protegidos deve incluir todos os alertas de boa-fé contra vários tipos de atos ilícitos,

incluindo todas as sérias violações aos direitos humanos que afetam ou ameaçam a

vida, a saúde, a liberdade ou qualquer outro legítimo interesse de indivíduos como

sujeitos da administração pública ou contribuintes, ou acionistas, empregados ou

consumidores de companhias privadas.”55

No mesmo sentido:

“No setor privado, informações sobre como os negócios são conduzidos são

importantes para a defesa de consumidores, para a justa concorrência no mercado e

para a apropriada regulação das atividades financeiras e negociais. Tribunais em

várias jurisdições têm decidido que não pode haver proteção de sigilo sobre

irregularidades e que as denúncias públicas são válidas e protegidas, principalmente

quando o interesse público em possuir a informação tem mais peso que o interesse

do empregador em mantê-la.”

Alerta sobre legislações fragmentárias surgidas após escândalos

Em outra ótica, sabe-se que esforços legislativos incompletos, sem a oferta de uma legislação

detalhada, podem trazer riscos ao cidadão. Assim, as pessoas, com medo de retaliações, não acessam

os programas, gerando ausência de resultados. Programas ineficientes, permitindo risco de retaliações

54 OECD. G20 Anti-Corruption Action Plan. Protection of whistleblowers: study on whistleblower protection frameworks, compendium of best practices and guiding principles for legislation. p. 19. Disponível em: <http://www.oecd.org/g20/topics/anti-corruption/48972967.pdf>. 55 “6.1. Whistle-blowing legislation should be comprehensive: 6.1.1. The definition of protected disclosures shall include all bona fide warnings against various types of unlawful acts, including all serious human rights violations which affect or threaten the life, health, liberty and any other legitimate interests of individuals as subjects of public administration or taxpayers, or as shareholders, employees or customers of private companies.” CONSELHO EUROPEU. Parliamentary Assembly. Resolution 1729 (2010): Protection of “whistle-blowers”. Disponível em: <http://assembly.coe.int/nw/xml/XRef/Xref-XML2HTML-en.asp?fileid=17851&lang=en>.

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 41

e não promovendo o esclarecimento dos fatos, trazem sombras ao invés de luz ao enforcement, ao

permitirem a propagação de exemplos de que ao relato de irregularidades seguem-se lamentáveis

danos pessoais e ausência de esclarecimentos das possíveis irregularidades.56 Nesse sentido, o

Conselho Europeu faz importante alerta, no sentido de não se ofertar uma legislação incompleta que,

na prática, seja uma armadilha ao cidadão:

“Relatar fatos sempre requer coragem, determinação, e aos whistleblowers

pelo menos deve ser dada a chance de lutar para que seus alertas sejam ouvidos sem

arriscar suas vidas e as de seus familiares. Uma legislação relevante deve primeiro e

principalmente prover uma segura alternativa ao silêncio, e não oferecer aos

potenciais whistleblowers um ‘escudo de papelão’, que será uma armadilha, ao dar a

falsa sensação de segurança.”57

A experiência de países predecessores e experts informa que o atingimento de determinados

standards de proteção, catalogados ao longo do tempo, é absolutamente fundamental para se ofertar

um grau de transparência e segurança que pavimente o acesso do cidadão para contribuir para o

Estado. Baseado em estatísticas, o estudo da OECD alerta que

“Mais países integrantes da OECD têm estabelecido legislações dedicadas à

proteção dos whistleblowers nos últimos 5 anos do que na quarta metade do século.

Entre aqueles que responderam à pesquisa da OECD de 2014, 84% adotaram

legislações dedicadas à proteção do whistleblower ou provisões correlacionadas

especificamente a proteger denúncias ou prevenindo retaliações contra o

whistleblower no setor público. Entretanto, essas leis têm sido usualmente reativas e

dirigidas (originadas) por escândalos, ao invés de serem prospectivas para o futuro.

Proteções ad hoc via provisões fragmentárias continuam a ser a norma, o que enseja

o risco de propiciar proteções menos compreensivas que uma legislação dedicada à

proteção ao whistleblower, que tenha maior habilidade para aclarar e conduzir o

processo para revelar irregularidades e prover ações para remediar retaliações das

vítimas.”58

56 CONSELHO EUROPEU. Protection of whistleblowers: Recommendation CM/REC(2014) 7 and explanatory memorandum. p. 38. Disponível em: <http://www.coe.int/t/dghl/standardsetting/cdcj/CDCJ%20Recommendations/CMRec(2014)7E.pdf>. 57 CONSELHO EUROPEU. Parliamentary Assembly. Resolution 1729 (2010): Protection of “whistle-blowers”. Disponível em: <http://assembly.coe.int/nw/xml/XRef/Xref-XML2HTML-en.asp?fileid=17851&lang=en>. 58 OECD. Committing to effective whistleblower protection. p. 13. Disponível em: <http://www.keepeek.com/Digital-Asset-Management/oecd/governance/committing-to-effective-whistleblower-protection_9789264252639-en#page2>.

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Necessidade de procedimentos claros e transparentes

Ainda, há necessidade de se ter um procedimento claro, amplo e seguro:

“Como resultado, o encorajamento de relatos deve estar associado a uma

correspondente proteção para o whistleblower. No setor público, os servidores

públicos precisam saber quais são os seus direitos e as suas obrigações em termos de

expor suspeitas de irregularidades dentro do serviço público. Esses devem incluir

regras e procedimentos claros para serem seguidos por oficiais em uma cadeia

formal de responsabilidades. Os servidores públicos também devem saber qual a

proteção que será disponibilizada a eles em caso de exporem irregularidades.

Traduzir a proteção do whistleblower em legislação legitima e estrutura um

mecanismo pelo qual os oficiais públicos podem revelar irregularidades no setor

público, protege os servidores públicos contra represálias e, ao mesmo tempo, os

encoraja a cumprirem seus deveres de atuar eficientemente, com transparência e com

alta qualidade de serviços públicos. Se adequadamente implementada, a legislação

protegendo whistleblowers do setor público pode se tornar uma das mais efetivas

ferramentas de suporte às iniciativas anticorrupção, detectando e combatendo atos de

corrupção, fraude e má gestão no setor público. A ausência de legislação apropriada

impede a luta contra a corrupção e expõe o whistleblower a riscos de retaliação.”59

Acrescento ainda: “A ferramenta nacional deve propiciar um ambiente que encoraje os relatos e

as denúncias de uma forma aberta. Os indivíduos devem se sentir livres para levantar as preocupações

de interesse público”.60

59 “As a result, encouragement of whistleblowing must be associated with the corresponding protection for the whistleblower. In the public sector, public servants need to know what their rights and obligations are in terms of exposing actual or suspected wrongdoing within the public service. These should include clear rules and procedures for officials to follow, and a formal chain of responsibility. Public servants also need to know what protection will be available to them in cases of exposing wrongdoing. 40. Translating whistleblower protection into legislation legitimizes and structures the mechanisms under which public officials can disclose wrongdoings in the public sector, protects public officials against reprisals, and, at the same time, encourages them to fulfill their duties in performing efficient, transparent and high quality public service. If adequately implemented, legislation protecting public sector whistleblowers can become one of the most effective tools to support anti-corruption initiatives, detecting and combating corrupt acts, fraud and mismanagement in the public sector. The absence of appropriate legislation impedes the fight against corruption and exposes whistleblowers to risks of retaliation.” OECD. G20 Anti-Corruption Action Plan. Protection of whistleblowers: study on whistleblower protection frameworks, compendium of best practices and guiding principles for legislation. p. 15. Disponível em: <http://www.oecd.org/g20/topics/anti-corruption/48972967.pdf>. 60 CONSELHO EUROPEU. Parliamentary Assembly. Resolution 1729 (2010): Protection of “whistle-blowers”. Item 13. Disponível em: <http://assembly.coe.int/nw/xml/XRef/Xref-XML2HTML-en.asp?fileid=17851&lang=en>.

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Reportar a uma autoridade

Decorre do artigo 33 da Uncac61 que o whistleblower possa reportar a uma autoridade

competente. Por “autoridade competente” há que se entender uma autoridade com garantias para o

livre exercício de poderes para promover a apuração dos fatos narrados, assim como desencadear

medidas de proteção, se verificadas retaliações contra o whistleblower. Estudo das Nações Unidas

alerta que

“Alguns elementos-chave que têm sido identificados e têm obstado a

efetividade de uma agência competente são suas habilidades em conduzir suas

funções imparcialmente e sem influência indevida, clara e induvidosa autoridade

para exercer suas funções – tanto para investigar e processar as irregularidades

quanto para proteger as pessoas que relatam, nos caso de retaliação –, publicidade

dos resultados dos seus trabalhos e os necessários recursos para viabilizar seu

mandato.”62

Assim, tanto no serviço público quanto em setores de recebimento de relatos no âmbito de

empresas privadas, pressupõe-se que o receptor da informação tenha suficientes garantias de

estabilidade e independência funcionais. Conforme orienta a Câmara de Comércio Exterior – ICC:

“As empresas devem apontar funcionários de alto nível e de reputação

induvidosa, com extensa experiência profissional, para serem responsáveis pelo

gerenciamento e pela administração das unidades de whistleblower e ouvidorias. A

esses profissionais deve ser dada uma ampla autonomia dentro da empresa e

possibilidade de reportar ao mais alto escalão possível dentro do grupo.”63

Isso porque, por decorrência lógica, idealmente, as mesmas garantias e imunidades concedidas

ao whistleblower devem ser estendidas a essa pessoa ou unidade receptora do relato, para que possa

61 “Article 33 is about reports to ‘competent authorities’. These are the authorities with the powers to address the wrongdoing exposed by the whistleblower – for example an anticorruption commission, an ombudsman, audit body or the police. If these authorities have effective enforcement powers and deal with the issue promptly and discreetly, there may never be any possibility of retaliation against the whistleblower.” TRANSPARENCY INTERNATIONAL. Whistleblower protection and the UN Convention Against Corruption. Disponível em: <http://www.europarl.europa.eu/meetdocs/2009_2014/documents/libe/dv/ti_report_/ti_report_en.pdf>. 62 “Some key factors that have been identified as underpinning the effectiveness of a competent agency are its ability to carry out its functions impartially and without undue influence, clear and unambiguous powers to perform its functions – whether to investigate and prosecute wrongdoing or to protect reporting persons in cases of retaliation or both, publication of the results of its work, and the necessary resources to fulfill its mandate.” NAÇÕES UNIDAS. The United Nations Convention against Corruption: resource guide on good practices in the protection of reporting persons. p. 38. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/corruption/Publications/2015/15-04741_Person_Guide_eBook.pdf>. 63 “Enterprises should appoint high level personnel of undisputable repute and extensive work experience to be in charge of the management and administration of their whistleblowing units or ombudsservice. This personnel should be given a large autonomy within the enterprise and report to the highest echelon possible within the group.” INTERNATIONAL CHAMBER OF COMMERCE – ICC. ICC guidelines on whistleblowing. Disponível em: <http://www.iccwbo.org/Data/Policies/2008/ICC-Whistleblowing-Guidelines/>.

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com tranquilidade exercer o múnus que lhe é atribuído. A pessoa ou comissão que recebe essa espécie

de relatos está especialmente prevista no artigo 36 da Uncac, pois entre suas atribuições se encontra o

combate à corrupção. Nos termos da Convenção,

“deve-se assegurar a existência de um órgão ou de órgãos ou pessoas

especializadas no combate à corrupção por meio do poder público. Esse órgão,

órgãos ou pessoas devem ter a necessária independência, de acordo com os

princípios dos sistemas legais de cada Estado, para serem capazes de conduzir suas

funções de modo efetivo e sem qualquer influência indevida.”

Isso importa, em última análise, dizer que, assim como o whistleblower não pode ser punido

quando narrar fatos cuja ilicitude não se comprove, a autoridade que recebe os relatos, fazendo seu

juízo sobre a existência de razoabilidade no relato, deve ela também ter imunidade civil e penal,

presente sempre a mantença de suas garantias funcionais. Isso não impede que, para efeitos civis e, de

modo precípuo, para eventuais fins indenizatórios, o órgão que sedia a unidade venha a ser chamado a

efetuar a indenização por abusos.

Seria desejável que o relato devesse ser orientado a uma autoridade alocada no próprio órgão ou

empresa, acelerando-se o processo de correção das irregularidades. Desde que eficiente o canal

interno, o procedimento de apuração tenderá a ser menos traumático, reforçando a transparência de

procedimentos do órgão e a política interna da empresa, estabelecida nos princípios de seu programa

de compliance. Essa prática favorece a qualidade no ambiente de trabalho, onde há incentivo à

liberdade de manifestação e pronta atenção às preocupações surgidas no cotidiano das relações de

trabalho. Para o órgão e para a empresa, a eficiente apuração interna certamente contribuirá para

preservar a imagem da organização e para a melhoria das relações de trabalho.

Todavia, debate-se se esse relato interno pode ser uma condição prévia para que o relato seja

procedido em outros possíveis canais, como, por exemplo, uma autoridade pública diversa ou a mídia.

Analisando a legislação americana, o professor Vaughn, em seu estudo, não encontrou um padrão nos

diversos estados. Pode-se resumir em seus achados que algumas legislações estaduais rejeitam

expressamente uma exigência de relato interno, outras são simplesmente silentes sobre o aspecto, e um

substancial número requer, entretanto, algum tipo de relato interno antes que se possa fazer o relato

para uma pessoa alheia ao empregador. Todavia, Vaughn é preciso em afirmar que

“Requerer um relato interno reside na intenção, particularmente quando

correlacionado a violações da lei, de permitir ao próprio empregador corrigir os

fatos, antes que o enforcement externo seja chamado a atuar. Entretanto, requerer os

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relatos internamente pode sem necessidade colocar o whistleblower em risco, atrasar

a resolução da irregularidade e propiciar o acobertamento.”64

No sentido dessa conclusão,

“Um estudo demonstrou que 44% daqueles que reportaram diretamente a uma

autoridade competente ou para a mídia pensam que suas organizações, como

resultado, mudaram suas práticas. O mesmo estudo mostra que apenas 27% daqueles

que reportaram suspeitas de irregularidades para o empregador pensam que, como

resultado, alguma coisa mudou.”65

Na própria legislação americana, quando se exige o relato interno, ainda assim há alguma

previsão de hipóteses nas quais essa obrigação ficará afastada ou mitigada, em geral quando “o

empregador não procura corrigir a irregularidade, os oficiais responsáveis estão envolvidos, existe

uma situação de emergência, ou não há uma tempestiva e efetiva tentativa de corrigir os problemas”.66

Transportando esses conceitos para os setores público e privado, poderá o whistleblower não acessar a

autoridade que usualmente seria a destinatária da obrigação quando tiver dúvidas sobre a capacidade e

o comprometimento da autoridade para prontamente proceder aos atos necessários para evitar danos e

propiciar o esclarecimento dos fatos. Nesses casos, é importante haver possibilidade de acesso a uma

autoridade externa ao órgão ou à empresa.

Asseguramento do relato a agentes externos e à mídia

Todavia, em alguns casos, sequer a autoridade pública estará engajada no esclarecimento dos

fatos, não havendo alternativas que não o acesso à mídia, a qual deve ter a necessária garantia de

liberdade para expor o fato a debate.67 Essa é a recomendação do item 6.2.3 da Resolução 1729 (2010)

do Conselho o Europeu:

64 VAUGHN, Robert G. State whistleblower statutes and the future of whistleblower protection. Administrative Law Review, v. 51, n. 2, 1999. p. 600. 65 “One study showed that 44 per cent of those who reported directly to a competent authority or to the media thought that their organization had changed its practices as a result. The same study showed that only 27 per cent of those who reported suspected wrongdoing to their employer thought anything changed as a result.” NAÇÕES UNIDAS. The United Nations Convention against Corruption: resource guide on good practices in the protection of reporting persons. p. 40. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/corruption/Publications/2015/15-04741_Person_Guide_eBook.pdf>. 66 VAUGHN, Robert G. State whistleblower statutes and the future of whistleblower protection. Administrative Law Review, v. 51, n. 2, 1999. p. 601. 67 “In all jurisdictions, there is the possibility that information about wrongdoing may not be properly assessed or investigated by those specifically charged or required to do so. Around the world, individuals have put themselves at risk in order to alert the authorities and the wider public of significant issues, including corruption. [...] While it is preferable that suspected wrongdoing is addressed early and close to the source of the problem, this is not always possible, and alternative channels for reporting wrongdoing should be considered in line with international human rights standards. In practice, in certain circumstances, it may only be by virtue of public disclosures of information that corruption is properly identified and effective action is able to be taken.” NAÇÕES UNIDAS. The United Nations Convention against

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 46

“Onde os canais internos não existem, não funcionam adequadamente, ou

razoavelmente se espera possam não funcionar adequadamente, dada a natureza do

problema levantado pelo whistleblower, um canal externo de relatos, inclusive por

meio da mídia, deve ser protegido.”68

A legislação do Canadá enfrenta a questão de modo claro e eficiente, pois assegura que relato de

interesse público pode ser feito a um jornalista se a entidade para quem foi feita a revelação decide não

investigar, ou se, investigado, não tenha havido qualquer ação, ou, ainda, não tenha o whistleblower

sido notificado a respeito em seis meses.69 Por outro lado, em geral, não haverá proteção ao

whistleblower se relatar fatos que não foram aceitos como razoáveis pelos próprios órgãos de

investigação. Essa é a regra, por exemplo, do programa da OEA. O acesso à mídia, no programa da

OEA, assim como em diversas legislações, é protegido quando (i) há um significante perigo à saúde

pública ou à segurança, perigo substancial de danos ou violações de leis; (ii) os empregados da OEA

têm base para acreditar que as vias para reclamações não garantiriam a ausência de retaliações, ou

haveria risco de ocultação ou destruição de provas; (iii) não existiram providências no prazo de 120

dias por parte do Secretário-Geral.70

Nesse contexto, salvo situações urgentes de risco à saúde pública, ao meio ambiente, à segurança

e aos consumidores, parecer ser razoável oportunizar-se um tempo à autoridade para atuar, antes de

completa exposição dos fatos. Também parece, na visão deste autor, ser possível, livremente, a

divulgação das decisões da autoridade administrativa que apreciaram os fatos, somente incorrendo em

responsabilidade caso haja excessos puníveis nas manifestações ou críticas das conclusões das

autoridades.

Corruption : resource guide on good practices in the protection of reporting persons. p. 39. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/corruption/Publications/2015/15-04741_Person_Guide_eBook.pdf>. 68 “6.2.3. Where internal channels either do not exist, have not functioned properly or could reasonably be expected not to function properly given the nature of the problem raised by the whistle-blower, external whistle-blowing, including through the media, should likewise be protected.” CONSELHO EUROPEU. Parliamentary Assembly. Resolution 1729 (2010): Protection of “whistle-blowers”. Disponível em: <http://assembly.coe.int/nw/xml/XRef/Xref-XML2HTML-en.asp?fileid=17851&lang=en>. 69 “In some of its states, Australia provides that a public interest disclosure can be done to a journalist if the entity to which the disclosure was made decided not to investigate it, or investigated it but did not recommend any action, or did not notify the whistleblower after six months.” OECD. G20 Anti-Corruption Action Plan. Protection of whistleblowers: study on whistleblower protection frameworks, compendium of best practices and guiding principles for legislation. p. 22. Disponível em: <http://www.oecd.org/g20/topics/anti-corruption/48972967.pdf>. 70 OAS. Rule 101.11: Procedures for whistleblowers and protections against retaliation, (d)(vi)(a).

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Autoridade com competência para promover o esclarecimento de fatos irregulares e para

apreciar retaliações

Na implantação dos sistemas de proteção ao whistleblower, é importante a definição sobre a

existência, ou não, de autoridades diversas para (i) apreciar o mérito dos fatos irregulares, ou seja,

correlacionados à atribuição institucional da agência ou do órgão regulador; (ii) apreciar as notícias de

retaliação ao whistleblower. Entende-se que seja desejável a separação dessas atribuições, pois essa

separação permite que funcionários especialmente treinados foquem a atenção em sua área de

expertise,71 quer seja no exercício de atividade fiscalizatória, quer seja no asseguramento de medidas

de proteção. Nos Estados Unidos, o Office of Special Counsel, órgão essencialmente de investigação e

proteção ao whistleblower no serviço público federal, pode requerer que uma agência investigue as

alegadas irregularidades, mesmo que a agência esteja relutante para tanto. Os whistleblowers são

convidados pelo Office of Special Counsel a comentar a qualidade da investigação da agência e as

ações corretivas prescritas, baseando-se na visão de que os whistleblowers são eles próprios muito

frequentemente experts no assunto de suas preocupações. O Office of Special Counsel apresenta ainda

a atribuição de manter diálogo com as agências envolvidas para ter certeza de que foram tomadas

medidas razoáveis para o esclarecimento das preocupações levantadas pelos whistleblowers.72 Esses

71 “Competent authority to receive complaints about reprisals: same or separate? Consideration should be given as to whether and how to separate the function of investigating the substance of a disclosure and any complaints of reprisals against the reporting person. Doing so at an early stage can help delineate the different skill sets and specializations that may be required of the respective staff. Functional separation between these two tasks helps to ensure that those who are properly trained can focus on their area of expertise and build specialist knowledge, including in matters of reprisals, and that there is no perceived conflict of interest between how the information is handled and how the reporting person is treated. The Office of Special Counsel132 of the United States or the Anti-Corruption and Civil Rights Commission (ACRC) of the Republic of Korea (as described in chapter II, B.2) separate, to some extent, the investigation of the wrongdoing from the investigation into any reprisals taken against the individual reporter – though they are the main point of contact for both issues. In New Zealand, reports of wrongdoing and complaints of retaliation are handled by separate bodies. Protected disclosures may be made to competent authorities, including the New Zealand Ombudsman’s Office, but the application of the anti-victimization provisions of the Human Rights Act 1993 that are applicable to whistleblowers is overseen by the Human Rights Commission. This approach also reduces the risk of perceived bias against a whistleblower because the assessment of their claim of retaliation is clearly separated from and therefore not influenced by the investigation into the report of suspected malpractice, particularly if no wrongdoing is found. So while much will depend on the existing legal and institutional context, States parties will need to consider whether competent authorities should have the mandate both to investigate reports of wrongdoing and corruption and to protect the individuals who report to them. This is particularly relevant as more attention is being paid worldwide to the role of competent authorities in investigating wrongdoing and holding the services or companies they oversee to account for any malpractice that is reported.” NAÇÕES UNIDAS. The United Nations Convention against Corruption: resource guide on good practices in the protection of reporting persons. p. 79-80. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/corruption/Publications/2015/15-04741_Person_Guide_eBook.pdf>. 72 “The Office of Special Counsel has the authority to investigate and prosecute violations of the rules protecting federal workers against retaliation for whistleblowing (under the Whistleblower Protection Act). It also plays a key oversight role in reviewing government investigations of potential misconduct. Based on a complaint by a whistleblower, the Office may require an agency to investigate the alleged wrongdoing, even if it is reluctant to do so. Whistleblowers are invited by the Office of Special Counsel to comment on the quality of the agency investigation and the corrective actions prescribed – based on the view that whistleblowers themselves are most often experts in their own right on the subject matter of their concerns. The Office also maintains a dialogue with the investigating agency to make sure that the actions taken are reasonable and that they address the concerns raised by the whistleblowers.” NAÇÕES UNIDAS. The United Nations

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 48

pressupostos, incluindo-se referida possibilidade de o whistleblower, enquanto expert, fazer

comentários sobre as investigações procedidas, são assegurados também no Programa de

Whistleblower da Organização dos Estados Americanos.73

Ciente da importância desse diálogo para fortalecer o combate a irregularidades, ainda

recentemente, o Congresso Americano, ao emendar a importante legislação da False Claims Act, que

assegura ao whistleblower inclusive o direito de ação em favor do estado, previu, por meio das

alterações promovidas pelo Fraud Enforcement and Recovery Act – Fera,

“maior liberdade ao Departamento de Justiça para compartilhar informações

obtidas por meio de ‘demandas de investigações civis’ com os reportantes e com as

demais agências federais e estaduais. Antes do Fera, aos reportantes era comumente

negado acesso a documentos e informações ofertados pelo investigado ao governo

em resposta a uma CID (reclamação). Dar acesso às informações produzidas em

resposta às reclamações pode permitir que reportantes que careçam de um

conhecimento específico complementem alegações especulativas ou genéricas com

as informações obtidas pelo governo, evitando, assim, o arquivamento de um relato

que de outra forma seria legalmente insuficiente.”74

Certeza de cobertura pelo programa

Uma vez efetuado o relato, é importante que o reportante tenha a certeza de que está sob a

proteção legal do programa respectivo. Estando adequadamente posto, o programa há de informar os

direitos, os deveres e as possíveis proteções, identificando quem tomará as decisões de interesse do

reportante, notadamente quanto a duas vertentes principais: i – promoção do esclarecimento dos fatos

reportados; ii – proteção contra possíveis retaliações.

Convention against Corruption: resource guide on good practices in the protection of reporting persons. p. 71-72. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/corruption/Publications/2015/15-04741_Person_Guide_eBook.pdf>. 73 OAS. Rule 101.11: Procedures for whistleblowers and protections against retaliation. Disponível em: <http://www.oas.org/legal/english/gensec/EXOR1403_APPENDIX_A.doc>. 74 “FERA also gives the DOJ more freedom to share information obtained using CIDs with relators and federal and state agencies. Prior to FERA, relators were often denied access to documents and information that a defendant in an FCA case or a party under investigation produced to the government in response to a CID. Allowing access to information produced in response to CIDs could enable relators who lack specific knowledge of violations to supplement speculative, generalized allegations with information obtained by the government, and thereby avoid dismissal of an otherwise legally insufficient complaint.” SOZIO, Stephen G.; REAM, Rachael A. Amendments to the False Claims Act expand exposure to the health care industry. Bar Journal, 2013. Disponível em: <http://www.jonesday.com/files/Publication/4d682d05-7337-42f7-9c4c-2caa93d75fea/Presentation/PublicationAttachment/195ffe82-0358-4b10-a84b-3335b3dccc71/Sozio_Ream_March13-reprint.pdf>.

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Possibilidade de resguardo da identidade

A possibilidade de relatar fatos à autoridade mediante preservação da identidade do reportante é

requisito fundamental na tentativa de assegurar proteção ao whistleblower contra retaliações.

Assegurada na legislação americana pelo menos desde 1989,75 ela atualmente faz parte de todos os

estudos internacionais sobre as melhores práticas, sendo adotada por diversos países. O

reconhecimento da proteção da identidade, porém sob a ótica do anonimato, encontra-se previsto de

modo expresso na Convenção das Nações Unidas para o Combate à Corrupção, em seu artigo 13, item

2. Apenas para ilustrar, no setor privado, colhe-se da Política para Whistleblowers da empresa Hyundai

Motor Índia Limited idêntica opção pela proteção da identidade, a qual “deve ser mantida confidencial

a todo tempo, exceto durante o curso de um procedimento legal”.76

Conforme já se observou anteriormente neste estudo, a proteção da identidade não se confunde

com o anonimato. A proteção de identidade é regra de confidencialidade, pela qual o Estado se

compromete a não revelar o nome de quem com ele colabora. Essa confidencialidade é baseada no

pleno conhecimento, pelo Estado, da identidade do whistleblower, o que não ocorre no anonimato. O

mero resguardo da identidade, embora seja importante ferramenta de proteção, representa, na outra

face da moeda, aparente mitigação da proteção que seria dada pelo anonimato. O anonimato, todavia,

enfrenta dificuldades jurídicas, pois usualmente não pode ser usado em processos administrativos ou

judiciais. No sentido do exposto, colhe-se:

“Um ingrediente essencial para um sistema efetivo é assegurar aos

whistleblowers que não queiram ser identificados que a sua confidencialidade será

respeitada. Isso significa que as suas identidades não serão reveladas fora da

organização para a qual eles reportaram sem os seus consentimentos. Alguns países

requerem que os whistleblowers forneçam seus nomes para as autoridades, mas

asseguram a confidencialidade, estabelecendo como requisito que os funcionários

dessas autoridades não irão revelar qualquer detalhe pessoal do whistleblower sem o

seu consentimento. Em pelo menos um país, os nomes dos whistleblowers são

substituídos por códigos de identificação. O anonimato (que significa que ninguém

sabe quem é o whistleblower) é uma incompleta e insatisfatória proteção. A

identidade do whistleblower pode sempre ser deduzida das circunstâncias, e o fato de

a revelação ser anônima pode focar a atenção na identidade da pessoa que fez o

75 US Code Title 5, Section 1213(h), conforme emenda da Lei Whistleblower Protection Act, de 1989. 76 HYUNDAY Motor India Limited Whistleblower Police. 7(a). Disponível em: <http://www.hyundai.com/wcm/idc/groups/sggeneralcontent/@in/documents/sitecontent/mdaw/mdkz/~edisp/pdf_in_wb_policy.pdf>.

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 50

relato (e não no relato). Mais ainda, alegações anônimas são difíceis para as

autoridades públicas prosseguirem, e a cultura do anonimato não é sadia.”77

Por sua vez, a Recomendação (2014) 7 do Conselho Europeu, ao prever os princípios para a

legislação comunitária, estabelece: “Princípio V: Whistleblowers devem ser assegurados de que será

mantida a confidencialidade de suas identidades, sujeita à garantia do devido processo legal”. Assim,

evitando-se o anonimato, porém assegurando-se a preservação da identidade do reportante,

idealmente, apenas mediante o consentimento do whistleblower poder-se-ia revelar sua identidade.

Todavia, alguma legislação, por exemplo, no setor púbico americano, entende que pode haver certo

tempero, quando, por exemplo, a revelação da identidade seja necessária para prevenir “um iminente

perigo à saúde pública, à segurança, ou uma iminente violação de qualquer lei criminal”. Também por

decorrência do devido processo legal, pode surgir situação em que seja necessária a revelação, quando

se denote a intenção deliberada de causar danos, decorrente de relatos falsos e não razoáveis. É

importante anotar que, como consectário da confidencialidade que se assegura, não existe direito

autônomo do investigado em saber quem relatou o fato à autoridade, devendo haver cláusulas na lei,

expressivas de interesse jurídico concreto, para eventual levantamento dessa proteção. As defesas da

pessoa ou da empresa devem ser dirigidas contra os fatos narrados, e não contra o autor do relato.

Assim, o interesse jurídico a sugerir o levantamento da identidade deve se restringir à hipótese de o ato

de reportar denotar deliberada intenção de prejudicar, como, por exemplo, a juntada de prova falsa

produzida pelo reportante. Ou seja, um interesse jurídico, qualificado portanto.

É importante não confundir prova falsa com prova obtida por meio ilícito. A prova ilícita deve

ser excluída, pelo dever constitucional de não se admitir provas obtidas por meio ilícito. O principal

efeito é a nulidade da prova em si, e, eventualmente, a nulidade das provas dela decorrentes, segundo a

teoria dos frutos da árvore envenenada. De acordo com a teoria, em sua origem, no direito americano,

são excluídas tanto as provas obtidas diretamente de uma conduta ilegal quanto as provas obtidas por

derivação da prova ilícita (Segura v. United States, 468 U.S. 796, 804 [1984]). A teoria é atenuada por

algumas exceções, advindas da chamada Teoria da Atenuação: i – houve a obtenção de outras provas

por fontes independentes; ii – a prova dos fatos seria obtida mesmo na ausência da prova ilícita; iii –

existência de circunstância interveniente posterior tornando remota a ligação entre a prova ilícita e as

demais provas (Hudson v. Michigan, 547 U.S. 586, 593 [2006]). Ou seja, o dever de exclusão das

provas obtidas por meio ilícito, e das delas decorrentes, se não ultrapassadas as possibilidades de

atenuação, deve recomendar à autoridade administrativa ou judicial o arquivamento da investigação

trazida pelo whistleblower, mesmo antes das considerações sobre a razoabilidade do relato.

77 TRANSPARENCY INTERNATIONAL. Whistleblower protection and the UN Convention Against Corruption . p. 14. Disponível em: <http://www.europarl.europa.eu/meetdocs/2009_2014/documents/libe/dv/ti_report_/ti_report_en.pdf>.

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 51

Cláusulas claras dos limites para acesso à identidade dão equilíbrio aos interesses daquele que

supostamente tenha sido indicado como responsável por ato ilícito. É importante lembrar que os

relatos sempre apresentam um filtro, antes do seu processamento e antes de qualquer ato de exposição

externa. Esse filtro se constitui na avaliação da razoabilidade do relato, tomando-se como razoável a

perquirição da conclusão que um terceiro, desinteressado, alheio aos fatos, retiraria das informações e

dos indícios trazidos. Ou seja, um critério lógico e objetivo, alheio ao whistleblower. Se, por um lado,

esse filtro evita relatos aventureiros, por outro lado, impõe que, ressalvada a hipótese de deliberada

intenção de causar dano pela produção de provas falsas ou adulteradas, o exercício do juízo de

razoabilidade pela autoridade tenha consequências jurídicas. A primeira consequência jurídica é que,

reconhecida a razoabilidade, o reportante atinge o requisito para estar abrigado pelo programa de

proteção. A segunda é que a aceitação da razoabilidade do relato pela autoridade, se mal feita, atrai

eventual processo indenizatório contra a própria administração, e não contra o reportante, o que, de

fato, é uma garantia de ressarcimento de reclamos pela pessoa indicada, diante da solvência

permanente do Estado.

Cautelas antes do levantamento da identidade

Correlatamente, caso alguma autoridade, administrativa ou judicial, decida pelo levantamento da

identidade, cumpre sejam ainda assim respeitadas algumas garantias. A primeira é que o whistleblower

possa, antes de fazer o relato, ter um razoável conhecimento de em que hipóteses a lei permitirá o

levantamento da identidade. Poderá assim debater seus pressupostos, quando necessário. Isso permite

um fair game na relação Estado-whistleblower, de modo que possa o relatante avaliar os riscos, de

modo muito especial em relação a retaliações, caso, embora colaborando com o Estado, venha a ter o

seu nome revelado. Há que se garantir ao whistleblower a decisão, baseada no critério do risco-

benefício, de modo a, se for o caso, renunciar em auxiliar o Estado, o que não deixará de ser um

modelo frustrante. O segundo é que ele deve poder recorrer a uma autoridade administrativa ou

judicial quanto ao levantamento e ter um tempo razoável para preparar-se, inclusive, se for o caso,

buscando tutela judicial. O terceiro é que se conceda ao whistleblower um prazo razoável para as

medidas que entender cabíveis, antes de qualquer ato de publicidade de seu nome. O programa da

Organização dos Estados Americanos – OAS apresenta regra clara no sentido de que se conceda ao

whistleblower prévio conhecimento de eventual revelação de sua identidade.78

78 Rule 101.11: Procedures for whistleblowers and protections against retaliation (c) (v): “No disclosure of identity or identifying information by an authorized investigating or reviewing Staff Member to individuals other than other authorized investigating or reviewing Staff Members may occur unless the Whistleblower has been notified in advance of the disclosure”. OAS. Rule 101.11: Procedures for whistleblowers and protections against retaliation. Disponível em: <http://www.oas.org/legal/english/gensec/EXOR1403_APPENDIX_A.doc>.

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ANÁLISE SOBRE A PEC 287/16: O PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DA DIGNIDADE HUMANA

EM FACE DAS ALTERAÇÕES NAS REGRAS DE CONCESSÃO DA APOSENTADORIA POR

IDADE AVANÇADA DO REGIME GERAL DE PREVIDÊNCIA SOCIA L ∗

ANDREI FERREIRA FREDES Professor do Centro Universitário Cenecista de Osório. Doutorando em Direito. Mestre em

Direito pela PUCRS. Especialista em Direito Público pelo IDC. Advogado

GABRIEL DEBASTIANI DE MELLO Bacharel em Direito. Advogado.

RESUMO: O objetivo deste artigo é verificar a compatibilidade entre o princípio fundamental da

dignidade da pessoa humana e a reforma previdenciária, especificamente sobre as possíveis alterações

das regras de concessão de aposentadoria por idade avançada do regime geral de previdência social.

Destarte, este estudo é composto por revisões bibliográficas a respeito do direito fundamental à

previdência social e suas atuais regras, do princípio da dignidade humana e do princípio da proibição

de retrocesso; bem como da análise documental do projeto de emenda à Constituição nº 287/16 e de

dados públicos sobre expectativa e qualidade de vida. Por fim, concluiu-se que a reforma

previdenciária está em desacordo com o princípio da dignidade humana, pois restringe o núcleo

essencial do direito à previdência social, estabelecendo requisitos inadequados à realidade social do

povo brasileiro.

PALAVRAS -CHAVES: Princípio Fundamental da Dignidade Humana; Previdência Social;

Aposentadoria por idade avançada.

ABSTRACT: The objective of this article is to verify the compatibility between the fundamental

principle of human dignity and the social security reform, specifically about the possible changes in

the rules for the granting of old-age pension of the general social security scheme. Therefore, this

∗ Artigo recebido em 8/3/2018 - Aprovado em 17/3/2018

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study is composed of bibliographical reviews about the fundamental right to social security and its

current rules, the principle of human dignity and the principle of prohibition of social retrocession; as

well as the documentary analysis of the draft amendment to Constitution No. 287/16 and public data

about expectation and quality of life. Finally, it was concluded that the social security reform is in

disagreement with the principle of human dignity, since it restricts the essential core of the right to

social security, establishing inadequate requirements to the social reality of the Brazilian people.

KEYWORDS: Fundamental Principle of Human Dignity; Social Security; Old-age pension.

1 Introdução

O poder executivo propôs, em cinco de dezembro de 2016, a emenda à Constituição Federal nº

287, que poderá alterar as disposições sobre a concessão de benefícios previdenciários. O tema vem

sofrendo críticas pelos estudiosos do direito, bem como pelo próprio povo brasileiro, como

vislumbrado em manifestações populares, pois as alterações podem representar ameaça às árduas

conquistas sociais. Dentre as mudanças passíveis de críticas, destaca-se, neste trabalho, as que

interferem nas atuais regras de concessão da aposentadoria por idade avançada do regime geral de

previdência social.

Este estudo permeia sobre os campos do direito constitucional e previdenciário. Preocupa-se

com um dos principais pilares de sustentação da ordem social: o princípio da dignidade da pessoa

humana, utilizando-o como norteador para a análise do direito social à previdência. Especificamente,

objetiva-se verificar se as pretendentes alterações nas regras de concessão de aposentadoria por idade

avançada advindas da reforma previdenciária podem apresentar retrocesso social e se são compatíveis

com o referido princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Emprega-se, neste trabalho, o método científico dedutivo, pois pretende-se estabelecer uma

relação lógica entre as afirmações normativas e principiológicas, principalmente do direito

constitucional, para tentar chegar a uma conclusão específica, consoante à reforma previdenciária.

Uma vez que: “no raciocínio dedutivo, a conclusão, ou consequente, está contida nas premissas, ou

antecedente, como a parte no todo.”(CERVO, 2007. p. 47)

Deste modo, verifica-se as seguintes premissas e conclusões: afirmando-se que os direitos

fundamentais sociais são expressões do princípio da dignidade humana, questiona-se: as alterações

provenientes da reforma previdenciária suprimem e/ou restringem o direito fundamental social à

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 54

previdência? Se sim, o projeto de emenda em tela encontra-se em desacordo com o princípio da

dignidade humana e, portanto, incompatível com a Constituição brasileira.

O trabalho faz uso, do ponto de vista procedimental, da pesquisa bibliográfica e documental.

Revisa-se doutrinas existentes a respeito do direito previdenciário e constitucional com enfoque ao

direito fundamental à previdência e a dignidade da pessoa humana, bem como trará ao conhecimento

detalhes a respeito das atuais regras de concessão da aposentadoria por idade avançada. Além disso, o

trabalho analisa as possíveis alterações provenientes da proposta de emenda à Constituição nº 287/16 e

reúne dados estatísticos sobre expectativa e qualidade de vida obtidos por entidades públicas.

Para tanto, o presente artigo foi dividido em três grandes títulos. O primeiro título descreve as

fundamentações do princípio constitucional da dignidade humana, bem como aborda a relação do

mesmo com o direito social à previdência e a importância da proibição de retrocesso; o segundo,

brevemente adentra em explanações sobre as atuais regras de concessão da aposentadoria por idade

avançada e demonstra as possíveis alterações da reforma previdenciária; no terceiro, tem-se a

apresentação de dados públicos do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e da OMS

(Organização Mundial da Saúde) sobre expectativa e qualidade de vida do povo brasileiro para

fundamentar a conclusão deste estudo. Por fim, tem-se conclusão.

2 O Princípio Constitucional da Dignidade Humana

Os ordenamentos jurídicos posteriores ao trauma mundial, ocasionado pela segunda grande

guerra e as atitudes bárbaras do nazi-fascismo, tendem a reconhecer que todo ser humano é titular de

um dos direitos mais importantes: a dignidade. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10

de dezembro de 1948, em face dos prejuízos ocasionados pela guerra, salienta tal direito como

universal. (LEITE, 2014. p. 43)

Não obstante, o princípio da dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República

brasileira, deste modo, situando-se no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal: “A República

Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal,

constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III - a dignidade da

pessoa humana;”. Destarte, este princípio funciona como norte para a interpretação de todos os outros

direitos e garantias previstos na carta magna. É um fundamento, e como tal, não se pode relativizar,

pois absoluto e pleno. (RIZZATO, 2010. p. 60)

Para devanear, em busca da compreensão sobre o que é a dignidade humana: há autores que

consideram a isonomia como principal garantia constitucional; tal princípio, não se pode negar, é de

suma importância, especialmente para o tema em tela, pois a previdência social busca equalizar a

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 55

sociedade; contudo, pode-se perceber que a isonomia, como qualquer outra garantia constitucional,

visa concretizar essencialmente o direito à dignidade que toda pessoa possui. (RIZZATO, 2010. p. 59)

O conceito de dignidade está sempre em construção, pois a mudança de costumes e valores são

constantes. Além disso, torna-se um trabalho árduo delimitar um conceito que pode variar de acordo

com cada cultura e/ou época. No entanto, para que seja aplicado, faz-se necessária tentativa de

delimitação. (LEITE, 2014. p. 43)

Um dos conceitos clássicos, faz referência ao direito de liberdade, pois, para Kant, a dignidade

existe se o indivíduo possui autonomia em sua vontade, ou seja, a razão: característica de seres

racionais. A vontade deve ser legisladora do ser que tem o fim em si mesmo, ademais, Kant (1995, p.

32) classifica:

No reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Uma coisa que tem um preço pode ser

substituída por qualquer outra coisa equivalente; pelo contrário, o que está acima de todo preço e, por

conseguinte, o que não admite equivalente, é o que tem uma dignidade.

Concordando com Kant, mas tomando ciência de um conceito mais atual, para Sarlet (2007, p.

69-70), a dignidade é inerente a todo ser humano, uma vez que é uma qualidade intrínseca,

competindo ao Estado e à comunidade o acatamento de um complexo de direitos e deveres que

impeçam qualquer ato prejudicial ou desumano para seus integrantes e que, ao mesmo tempo,

garantam condições mínimas para uma existência saudável. Nas palavras de Sarlet (2007, p. 73):

(...) qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser

humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por

parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um

complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa

tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano,

como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para

uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa

e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em

comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito

aos demais seres que integram a rede da vida.

Logo, é importante frisar que o Estado e a comunidade, como responsáveis por garantir o

cumprimento do princípio da dignidade humana para todo cidadão, devem atentar às duas faces do

fundamento: limite e tarefa. Limite, pois o Estado deve observar a extensão de seus atos em função de

preservar o direito inerente à liberdade; tarefa, pois o poder público deve promover o bem-estar social

atendendo à dignidade que todos têm direito. (LEITE, 2014. p. 44).

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 56

Importa salientar neste estudo, o dever de tarefa: uma vida digna depende da existência dos

direitos sociais que devem ser providos pelo Estado. O artigo 6º, caput, da Constituição Federal, prevê:

“São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a

segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados

(...)”. Tais direitos, bem como o “ (…) direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de

uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida (...)”, previsto no artigo 225, caput, também

da Constituição, podem representar o mínimo existencial que todo cidadão deveria desfrutar através da

ação positiva do Estado. (LEITE, 2014. p. 66).

Apesar de ser difícil transferir para palavras o que seria uma vida digna, isso não implica em

fácil violação, pois é plenamente possível visualizar quando um indivíduo tem sua dignidade ferida.

Por outro lado, o conteúdo do significado de mínimo existencial não é mensurável, pois envolve muito

mais aspectos qualitativos do que quantitativos. (QUEIROZ; PRADO, 2017).

2.1 A dignidade humana e o direito fundamental à previdência social

A previdência social é o “braço” estatal que visa proteger os indivíduos dos riscos sociais:

eventos futuros e alheios à vontade ou ação humana que impossibilitam a geração de sustento para si e

para sua família. Objetivamente, a proteção ao bem-estar dos indivíduos é o cerne da previdência

social. O artigo XXV da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, corrobora:

Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e

bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais

indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou

outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle.

Na medida em que se tem constitucionalmente consolidado o direito à previdência social como

um dos direitos sociais, instrumentos conformadores do princípio da dignidade humana, observa-se,

aqui, uma obrigação de prestação do Estado para com os indivíduos: garantir uma existência digna no

momento em que os segurados estiverem prejudicados em sua capacidade laborativa. Revela-se,

portanto, o papel nuclear da previdência social: o provimento do mínimo existencial aos cidadãos que

não mais tem condições de prover sozinhos, e para si mesmos, uma vida digna. (ZANINI, 2013)

O Direito prestacional fundamental à previdência social tem como princípios a universalidade, a

uniformidade e a solidariedade e deve cobrir os riscos sociais em caso de: morte, idade avançada,

incapacidade, maternidade e desemprego involuntário. Considerando-se estes alicerces sobre os quais

a previdência social deve ser pautada, bem como a sua função amparadora, é possível afirmar que se

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torna eficaz instrumento de alcance dos objetivos constitucionais de erradicação da pobreza e de

redução de desigualdades sociais. (FILARDI, 2010)

Ressalta-se, porém, que a cobertura dos riscos sociais deve ser efetivada de modo a garantir o

mínimo existencial e não somente o mínimo vital. Importante a distinção das duas nomenclaturas na

medida em que o mínimo vital garante somente a existência de vida humana, ligada a simples

sobrevivência; o mínimo existencial, por sua vez, relaciona-se com maior abundância em qualidade,

no sentido de se ter condições para uma vida saudável, uma vida boa, digna, com independência e

segurança. Somente a partir da conformação de uma cobertura estatal que garanta o mínimo

existencial perante os riscos sociais é que se pode confirmar a adequação ao princípio norteador da

dignidade humana. (SARLET, 2011. p. 111)

2.2 O avanço social e o princípio da proibição de retrocesso

A proteção social surgiu através da necessidade de segurança econômica para quem vendia sua

mão de obra na sociedade industrial, período em que a classe trabalhadora mais sofria por

vulnerabilidade. Portanto, através de luta por melhores condições de trabalho originou-se o que se

pode denominar de previdência social. A reforma de Bismark, na Alemanha, em 17 de novembro de

1881, criou uma concepção inovadora de Estado: um dever social de promover o bem-estar dos

trabalhadores da indústria. (IBRAHIM, 2008)

Após, o Plano Beveridge, na Inglaterra, em 1942, propôs universalizar as prestações sociais do

Estado, integrando a previdência e assistência, uniformizando e organizando o sistema de seguridade.

Atualmente, tem-se a previdência social como um direito que, em regra, impõe compulsoriamente a

filiação, possui natureza contributiva e coletiva e ampara seus beneficiários contra os riscos sociais, de

modo a acatar ao princípio da dignidade humana. (IBRAHIM, 2008)

No Brasil, observa-se a evolução da previdência social a partir das diversas medidas políticas,

jurídicas e organizacionais com a finalidade de fortalecer a proteção social em face das necessidades

existentes em cada época. Ademais, desde os primórdios, houve preocupação com a proteção social

em vista dos eventos que impossibilitassem a capacidade de prover o próprio sustento. (FREDO, 2010,

p. 58)

A Constituição de 1824 continha apenas uma disposição pertinente à seguridade social, em seu

art. 179, na qual se priorizava a construção de socorros públicos; em 1888, o decreto 9.912-A

estabeleceu aposentadoria para os empregados dos Correios que tivessem 60 anos de idade e 30 anos

de trabalho; A Constituição de 1891 foi a primeira a instituir e denominar a aposentadoria: assistência

aos funcionários públicos que ficassem inválidos a serviço da Nação; A lei Eloy Chaves, decreto n.

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4682 de 1923, é conhecida por ser a primeira norma a trazer a previdência ao Brasil, através de caixas

de aposentadoria e pensões para trabalhadores ferroviários, que no decorrer do tempo foi se

expandindo e abrangendo trabalhadores de outras diversas áreas. (MARTINS, 2016. p. 40-43)

Em 1934, a Constituição passou a prever aposentadoria compulsória aos funcionários públicos

que atingissem 68 anos de idade, como também assegurava o direito aos que ficassem inválidos com

pelo menos 30 anos de contribuição; A Constituição de 1937 não apresentou grandes mudanças, mas a

de 1946 foi a primeira a denominar “previdência social” e não mais “seguro social”; Após a

Constituição de 1967, em 1971, a lei complementar n.11 instituiu o Programa de Assistência ao

Trabalhador Rural, concedendo direito a aposentadoria para quem trabalhava no campo sem a

necessidade de contribuição pelo trabalhador; além da Emenda Constitucional n. 18 de 1981 que

previa aposentadoria para os professores que concluíssem 30 e 25 anos de exercício, homem e mulher

respectivamente. (MARTINS, 2016. p. 44-50)

Por fim, a Constituição Federal de 1988 foi a primeira, na história do Brasil, a dispor um título

específico para os direitos e garantias fundamentais. Neste título, no capítulo II, estão consagrados os

direitos sociais básicos, dentre os quais se encontra o direito fundamental à previdência social. Os

direitos sociais, cabe relembrar, são expressões do princípio da dignidade da pessoa humana, pois,

através deles, se busca conformar uma vida digna e saudável. (SARLET, 2014. p. 564-565)

É preciso proteger, portanto, os instrumentos compreendidos como necessários para o alcance da

dignidade humana em face de qualquer erosão abolicionista e descaracterizadora do Estado. Os

direitos sociais fundamentais, dos quais a previdência social faz parte, foram conquistados durante a

história da sociedade e não devem ser suprimidos. Para tanto, a atual Constituição prevê proteção em

seu art. 60, §4º, pretendendo a inalteração de direitos fundamentais, as denominadas cláusulas pétreas.

(FILARDI, 2010)

Salienta-se que a Constituição não veda reformas que busquem aperfeiçoamento; veda somente

as que vierem a suprimir ou reduzir direitos fundamentais em sua essência. Neste sentido, importa

dizer que a doutrina vem reconhecendo o princípio constitucional implícito da vedação de retrocesso

social: os atos legislativos posteriores à conformação de um complexo de medidas concretas que

assegurem um direito fundamental não podem suprimir ou restringir uma garantia constitucional, de

modo a causar retrocesso. (REIS, 2011. p. 352-363)

Ora, os direitos sociais já conquistados constituem uma garantia e um direito subjetivo, não

podendo, pois, o poder legislativo diminuí-los, sob pena de violação da confiança e segurança dos

cidadãos. Portanto, pode-se considerar que o princípio da proibição de retrocesso configura um limite

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 59

jurídico à atividade do legislador, pois se deve respeitar avanços sociais já conquistados.

(CANOTILHO, 2003. p. 469)

A proibição de retrocesso está intimamente ligada à ideia de que o Estado democrático de direito

deva portar, pelo menos, o mínimo da segurança jurídica de que lhe é inerente, pois se trata de

princípio fundamental da ordem jurídica estatal. A segurança jurídica, portanto, está umbilicalmente

ligada à dignidade humana: uma das mais profundas aspirações do homem é poder elaborar e realizar

projetos de vida embasados na preconcepção de estabilidade em todas as suas relações jurídicas e de

confiança nas instituições sociais e estatais. (SARLET. 2010, p. 432)

Se se imaginar uma disponibilização vulnerável dos direitos sociais por parte da ordem jurídica,

os cidadãos e seus projetos de vida pessoais seriam transformados em meros instrumentos da vontade

estatal, o que se tornaria totalmente incompatível com um Estado democrático de direito. Logo, o

reconhecimento de garantias fundamentais sociais, asseguradas pela segurança jurídica, da não

possibilidade de modificação limitadora, traduz o princípio da proibição de retrocesso. (SARLET,

2010)

Por outro lado, o princípio em tela pode apresentar objeções, como a falta de sincronia com a

atualidade econômica estatal. Todavia, é preciso considerar que a atividade legisladora encontra limite

somente na preservação do núcleo essencial de um direito fundamental: a razão do mesmo ser

conquistado; que, sem o qual, perderia até mesmo sua mínima eficácia. Desta forma, é preciso afirmar:

mesmo quando o legislador estiver autorizado a editar normas restritivas, ressalva-se a intocabilidade

de seu respectivo núcleo essencial. (SARLET, 2010, p. 402-404)

Diferentemente de outros países, como Alemanha, Grécia, Portugal, Espanha e entre outros, a

Constituição brasileira não possui expressamente a garantia de proteção do núcleo essencial de um

direito fundamental, o que não impede, e nunca impediu, o seu reconhecimento. O Supremo Tribunal

Federal e a doutrina fazem uso da ideia de inviolabilidade do núcleo essencial, justamente através do

princípio implícito da proibição de retrocesso e da interpretação das limitações materiais ao poder

constituinte de reforma previstas no art. 60, §4º, da Constituição Federal de 1988. (SARLET, 2010, p.

403)

3 A Previdência Social Brasileira

Atualmente, extrai-se da Constituição Federal que a previdência é organizada em dois grandes

tipos: os compulsórios e os complementares. Os complementares são facultativos e de origem privada.

Os regimes básicos, ou compulsórios, se subdividem em regime geral de previdência social (RGPS),

que abarca a maioria do povo brasileiro, e em regimes próprios de previdência social (RPPS), que é

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destinado aos servidores públicos. Importa discorrer, neste artigo, sobre o RGPS, especificamente no

tocante à concessão de aposentadoria por idade avançada. (MARTINS, 2016, p. 411-418)

3.1 As atuais regras de concessão da aposentadoria por idade avançada

Basilarmente, conforme previsão constitucional, a concessão de aposentadoria por idade

avançada pode ser conferida ao segurado de duas formas: por tempo de contribuição ou por idade. No

artigo 201, §7º, inciso I, da Constituição Federal, tem-se a aposentadoria por tempo de contribuição: o

segurado pode requisitar seu benefício ao completar trinta e cinco anos de contribuição, se homem, e

trinta anos, se mulher. Por outro lado, tem-se a aposentadoria por idade, prevista no inciso II do

dispositivo legal supracitado, na qual o segurado pode se aposentar ao alcançar sessenta e cinco anos,

se homem, e sessenta, se mulher.

No entanto, para a aposentadoria por idade é necessário que o segurado (filiado após 24 de julho

de 1991) cumpra a carência: uma exigência de se ter, no mínimo, cento e oitenta contribuições, cerca

de quinze anos, para receber o benefício. Insta asseverar que a renda mensal inicial da aposentadoria

parte do percentual de 70% do salário de benefício (média aritmética simples dos 80% maiores

salários da vida laboral do segurado) acrescida de 1% para cada ano de contribuição, portanto, o

segurado deve contribuir por trinta anos para garantir 100% do salário de benefício. (IBRAHIM, 2011.

p. 588-589)

Para a aposentaria por tempo de contribuição, também se tem outras observações a serem feitas,

são elas: a incidência do fator previdenciário sobre o salário de benefício e a “regra 85/95

progressiva”. Sabe-se, no entanto, que a aposentadoria por tempo de contribuição, em regra geral,

garante 100% do salário de benefício na renda mensal inicial ao se completar o tempo de contribuição

necessário. (IBRAHIM, 2011. p. 600)

Ocorre que há, na modalidade de aposentadoria por tempo de contribuição, a incidência do fator

previdenciário: um valor determinado através de uma fórmula com variáveis como: idade do segurado

no momento da aposentadoria, tempo de contribuição e expectativa de sobrevida definida e atualizada

pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O fator é multiplicado pelo salário de

benefício do segurado e o resultado pode aumentar ou reduzir a renda mensal inicial. (MARTINS,

2010. P. 310-311)

Portanto, a incidência do fator pôde ser entendida como uma estratégia de desincentivo às

aposentadorias por tempo de contribuição, pois é um meio de controle intrínseco da idade mínima para

a aposentação. O desestímulo é ocasionado pelo valor inicial do benefício poder ser alterado de acordo

com a idade do segurado no momento da requisição da aposentadoria. Em outras palavras, se o

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cidadão decidir se aposentar em idades inferiores a desejada, por exemplo, o fator previdenciário

reduziria a renda mensal inicial, pois resultaria em um valor menor que 1 (um) a ser multiplicado pelo

salário de benefício. (FAZIO, 2016. P. 712-713)

Tal regra de controle, o fator previdenciário, fez com que muitos homens e mulheres brasileiros

percebessem aposentadoria por tempo de contribuição abaixo dos 100% da média dos 80% maiores

salários, por se aposentarem antes da idade mínima desejada. Ou seja, foi possível perceber uma

aposentadoria por idade indiretamente inserida dentro da aposentaria por tempo de contribuição, sob

pena de redução do benefício. (FAZIO, 2016. p. 713)

Em 2015, com a lei nº 13183/15, surgiu a “regra 85/95 progressiva”. Trata-se de regra baseada

em pontuação, sendo tais “pontos” determinados pela soma do tempo de contribuição e idade: a

mulher e o homem que obtêm oitenta e cinco e noventa e cinco pontos com o tempo mínimo de trinta

e trinta e cinco anos de contribuição, respectivamente, podem optar pela não incidência do fator

previdenciário em seus benefícios iniciais, garantindo 100% do salário de benefício em suas rendas

mensais iniciais. (MARTINS, 2010. P. 450)

3.2 As alterações do projeto de emenda à Constituição nº 287/16

Após considerações sobre as atuais regras, é preciso, antes de elencar as alterações pretendentes,

entender o porquê da reforma. A principal justificativa é a alegação de déficit orçamentário, que o

sistema não possui recursos para o pagamento de todos os benefícios devido ao processo de

envelhecimento, aumento da expectativa de sobrevida e queda na taxa de fecundidade do povo

brasileiro. Desta forma, diminuindo o número de contribuições e aumentando as despesas. Em

números, expostos na proposta de emenda à Constituição nº 287/2016:

[…] em 2060 o Brasil terá 131,4 milhões de pessoas em idade ativa – compreendida entre 15 e

64 anos de idade – representando uma população menor do que os atuais 140,9 milhões de pessoas

nesta faixa etária. […] estima-se que o número de idosos com 65 anos ou mais de idade crescerá

262,7%, alcançando 58,4 milhões em 2060.

Em contrapartida, e diante do alegado déficit orçamentário, estranho não se falar na DRU

(Desvinculação de Receitas da União), a qual, atualmente, destina 30% dos recursos arrecadados pela

seguridade social para outros fins, isto é, retira-se o numerário que deveria ser destinado à área social

para aplicação em outras áreas nas quais o governo entender necessárias, como o pagamento de

dívidas. Entretanto, discussões mais aprofundadas quanto ao orçamento da União fogem ao escopo

deste trabalho, cujo foco é a relação entre as alterações previdenciárias e os direitos fundamentais.

(CORREIA, 2016)

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 62

É possível vislumbrar mudanças drásticas na proposta de emenda à Constituição nº 287. Dentre

as alterações previstas, ressalta-se as que interferem nos atuais meios de aposentadoria por idade

avançada, a saber: a extinção da aposentadoria por tempo de contribuição, a alteração da idade mínima

e tempo mínimo de contribuição para concessão do benefício e disposições a respeito do cálculo da

renda mensal inicial da aposentadoria.

A primeira, e uma das principais mudanças, é a alteração da idade mínima para a aposentação:

sessenta e cinco anos para homens e sessenta e dois anos para mulheres. A mudança está prevista no

artigo 201, § 7º, da Constituição Federal, que poderá ter a seguinte redação, atualizada em três de maio

de 2017: “É assegurada aposentadoria no regime geral de previdência social: I - ao segurado que

completar sessenta e cinco anos de idade, se homem, e sessenta e dois anos de idade, se mulher, e

vinte e cinco anos de contribuição (...).”

Além da extinção da aposentadoria por tempo de contribuição, é possível, no mesmo pretendente

dispositivo, notar a inclusão da exigência de vinte e cinco anos de contribuição, além da idade mínima

para a obtenção da aposentadoria. A carência, portanto, que atualmente é de cento e oitenta

contribuições, cerca de quinze anos, poderá ser acrescida em dez anos. Ou seja, tem-se um único modo

de aposentação com idade mínima e carência aumentadas.

Ademais, no pretendente artigo 201, § 8ºB, da Constituição Federal, nota-se alteração, também,

no modo de cálculo para a apuração da renda mensal inicial da aposentadoria:

§ 8º-B O valor da aposentadoria, por ocasião da sua concessão, corresponderá: I - nas hipóteses

do inciso II do § 1º, do inciso I do § 7º e do § 8º, a 70% (setenta por cento) da média referida no § 8º-

A, observando-se, para as contribuições que excederem o tempo de contribuição mínimo exigido para

concessão do benefício, os seguintes acréscimos, até o limite de 100% (cem por cento), incidentes

sobre a mesma média:

a) do primeiro ao quinto grupo de doze contribuições adicionais, 1,5 (um inteiro e cinco

décimos) pontos percentuais por grupo;

b) do sexto ao décimo grupo de doze contribuições adicionais, 2 (dois) pontos percentuais por

grupo;

c) a partir do décimo-primeiro grupo de doze contribuições adicionais, 2,5 (dois inteiros e cinco

décimos) pontos percentuais por grupo; (grifo do autor)

O dispositivo acima citado pretende conferir à renda mensal inicial do segurado, 70% do salário

de benefício, se completado os vinte e cinco anos de contribuição mínimos. Ou seja, se atualmente

tem-se 70% mais 15% devido ao acréscimo dos quinze anos mínimos de carência, a alteração em tela

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 63

parte do mesmo percentual (70%) ignorando acréscimos dos mínimos vinte e cinco anos de

contribuição.

Analisando o texto pretendido, percebe-se que há redução visível no benefício dos segurados.

Para garantir 100% do salário de benefício na renda mensal inicial, como se teria direito na atual regra

“85/95 progressiva”, vide subtítulo anterior, o trabalhador terá que contribuir formalmente por

quarenta anos ininterruptos. Vejamos: há o aumento de 7,5% nos primeiros cinco anos de contribuição

excedentes aos vinte e cinco; 10% nos cinco anos seguintes; e 12,5% nos cinco anos posteriores.

Totalizando, em analogia, necessários 105 e 102 pontos, para homens e mulheres, respectivamente.

Exemplificando, o segurado homem que atender aos requisitos mínimos, 65 anos de idade e 25

anos de contribuição, poderá requisitar sua aposentadoria e terá como renda mensal inicial o

percentual igual a apenas 70% do salário de benefício (média dos 80% maiores salários de

contribuição) como renda mensal inicial; se contar com 30 anos de contribuição, perceberá 77,5% do

salário de benefício; com 35 anos de contribuição, 87,5% do salário de benefício; com 40 anos de

contribuição, finalmente, perceberá 100% do salário de benefício.

4 A possível supressão do direito à aposentadoria por idade avançada

Diante da possível abolição da aposentadoria por tempo de contribuição e a consequente

inserção da regra de idade mínima de 65 anos para concessão do benefício previdenciário, bem como a

redução do valor da renda mensal inicial, algumas observações devem ser feitas em relação à

expectativa de vida do povo brasileiro. É preciso extrair as justificativas do documento de propositura

da emenda 287/16 para comparar à dados estatísticos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

e da Organização Mundial da Saúde.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, através da projeção dos níveis de mortalidade, a

partir do censo demográfico de 2010, com a extração de dados populacionais, estimativas de

mortalidade infantil e informações sobre notificações e registros oficiais de óbitos por sexo e idade,

divulga informações completas sobre a expectativa de vida do povo brasileiro. De acordo com a

publicação mais recente, datada de 2015, a atual expectativa de vida ao nascer dos brasileiros é de 75,5

anos, ainda que o Banco Mundial apresente a expectativa de 74,6 anos.

Destarte, em primeiro momento, a proposta de emenda nº 287/2016 apresenta dados estatísticos

genéricos quanto a expectativa de vida do povo brasileiro a fim de motivar o estabelecimento da idade

mínima de 65 anos, argumentando que a regra já deveria estar atualizada: “(...) é importante registrar

que a expectativa de sobrevida da população com 65 anos, que era de 12 anos em 1980, aumentou para

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 64

18,4 anos em 2015. Nesse sentido, a idade mínima de aposentadoria no Brasil já deveria ter sido

atualizada.”

A expectativa de vida em idades exatas do Brasil ganha bastante enfoque na exposição de

motivos. Ocorre que não foram divulgadas as expectativas de vida ao nascer específicas das Unidades

da Federação no documento em tela, dados que podem ser vislumbrados na tabela a seguir:

Tabela 1 – Expectativa de vida ao nascer – Brasil - 2015

Unidade da

Federação Ambos os sexos Homens Mulheres

Maranhão 70,3 66,6 74,2

Piauí 70,9 66,8 75,1

Rondônia 71,1 68,1 74,8

Roraima 71,2 68,8 74

Alagoas 71,2 66,5 76,1

Amazonas 71,7 68,4 75,2

Pará 71,9 68,2 76

Sergipe 72,4 68,2 76,7

Paraíba 72,9 69 76,8

Tocantins 73,1 70,2 76,4

Bahia 73,2 68,8 77,9

Pernambuco 73,5 69,5 77,4

Acre 73,6 70,4 77,2

Ceará 73,6 69,7 77,6

Amapá 73,7 71 76,5

Mato Grosso 74 70,9 77,6

Goiás 74 70,9 77,3

Mato Grosso do Sul 75,3 71,9 79

Rio Grande do Norte 75,5 71,5 79,5

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 65

Rio de Janeiro 75,9 72,3 79,3

Paraná 76,8 73,4 80,2

Minas Gerais 77 74,1 79,9

Rio Grande do Sul 77,5 74 80,9

São Paulo 77,8 74,6 80,9

D. Federal 77,8 74,1 81,3

Espírito Santo 77,9 74 81,9

Santa Catarina 78,7 75,4 82,1

Elaborado pelo autor. Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2015.

Observa-se claramente que 17 Estados brasileiros apresentam expectativa de vida inferior a 75

anos para ambos os sexos, bem como 12 Estados têm expectativa inferior a 70 anos para os homens,

em especial os estados de Alagoas, Maranhão e Piauí que expressam os menores números: 66 anos.

Em resumo, as regiões Norte e Nordeste são mais afetadas pela baixa expectativa de vida e, portanto,

seriam os Estados mais prejudicados pela reforma previdenciária, especificamente pela idade mínima

de 65 anos, impedindo que muitos indivíduos, principalmente homens, sequer tenham acesso ao

benefício previdenciário de idade avançada.

Argumenta-se, ainda, na exposição de motivos da proposta de emenda à Constituição, que,

embora a aposentadoria por tempo de contribuição favoreça os segurados que ingressaram mais cedo

no mercado de trabalho e que, portanto, merecem se aposentar mais cedo por estarem expostos a maior

desgaste, os trabalhadores de baixa renda entram de forma informal na vida laboral, ocasionando, na

maioria das vezes, o desuso da aposentadoria por tempo de contribuição por parte desta classe menos

favorecida e tão somente o uso da aposentaria por idade, pois exige apenas 15 anos de contribuição,

conforme extrai-se:

(...). Os trabalhadores menos favorecidos tendem a entrar mais cedo no mercado de trabalho,

mas submetidos a um nível maior de informalidade, além de sofrerem mais com a sua instabilidade.

Assim, os trabalhadores de menor renda acabam se aposentando por idade, benefício que requer

menos tempo de contribuição.

Portanto, a abolição da aposentadoria por tempo de contribuição é justificada por desuso pelas

classes menos favorecidas. Ora, a partir deste argumento, e diante da expectativa de vida dos

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 66

brasileiros, torna-se incompreensível a pretensão de aumento do tempo de contribuição mínima da

aposentadoria por idade para 25 anos, para ambos os sexos, além do aumento da idade mínima para 65

anos.

É simples presumir que segurados que merecem ser recompensados pelo tempo de contribuição,

por estarem expostos há mais tempo ao mercado de trabalho, não poderão se aposentar antes da idade

mínima, e os indivíduos menos favorecidos, além de ter que obedecer ao aumento da idade mínima,

ainda terão que contribuir por tempo considerável, maior do que a carência atual da aposentadoria por

idade, para simplesmente poder ter acesso ao benefício. Sem precisar explicitar a necessidade de 40

anos de contribuição para garantir o benefício previdenciário integral, o que seria praticamente

impossível para trabalhadores que submetem anos de vida à atuação informal e fazem parte da

estatística de expectativa de vida brasileira.

4.1 A expectativa de vida com qualidade do cidadão brasileiro

Ainda, sobre a necessidade de observação da expectativa de vida do povo brasileiro, é preciso

salientar que a proposta de emenda à Constituição nº 287/16 comparou a idade de aposentadoria do

Brasil com a dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico,

argumentando que:

Considerando a experiência internacional, o Brasil se enquadra entre os países que possuem as

mais baixas idades médias de aposentadoria. A título de ilustração, atualmente a idade média de

aposentadoria para homens no Brasil é de 59,4 anos enquanto a média nos países da Organização para

a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE é de 64,6 anos. Em países com o

envelhecimento populacional em estágio mais avançado que o nosso, a média já supera os 65 anos.

Em nenhum momento a proposta de emenda, ao fazer a comparação internacional, elencou as

condições sociais da população dos países membros da OCDE, nem sequer apresentou gráficos de

expectativa de vida dos mesmos. Diante desta lacuna na argumentação e da necessidade de averiguar a

adequação das pretendentes regras com a realidade do povo brasileiro, cabe apresentar aqui dados

extraídos da Organização Mundial da Saúde em relação a expectativa de vida com saúde, “Healthy life

expectancy”, do Brasil e dos países da OCDE nos quais aposentadoria por idade avançada ocorre aos

65 anos:

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Tabela 2 – “Healthy life expectancy” – Brasil e outros países - 2015

País Ambos os sexos Homens Mulheres

Brasil 65,5 63,1 67,8

Alemanha 71,3 69,7 72,8

México 67,4 65,7 69,1

Chile 70,5 68,5 72,3

Japão 74,9 72,5 77,2

Portugal 71,4 69,5 73,2

Nova Zelândia 71,6 70,7 72,4

Suíça 73,1 71,7 74,3

Suécia 72 71,1 73

Austrália 71,9 70,8 72,9

Canadá 72,3 71,3 73,3

Reino Unido 71,4 70,3 72,5

Holanda 72,2 71,2 73,2

Dinamarca 71,2 70 72,3

Espanha 72,4 70,6 74,1

Polônia 68,7 65,7 71,6

Grécia 71,9 70,2 73,6

Áustria 72 70,4 73,5

Finlândia 71 69,1 72,9

França 72,6 70,7 74,4

Bélgica 71,1 69,4 72,8

Luxemburgo 71,8 70,4 73,6

Elaborado pelo autor. Fonte: Organização Mundial da Saúde, 2015.

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 68

A apuração da expectativa de vida com saúde, publicada pela OMS, pode ser traduzida, também,

em anos de vida ajustados por incapacidade. Para tanto, leva-se em consideração dados globais de 220

doenças e lesões e mais 60 fatores de risco que levam à mortalidade prematura ou incapacidade até

posterior morte. Trata-se de um cálculo complexo que avalia a idade em que os indivíduos de uma

determinada região provavelmente irão viver, sem o acometimento de uma ou mais doenças

potencialmente incapacitantes. (WORLD HEALTH ORGANIZATION. 2016.)

Observa-se que o Brasil apresenta a menor expectativa de vida com saúde dentre os países com

os quais foi comparado na exposição de motivos da proposta de emenda à Constituição nº 287/16: 65,5

anos para ambos os sexos, 63,1 para os homens e 67,8 para as mulheres. Ainda, é possível notar que

todos os países comparados, exceto México e Polônia, apresentam expectativa igual ou superior a 70

anos. A tabela mostra claramente a impossibilidade de equiparação.

Ademais, considerando o tempo de vida com saúde após a aposentadoria, os dados da Tabela 2

revelam que a incidência de uma idade mínima para aposentação igual a 65 anos provavelmente

sujeitariam os brasileiros a apenas 6 meses de desfrute do benefício previdenciário até serem

acometidos por alguma debilitação que impeça uma vida com qualidade, em face dos outros que

contam com uma média de 6,5 anos de vida após a aposentadoria. É possível presumir, dessa forma,

que muitos brasileiros nem conseguirão se aposentar por idade avançada, mas sim por invalidez,

principalmente se observarmos a expectativa de vida com saúde do homem brasileiro que nem alcança

os 65 anos.

É preciso lembrar que o princípio da proibição de retrocesso social veda alterações legislativas

limitadoras dos núcleos essenciais dos direitos sociais, que no caso da previdência social é o amparo

do Estado em face dos riscos sociais. Destarte, a idade avançada deve estar coberta pelo dever

prestacional do Estado; quando este direito fica ameaçado diante do estabelecimento de regras

inadequadas que podem impossibilitar o desfrute ao até mesmo sequer o acesso a esta prestação, tem-

se o que se pode chamar de retrocesso social: o desrespeito por parte da atuação legislativa a direitos já

incorporados à sociedade. (CANOTILHO, 2003. P. 469)

5 Conclusão

Se o núcleo essencial do direito à previdência social é tutelar os cidadãos dos riscos sociais,

como a idade avançada, através de um dever prestacional do Estado, é preciso atentar à imposição de

normas limitadoras ou mesmo impossibilitadoras deste direito. Como já visto, o princípio da proibição

de retrocesso social apresenta sua consolidação no ordenamento jurídico brasileiro através do

entendimento doutrinário e jurisprudencial, como também tem laços na interpretação das limitações

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 69

materiais ao poder constituinte de reforma previstas no art. 60, §4º, da Constituição Federal de 1988, e,

portanto, deve ser respeitado.

A extinção da aposentadoria por tempo de contribuição, a alteração da idade mínima para 65

anos e tempo mínimo de contribuição de 25 anos para concessão do benefício e disposições

diminuidoras da renda mensal inicial da aposentadoria poderão restringir muito o acesso ao benefício

previdenciário de aposentadoria por idade avançada, levando-se em consideração, principalmente, a

expectativa de vida com saúde do povo brasileiro, que é de 65,5 anos.

Portanto, a supressão do núcleo essencial do direito fundamental à previdência apresenta claro

retrocesso social através de mudanças incompatíveis com a realidade do povo brasileiro e significa

grave violação ao princípio da dignidade humana, pois impõe-se exigências que coagem o trabalhador

a contribuir mesmo sabendo que só se aposentará quando estiver morrendo. Bane-se a esperança de

viver os últimos anos de vida tranquilamente através da merecida recompensa que o Estado proveria,

quando não se tem mais forças para o trabalho.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF:

Senado Federal, 1988;

BRASIL. Constituição (1988). Proposta de emenda à Constituição nº 287-A de 5 de dezembro

de 2016. Altera os arts. 37, 40, 109, 149, 167, 195, 201 e 203 da Constituição, para dispor sobre a

seguridade social, estabelece regras de transição e dá outras providências. Poder Executivo.

Disponível em:

<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2119881> Acesso em:

17 abr. 2017;

BRASIL. Lei nº 13.183, de 4 de novembro de 2015. Altera as Leis n.º 8.212, de 24 de julho de

1991, e 8.213, de 24 de julho de 1991, para tratar da associação do segurado especial em cooperativa

de crédito rural e, ainda essa última, para atualizar o rol de dependentes, estabelecer regra de não

incidência do fator previdenciário, regras de pensão por morte e de empréstimo consignado, a Lei nº

10.779, de 25 de novembro de 2003, para assegurar pagamento do seguro-defeso para familiar que

exerça atividade de apoio à pesca, a Lei nº 12.618, de 30 de abril de 2012, para estabelecer regra de

inscrição no regime de previdência complementar dos servidores públicos federais titulares de cargo

efetivo, a Lei nº 10.820, de 17 de dezembro de 2003, para dispor sobre o pagamento de empréstimos

realizados por participantes e assistidos com entidades fechadas e abertas de previdência

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complementar e a Lei nº 7.998, de 11 de janeiro de 1990; e dá outras providências. Diário Oficial da

União: seção 1, Brasília, DF. p. 1, 5 nov. 2015;

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 73

A DESAPOSENTAÇÃO E A RELAÇÃO CONTRIBUIÇÃO/BENEFÍCIO ∗

ELISA MARIA CORRÊA SILVA Procuradora Federal

Especialista em Direito Processual (PUCMG, 2009), Direito Público (UnB, 2010), Direito Previdenciário (PUCMG, 2012), Direitos Humanos, Teoria e Filosofia

do Direito (PUCMG, 2012) e Gestão Pública (FGV, 2016)

RESUMO: Recentemente, a Suprema Corte brasileira afirmou que é possível à lei criar o

instituto da ‘desaposentação’. Ele permite que as pessoas aposentadas que trabalham e, por isso,

pagam contribuições previdenciárias, aumentem sua aposentadoria. O instituto da ‘desaposentação’,

porém, não se encaixa no ordenamento jurídico, porque o princípio da contrapartida significa, na

verdade, que existe uma relação sinalagmática, mas não equivalente, entre as contribuições

previdenciárias e a obrigação do Estado.

PALAVRAS-CHAVE : ‘Desaposentação’. Princípio da contrapartida. Sinalagmático.

Equivalência.

ABSTRACT : Recently, the Brazilian Supreme Court has stated that it is possible for the law to

create the doctrine of ‘unretirement’. It allows retired people who work and, therefore, pay social

security contributions, to increase their retirement pension. However, the doctrine of ‘unretirement’

does not fit into the legal system, because the principle of corresponding entry actually means that

there is a synallagmatic, but not equivalent, relationship between social security contributions and

state obligation.

KEYWORDS : ‘Unretirement’. Principle of corresponding entry. Synallagmatic. Equivalence.

∗ Artigo recebido em 29/3/2018 - Aprovado em 14/4/2018

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 74

Introdução

O debate acerca da Previdência mantém-se em pauta por sua própria relevância, tendo-se

incrementado com o julgamento da tese da desaposentação pelo Supremo Tribunal Federal, o Recurso

Extraordinário nº 661.256/DF (BRASIL, 2016).

Nesse julgamento, não se declarou a inconstitucionalidade da desaposentação, mas a inexistência

de previsão legal do instituto. Afirmou-se a constitucionalidade do art. 18, § 2º, da Lei nº 8.213/91

(BRASIL, 1991b), que impede sua acolhida. Nada obsta, porém, seja a desaposentação introduzida no

ordenamento pela via legislativa. De fato, tramitam vários projetos de lei com esse objetivo1.

A comoção social em torno do tema da desaposentação funda-se, primordialmente, em um

raciocínio sinalagmático explícito ou implícito, que permeia desde conversas informais até a produção

acadêmica a respeito, sustentando uma necessária equivalência entre as contribuições previdenciárias

do segurado e a prestação previdenciária estatal.

Um dos principais argumentos a favor da desaposentação ampara-se no princípio da

contrapartida, que, afirma-se, impõe essa correlação de equivalência entre as contribuições

previdenciárias vertidas e os benefícios previdenciários auferíveis, ou, ao menos, que à contribuição

exigida corresponda alguma contraprestação estatal ao contribuinte. Veja-se a respeito o voto da

Ministra Rosa Weber no citado Recurso Extraordinário nº 661.256, de 2016:

A filiação à previdência, portanto, é um vínculo de mão dupla, em que

previstas, de um lado, receitas para o regime previdenciário e assegurada, de

outro, alguma retribuição do segurado obrigatório em face das contribuições

recolhidas ao sistema, mesmo sendo o regime de repartição simples e não de

capitalização (BRASIL, 2016, p. 146).

Neste artigo, questionar-se-á se tal premissa pode ser extraída do princípio da contrapartida na

atual fase do sistema previdenciário brasileiro.

Partindo do cerne da controvérsia relativa ao conceito do princípio da contrapartida – a

existência ou não de uma relação, geralmente denominada ‘sinalagmática’, de equivalência entre as

contribuições vertidas e os benefícios previdenciários auferidos –, analisar-se-á a natureza jurídica das

1 Em rápida pesquisa no sítio da Câmara dos Deputados na internet, identificaram-se os Projetos de Lei nos 2.682/2007, 3.884/2008, 1.168/2011, 7.842/2014, 1.990/2015, 2.920/2015, 3.541/2015, 6.576/2016 e 7.098/2017 e o Projeto de Lei Complementar nº 396/2008, que possibilitam a desaposentação ou alguma forma de recálculo do benefício do aposentado que retorna ao trabalho. No sítio do Senado, encontraram-se os Projetos de Lei do Senado nos 91/2010 e 172/2014, o Projeto de Lei da Câmara nº 78/2006, que instituía a desaposentação e foi integralmente vetado, e o Projeto de Lei de Conversão nº 15/2015, que teve vetado, dentre outros, o dispositivo que previa a desaposentação.

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 75

contribuições previdenciárias dos segurados, buscando identificar essa relação sinalagmática e seu

sentido.

Em seguida, procurar-se-á explicitar o significado do princípio à luz do sistema de repartição

simples adotado pelo Regime Geral de Previdência Social e em correlação com o princípio da

solidariedade, para, ao final, verificar se o ordenamento comportaria a introdução legislativa do

instituto da desaposentação.

O cerne da controvérsia

Analisando doutrina e jurisprudência, em especial o Recurso Extraordinário nº 661.256

(BRASIL, 2016) e a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.105 (BRASIL, 2004), constata-se que a

discussão relativa à natureza da contribuição previdenciária do segurado permeia a controvérsia acerca

da abrangência do princípio da contrapartida.

No julgamento do Recurso Extraordinário nº 661.256 (BRASIL, 2016), o Ministro Roberto

Barroso destacou a natureza de tributo vinculado da contribuição previdenciária do segurado, o que

fundamentaria a exigência da contrapartida estatal:

O que está em discussão nos presentes recursos é uma questão diversa,

referente à validade de fazer incidir a contribuição já prevista no art. 195, II –

incidente não sobre proventos, mas sobre os rendimentos do trabalho – sem

que se atribua ao trabalhador o conjunto de vantagens tipicamente associados

a essa forma de tributação vinculada (BRASIL, 2016, p. 46, grifo nosso).

Em seu voto no mesmo Recurso Extraordinário nº 661.256, a Ministra Cármen Lúcia lembrou

que a natureza da contribuição previdenciária do segurado já fora objeto de análise, para fins de aferir

a abrangência do princípio da contrapartida, no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº

3.105:

No julgamento da ação direta de inconstitucionalidade n. 3.105, o

Plenário deste Supremo Tribunal assentou a constitucionalidade das

contribuições dos servidores públicos inativos, vencida a tese da Relatora,

Ministra Ellen Graice, pela qual “a instituição de nova exação previdenciária

só se justifica[ria] com o estabelecimento de novo benefício” (voto vencido,

Ministra Ellen Gracie, ADI n. 3.105, DJe 18.2.2005, fl. 19).

Aquele debate tangenciava o que se tem no presente: a instituição de

contribuição sem contraprestação em benefícios afrontaria o “caráter

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 76

retributivo do regime de contribuição previdenciária” (voto vencido, Ministra

Ellen Gracie, ADI n. 3.105, DJe 18.2.2005, fl. 20). A questão então posta era se

poderia uma emenda constitucional onerar os servidores aposentados com

nova contribuição previdenciária, desvinculada de benefício futuro, instituindo

um “tributo sem causa”. Este Supremo Tribunal decidiu com base no caráter

tributário da contribuição social e no princípio da solidariedade (BRASIL,

2016, p. 326-327, sic, grifos do autor).

No julgado trazido a lume pela eminente Ministra, o Supremo Tribunal Federal afastou a

necessidade de equivalência entre as prestações do contribuinte e do Estado com base no caráter

tributário da contribuição, aliado ao princípio da solidariedade, sem, contudo, adentrar nos meandros

da disciplina tributária.

De fato, com o advento da Constituição de 1988, a natureza tributária das contribuições

previdenciárias restou assentada pelo Supremo Tribunal Federal, superando considerável dissensão

doutrinária (FARIAS, 1995, p. 84-85 e 83).

Fixada a natureza tributária da contribuição previdenciária do segurado – embora ainda resistam

a tanto autores renomados do Direito Previdenciário, como Wladimir Novaes Martinez (2011),

passou-se a perquirir sua classificação nas categorias de tributos, como sintetiza o Ministro Cezar

Peluso na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.105:

Admitida, pois, como suposto metodológico indiscutível, a natureza

tributária das contribuições, toda a divergência teórica reduz-se-lhes à

classificação no quadro dos tributos e, nisto, enquanto parte da doutrina

sustenta que não constituiriam espécie autônoma, senão exigências

patrimoniais que ora se revestem das características dos impostos, ora

assumem os contornos de taxas, segundo a materialidade dos fatos geradores,

outra corrente lhes adjudica autonomia conceitual por conta do assento

constitucional das finalidades e da destinação do produto da arrecadação

(BRASIL, 2004, p. 197).

Américo Lacombe (1991, p. 134, grifo nosso) defende que “a contribuição dos trabalhadores [...]

tem a natureza de taxa, porquanto está vinculada a uma atuação estatal”, enquanto nosso Professor

Sacha Calmon Navarro Coêlho (2002, p. 74-75, grifo nosso), por outro lado, vislumbra o instituto

como autêntica contribuição: “a contribuição previdenciária dos empregados e segurados do INSS são,

estas sim, sinalagmáticas. Aí existe contribuição como espécie”.

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 77

Pode-se identificar em ambas as compreensões o vínculo sinalagmático (relação bilateral) entre a

contribuição previdenciária do segurado e a atuação estatal.

O cerne da controvérsia reside na caracterização do vínculo entre a contribuição e a

contraprestação estatal, pois a medida dessa relação sinalagmática é o que permeia e condiciona a

perspectiva do princípio da contrapartida na defesa de institutos como a desaposentação.

Classificação dos tributos

Em relação à classificação dos tributos, ensina o Professor Sacha Calmon Navarro Coêlho

(2016):

duas correntes podem ser apresentadas com presença na doutrina e na

jurisprudência:

A) uma que subsume tanto os empréstimos compulsórios (tributos

causais e restituíveis) quanto as contribuições parafiscais ou especiais

(impostos afetados a finalidades específicas ou finalísticos) nas figuras do

imposto ou da taxa (Alfredo Augusto Becker, Aliomar Baleeiro, entre outros);

e

B) outra que vê as contribuições divididas em duas espécies:

contribuições de melhoria e contribuições especiais (Geraldo Ataliba,

parcialmente, e Carlos Mário da Silva Velloso, v.g.) (COÊLHO, 2016, p. 396,

sic, grifos do autor).

Marco Aurélio Greco (1972), Américo Lacombe (1991) e José Eduardo Soares de Melo (2003,

p. 154) enquadram as contribuições previdenciárias na categoria de ‘taxa’, enquanto Ataliba (2011, p.

147) distingue uma das outras conforme “a atuação estatal, posta no núcleo da h.i. [hipótese de

incidência], esteja referida direta ou indiretamente ao obrigado”.

Ponto comum entre ambas as correntes reside na doutrina dos tributos vinculados e não

vinculados, assim sintetizada pelo Professor Coêlho (2002):

Predica dita teoria que os fatos geradores dos tributos são vinculados ou

não vinculados. O vínculo, no caso, dá-se em relação a uma atuação estatal. Os

tributos vinculados a uma atuação estatal são as taxas e as contribuições; os

não vinculados são os impostos. Significa que o fato jurígeno genérico das

taxas e das contribuições necessariamente implica uma atuação do Estado. No

caso das taxas, esta atuação corporifica ora um ato do poder de polícia (taxas

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Revista Brasileira de Previdência

8ª edição – Segundo Semestre II-2018 78

de polícia), ora uma realização de serviço público, específico e divisível,

prestado ao contribuinte ou posto a sua disposição (taxas de serviço). Na

hipótese da contribuição de melhoria, a atuação estatal materializa-se através

da realização de uma obra pública capaz de beneficiar ou valorizar o imóvel do

contribuinte. Nas contribuições previdenciárias, é benefício à pessoa do

contribuinte ou de seus dependentes. O fato gerador, como é usual dizer, ou o

fato jurígeno, como dizemos nós, ou, ainda, a hipótese de incidência, como diz

Geraldo Ataliba, implica sempre, inarredavelmente, uma atuação estatal.

Exatamente por isso as taxas e as contribuições de melhoria e previdenciárias

apresentam hipóteses de incidência ou fatos jurígenos que são fatos do Estado,

sob a forma de atuações em prol dos contribuintes. Com os impostos as coisas

se passam diferentemente, pois os seus fatos jurígenos, as suas hipóteses de

incidência, são fatos necessariamente estranhos às atuações do Estado (lato

sensu). São fatos ou atuações ou situações do contribuinte que servem de

suporte para a incidência dos impostos, como, v.g., ter imóvel rural (ITR),

transmitir bens imóveis ou direitos a eles relativos (ITBI), ter renda (IR),

prestar serviços de qualquer natureza (ISQN), fazer circular mercadorias e

certos serviços (ICMS). Em todos estes exemplos, o "fato gerador" dos

impostos é constituído de situações que não implicam atuação estatal, daí o

desvínculo do fato jurígeno a uma manifestação do Estado (CTN, artigos 16,

77, 78 e 81) (COÊLHO, 2002, p. 69, sic, grifos do autor).

A partir desse vínculo, e da decorrente relação sinalagmática entre a contribuição previdenciária

do segurado e a contraprestação estatal, tem-se afirmado uma necessária equivalência entre ambas,

como asseverou o Ministro Roberto Barroso, em aparte ao voto do Ministro Edson Fachin (Recurso

Extraordinário nº 661.256, 2016): “[...] no entanto, eu acho que o legislador tem que colocar alguma

coisa no lugar do benefício correspondente à contribuição previdenciária no período a maior, sob pena

de se cobrar uma contribuição que, a meu ver, é um tributo vinculado, sem oferecer nenhum tipo de

benefício” (BRASIL, 2016, p. 221).

Anteriormente, já afirmara o Ministro Marco Aurélio na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº

3.105: “Ora, para fazer caixa, é possível, sem uma contraprestação, lançar mão da contribuição?

Não, Presidente. A exação que se cobra, hoje em dia, surge, a meu ver, como um verdadeiro imposto”

(BRASIL, 2004, p. 337, grifo nosso).

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 79

Na mesma oportunidade, a Ministra Ellen Gracie, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº

3.105 (BRASIL, 2004), equiparou a falta de equivalência entre as prestações estatal e do contribuinte

ao rompimento da relação sinalagmática:

A emenda nº 41/03, em seu art. 4º, portanto, quebra o sinalagma da

relação jurídica previdenciária, forçando aposentados e pensionistas a

efetuarem verdadeira ‘doação’ de parte de seus proventos em nome do

princípio da solidariedade intergeneracional que, embora respeitável, nem por

isso faz tábula rasa de outros princípios de igual dignidade constitucional,

como a garantia contra a bi-tributação (CF, art. 154, I) e o princípio do não-

confisco (CF, art. 150, IV) (BRASIL, 2004, p. 148, grifos nossos).

Geralmente invocam-se os princípios previdenciários – com destaque para o princípio da

solidariedade –, o sistema de repartição simples e o conceito de princípio da contrapartida limitado ao

equilíbrio financeiro e atuarial do sistema para afastar a referida relação sinalagmática da mera

equivalência entre contribuição e prestação estatal.

O Ministro Cezar Peluso, por exemplo, na referida Ação Direta de Inconstitucionalidade nº

3.105, destacou a conjugação entre o caráter contributivo do regime previdenciário e os princípios da

solidariedade, universalidade, seletividade e distributividade:

Sem avançar compromisso quanto à constitucionalidade ou

inconstitucionalidade das modificações impostas, sublinho mais uma vez que,

com o advento da Emenda nº 41/2003, o regime previdencial deixou de ser

eminentemente contributivo para se tornar contributivo e solidário, como se

infere límpido à redação que emprestou ao art. 40, caput, da Constituição da

República.

[...]

O regime previdenciário assumiu caráter contributivo para efeito de

custeio equitativo e equilibrado dos benefícios, mas sem prejuízo do respeito

aos objetivos ou princípios constantes do art. 194, § único, quais sejam: i)

universalidade; ii) uniformidade; iii) seletividade e distributividade; iv)

irredutibilidade; v) equidade no custeio; vi) diversidade da base de

financiamento. Noutras palavras, forjou-se aqui um regime híbrido, submisso a

normas de direito público e caracterizado, em substância, por garantia de

pagamento de aposentadoria mediante contribuição compulsória durante certo

período, o que lhe define o predicado contributivo, sem perda do caráter

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Revista Brasileira de Previdência

8ª edição – Segundo Semestre II-2018 80

universal, seletivo e distributivo.

Os elementos sistêmicos figurados no “tempo de contribuição”, no

“equilíbrio financeiro e atuarial” e na “regra de contrapartida” não podem

interpretar-se de forma isolada, senão em congruência com os princípios

enunciados no art. 194, § único da Constituição (BRASIL, 2004, p. 221-229,

grifos do autor).

Em voto proferido no Recurso Extraordinário nº 661.256/DF (BRASIL, 2016), o Ministro

Gilmar Mendes destacou o princípio da solidariedade como limitador do raciocínio sinalagmático de

equivalência:

De fato, no modelo brasileiro, não há uma correlação sinalagmática

entre as contribuições acumuladas e os benefícios concedidos – muito

embora deva ser considerada uma adequação entre receita e dispêndio, a se

manter o equilíbrio atuarial. Tal premissa está fundamentada no princípio da

solidariedade, que norteia o nosso modelo de seguridade social e exige a

conjunção de esforços por parte de uma coletividade para a manutenção do

sistema, independentemente de uma correlação estrita com uma contrapartida

específica para a contribuição concedida.

Não destoa, portanto, do sistema previdenciário brasileiro, à luz do

princípio da solidariedade, o entendimento de que a exigência da

contribuição não resulta, direta e imediatamente, em uma legítima expectativa

de um direito do recebimento de um benefício em contrapartida. A concessão

do benefício, ao contrário, requer o cumprimento das exigências previstas nas

normas infraconstitucionais que regulam a matéria, por expressa determinação

constante do artigo 201 da Constituição Federal.

Sob moldura fática diversa, o Supremo Tribunal Federal já teve a

oportunidade de manifestar-se a respeito, em mais de uma oportunidade,

assentando o entendimento no sentido de que da imposição da contribuição

não decorre, necessariamente, um aumento proporcional no benefício.

Refiro-me, entre outros julgados, ao que foi decidido na ADI 1.441-DF.

[...]

Ora, no referido julgamento, diante de hipóteses em que se impunha ao

segurado uma contribuição incidente sobre o benefício na inatividade, não se

identificou nenhuma inconstitucionalidade na escolha legislativa adotada,

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 81

ainda que ausente uma comutatividade estrita entre a contribuição exigida

e eventual aumento nos benefícios, na perspectiva particular do segurado.

Se, naquela oportunidade, portanto, não se considerou inconstitucional a

inobservância da referida comutatividade, com muito mais razão não se

deveria invocá-la, nesta hipótese, para se fundamentar um pedido de majoração

do benefício, em razão da opção voluntária do segurado de retornar ao

mercado de trabalho.

[...]

Atualmente, assim, a legislação em vigor reforça a necessidade de

contribuição universal, em concretização ao princípio da solidariedade, sem

vinculá-la a nenhum benefício em contrapartida específica. Nesse contexto,

portanto, é que se insere a norma prevista no artigo 18, §2º, da Lei 8.213/91,

acima especificada (BRASIL, 2016, p. 257-262, grifos nossos).

Na mesma oportunidade, a Ministra Cármen Lúcia destacou, em seu voto, além do princípio da

solidariedade, a lógica do sistema de repartição:

A vinculação linear e objetiva entre o pagamento de contribuição

previdenciária e a fruição de benefício financeiramente proporcional contraria

a lógica do sistema de repartição, fazendo da seguridade social o que,

constitucionalmente, ela não é.

[...] 41. O princípio da solidariedade eleva a dignidade da pessoa

humana à tutela coletiva, ao patamar social, implementando-se como política

concreta de Estado, consagrada pelo esforço coletivo de todos em favor de

todos, e instrumentalizada para além da exclusiva lógica financeira da

capitalização que, fechada em si, não demonstra compromisso com a justiça

social e a distribuição de renda: [...] (BRASIL, 2016, p. 329-332, grifos

nossos).

Já o voto do Ministro Edson Fachin no mesmo Recurso Extraordinário nº 661.256 baseou-se

numa visão sistêmica do princípio da contrapartida, afastando qualquer possibilidade de incidência

deste na relação individual contribuinte-Estado:

A regra da contrapartida, prevista no artigo 195, §5º, da CF, significa que

não se pode criar um benefício ou serviço da seguridade social sem a

correspondente fonte de custeio. É a preocupação do constituinte com o

equilíbrio financeiro e atuarial do sistema de previdência, mas não está a

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 82

significar que nenhuma contribuição poderá ser paga sem a necessária

correspondência em benefício previdenciário (BRASIL, 2016, p. 218, grifo

nosso).

Como visto, o caráter sinalagmático das contribuições previdenciárias dos segurados certamente

advém da sua classificação como tributos vinculados, quer sejam estes considerados taxas, quer

contribuições especiais (COÊLHO, 2016).

O sistema jurídico, entretanto, manifesta-se uno e coeso. Impossível atribuir certas

características a determinado instituto do ângulo do Direito Tributário e, ao mesmo tempo, vislumbrar

nele características opostas quando se o apreende do ponto de vista do Direito Previdenciário.

Tampouco se deve sucumbir à ideia simplista de que os princípios e objetivos previdenciários

temperariam a categoria tributária, criando um instituto híbrido.

Os princípios previdenciários justificam a opção legislativa de diferenciar o regime jurídico das

contribuições previdenciárias, como constatou o Ministro Cezar Peluso na Ação Direta de

Inconstitucionalidade nº 3.105:

Esse tratamento tributário diferenciado encontra justificação no conjunto

de elementos político-normativos representados pelo caráter contributivo do

sistema, pela obrigatoriedade de equilíbrio atuarial e financeiro, pelo

imperativo de solidariedade social, pela distribuição equitativa dos encargos do

custeio e pela diversidade da base de financiamento [...] (BRASIL, 2004, p.

234).

Tais princípios, entretanto, não determinam a natureza jurídica do instituto. Resta aos juristas

perquirirmos tal natureza até alçar solução que se coadune com o ordenamento (COÊLHO, 2002).

Análise dos tributos vinculados

O fato que instaura a relação jurídica tributária, denominado fato gerador, fato jurígeno ou

hipótese de incidência, determina a natureza do tributo (COÊLHO, 2002).

Já se afirmou que, se esse fato consistir numa atuação estatal, tratar-se-á de tributo vinculado,

como explicita Heron Arzua (1975):

[...] na esfera tributária, [o Estado] tem optado por duas fórmulas que o

atual estádio de elaboração doutrinária do direito tributário lhe oferece: ou

escolhe um fato (ou uma situação) (econômica ou jurídica) qualquer,

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 83

indicativo, às mais das vezes, de riqueza, que, se acontecido e quando

acontecido, instaura a relação jurídica tributária, desencadeando todas as

conseqüências previstas na norma tributária, ou elege a atuação estatal como

fulcro de legitimação da receita a ser exigida. E o exame de toda a

Constituição, no que concerne ao regime jurídico tributário, indica que as

espécies de tributo ou são vinculadas a uma atividade estatal ou não. Em

função desse critério, adotado pela Constituição, identificar-se-á o tributo que

se quer considerar (ARZUA, 1975, p. 16-17, sic, grifo do autor).

Por isso, Geraldo Ataliba (2011) defende que a classificação dos tributos toma por critério a

análise da hipótese de incidência:

52.5 Examinando-se e comparando-se todas as legislações existentes –

quanto à hipótese de incidência – verificamos que, em todos os casos, o seu

aspecto material, das duas, uma: a) ou consiste numa atividade do poder

público (ou numa repercussão desta) ou, pelo contrário, b) consiste num fato

ou acontecimento inteiramente indiferente a qualquer atividade estatal.

Esta verificação permite classificar todos os tributos, pois – segundo

o aspecto material de sua hipótese de incidência consista ou não no

desempenho de uma atividade estatal – em tributos vinculados e tributos

não vinculados (ATALIBA, 2011, p. 123-132, grifo nosso).

Outro ponto que se destaca é a relação pessoal do contribuinte com o fato gerador

consubstanciado na atuação estatal, ou referibilidade:

80.1.1 Outro traço essencial da figura financeira da contribuição, que

parece ser encampado - pela universalidade de seu reconhecimento e pela sua

importância, na configuração da entidade - está na circunstância de relacionar-

se com uma especial despesa, ou especial vantagem referidas aos seus

sujeitos passivos (contribuintes). Daí as designações doutrinárias special

assessment, contributo speciale, tributo speciale, etc.

80.2 Em outras palavras, se o imposto é informado pelo princípio da

capacidade contributiva e a taxa informada pelo princípio da remuneração, as

contribuições serão informadas por princípio diverso. Melhor se compreende

isto, quando se considera que é da própria noção de contribuição - tal como

universalmente entendida - que os sujeitos passivos serão pessoas cuja

situação jurídica tenha relação, direta ou indireta, com uma despesa

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 84

especial, a elas respeitantes, ou alguém que receba da ação estatal um

reflexo que possa ser qualificado como "especial" [...] (ATALIBA, 2011, p.

195, grifos nossos).

Ataliba (1978) analisou a contribuição para o Funrural (art. 15, I, Lei Complementar nº 11, de

25/05/1971, com redação da Lei Complementar nº 16, de 30/10/1973), aplicando o critério ora

exposto:

Sabe-se que a obrigação tributária nasce com a concreta ocorrência de

um fato jurígeno (a que a lei confere a força jurídica) apto a fazer nascer in

concreto cada obrigação. Conforme certas peculiaridades deste fato,

hipoteticamente descrito em lei, a obrigação dele nascida será de tributo

vinculado ou não.

Pois o legislador sempre erigirá em hipótese de incidência uma atuação

qualquer do poder público – ou um efeito desta, ou uma relação fática qualquer

desta com o obrigado – ou um outro fato qualquer, que nenhuma relação

guarda com a atuação do poder público (embora sempre se relacione de fato

com o obrigado).

[...]

Se a sua hipótese de incidência consistir, por exemplo, na a) prestação

(pelo Estado) de um serviço, b) a dispensa (pelo Estado) de um favor, c) o

oferecimento (pelo Estado) de uma utilidade, d) a remoção (pelo Estado) de

um obstáculo – tudo referentemente à pessoa que irá figurar como sujeito

passivo da obrigação – então, estar-se-á diante de tributo vinculado

(exatamente vinculado àquela atuação, a, b, c, d, etc.).

Se, pelo contrário, a hipótese de incidência configurar outro fato

qualquer, que não importe ou signifique uma atuação do Estado (como a

transferência de um bem, um empréstimo de dinheiro, um pagamento) –

sempre entre pessoas privadas – estar-se-á diante de um tributo não vinculado;

quer dizer, a hipótese de incidência do tributo não é vinculada a qualquer

atuação pública.

[...]

A Lei Complementar 11/71, colocando como hipótese de incidência da

contribuição que criou (art. 15, I) um fato que não consiste numa atuação

estatal, modelou um imposto (art. 16 do CTN).

Efetivamente, o fato descrito na lei sub examine – cujo acontecimento

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 85

causa o nascimento da obrigação – não consiste numa atuação estatal. Não é

nem a prestação de um serviço público, nem a sua disponibilidade (art. 18, I,

da Constituição), nem obra pública (art. 18, II) (ATALIBA, 1978, p. 132, grifos

do autor).

A doutrina acrescenta à análise a base imponível ou base de cálculo, eis que a medida do tributo

vinculado permite identificar a atuação estatal, além de revelar a dita referibilidade:

O critério da taxa é o custo da atividade pública, repartido pelos seus

diretos destinatários (os usuários dos serviços públicos).

67.4 O das contribuições é a grandeza do benefício especial que o

particular recebe da atuação estatal, independente do custo desta atuação

ou especial despesa que o estado é obrigado a realizar, por sua causa. É

universal a qualificação de "especial" que se dá às contribuições. É que se

reconhece que certas pessoas, de uma atividade geral - voltada para todos,

para a comunidade - recebem especial vantagem; ou causam especial

detrimento ao estado, ao contrário da generalidade dos demais integrantes

da comunidade. Daí decorre que "especial" é também o círculo dos

contribuintes, no sentido de que têm um quid plus, diante do estado (em

relação à generalidade das pessoas) (ATALIBA, 2011, p. 173, grifos nossos).

Verifique-se a análise da base de cálculo da contribuição para o citado Funrural (art. 15, I, Lei

Complementar nº 11, de 25/05/1971, com redação da Lei Complementar nº 16, de 30/10/1973),

realizada por Arzua (1975):

Outra questão prévia para a investigação da categoria tributária concerne

à base imponível – o aspecto financeiro da hipótese de incidência.

BASE IMPONÍVEL. A base imponível do tributo em foco é o valor

comercial dos produtos rurais. Com isso se afasta a tênue possibilidade de o

aludido tributo ser taxa. A base de medida deve guardar correlação com a

materialidade da hipótese de incidência, como seu atributo dimensível. Ora, é

sensível que o valor comercial do produto não é instrumento de medida de

qualquer atividade estatal, nem por ventura se constitui conseqüência dessa

atuação.

[...]

Em verdade, a base imponível é aspecto indissociável do pressuposto

material da incidência devendo ser um dado ínsito dele ou sua decorrência

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 86

necessária, sob pena de descaracterização do tributo que se pretendeu instituir.

A base de medida deve, como regra, derivar da materialidade da hipótese de

incidência; no entanto, quando isto inocorre, a base imponível é que passa a ser

o dado para se conhecer o aspecto objetivo da hipótese de incidência. In casu,

é o que efetivamente acontece. A definição da base imponível, reforçada pela

conceituação do sujeito passivo desnuda a verdadeira materialidade da

hipótese de incidência do tributo previdenciário rural. O raciocínio pode ser

assim desenvolvido: se a base imponível é o valor comercial dos produtos

rurais (art. 15, I), se o produtor deve o tributo toda vez que os vende a

adquirente, consignatário ou cooperativa (art. 15, I, a), ou sempre que, por ele

próprio industrializados, vende-os a consumidor, no varejo, ou a adquirente

domiciliado no exterior, então a situação escolhida como necessária e

suficiente à instalação da obrigação tributária é a operação de venda ou

consignação de produto rural, in natura ou simplesmente beneficiado, pelo

produtor, ou de produto rural por ele manufaturado, a comprador qualquer,

situado no País ou no exterior. Aí está revelada em todas as letras a

materialidade da hipótese de incidência do tributo previdenciário rural e, de

conseguinte, a sua natureza jurídica tributária específica. É, em suma, um

típico imposto de vendas unifásico (ARZUA, 1975, p. 68, 75-77 sic, grifos do

autor).

Para quem defende que a contribuição previdenciária do segurado constitui subespécie de tributo

vinculado, a base de cálculo também socorre na sua diferenciação da taxa:

60.4 Daí poder-se acrescentar, aos traços distintivos dos dois tributos,

mais este:

A base imponível na taxa é uma dimensão da própria atuação estatal,

enquanto na contribuição base é uma medida da circunstância intermediária

(no caso da contribuição de melhoria, medida da repercussão – a valorização –

da atuação), ou uma combinação de ambas as medidas como postula Aires

Barreto (ATALIBA, 2011, p. 151).

Il fondamento giuridico, perciò, del tributo speciale consiste o nel

particolare vantaggio del singolo o nella maggiore spesa dell’ente pubblico; e

poichè in alcune situazioni di fato i due elementi concorrono a giustificare

l’imposizione, la legge può ragguagliari il tributo o all’uno o all’altro, oppure

stabilire che per la sua determinazione debba tenersi conto di entrambi

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[...] (GIANNINI, 1974, p. 58, grifo nosso).

Em resumo, para Coêlho (2012),

é óbvio que as contribuições enunciadas no art. 149 e no 195 da

Constituição da República, dispositivos genéricos, somente serão verdadeiras

contribuições se nelas estiverem presentes três requisitos intratáveis:

a) o fato jurígeno que der causa à obrigação tributária necessariamente

deverá ser uma atuação estatal voltada a determinado grupo de pessoas,

perfeitamente identificáveis.

b) a base de cálculo necessariamente deverá ser uma dimensão do fato

jurígeno, do fato-evento, da hipótese de incidência da norma. Deve levar em

conta a atuação do Estado e não as características do contribuinte...;

c) os contribuintes devem ser necessariamente os beneficiários da

atividade estatal (nexo de referibilidade) [...] (COÊLHO, 2012, p. 129).

Natureza jurídica da contribuição previdenciária do segurado

Limita-se o presente trabalho a questionar a natureza jurídica da contribuição social dos

trabalhadores e demais segurados do Regime Geral de Previdência Social – nos termos do art. 195, II,

da Constituição (BRASIL, 1988) –, a que aqui se faz referência como ‘contribuição previdenciária do

segurado’.

O legislador estabeleceu condições diversas para a exação, discriminando grupos de

contribuintes e estabelecendo, para cada grupo, uma base de cálculo da contribuição que categorizou

sob o nome de salário de contribuição mensal. Por isso, “para o estudo das contribuições a cargo dos

segurados do Regime Geral de Previdência Social – RGPS, devemos examinar primeiramente as

definições que são dadas ao salário de contribuição” (CASTRO; LAZZARI, 2010, p. 265).

Analisando-se as diversas definições de salário de contribuição, discriminadas de acordo com as

categorias de segurados, pode-se afirmar, em resumo, que

a contribuição previdenciária incidirá sobre as verbas de natureza

remuneratória. Pelo menos três grandes grupos de importâncias integrantes

do salário de contribuição – praticamente exaurindo seu universo – podem ser

relacionados:

- o salário propriamente dito, pago em espécie e em valor fixo, e as

parcelas que o integram, segundo o art. 457, §1º, da Consolidação das Leis do

Trabalho: gratificações, abonos, comissões, percentagens e diárias quando

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 88

excedentes de 50% do salário;

- os ganhos habituais sob a forma de utilidades outras que não o dinheiro,

com a finalidade de recompensar o trabalho, nestes últimos incluídos os

pagamentos indiretos (alimentação, vestuário, transporte, moradia); e

- as gorjetas (CASTRO; LAZZARI, 2010, p. 270, grifo nosso).

Grosso modo, a base de cálculo das contribuições previdenciárias dos segurados engloba, então,

a remuneração recebida ou declarada (no caso dos segurados facultativos).

Retornando-se aos critérios de classificação segundo a teoria dos tributos vinculados e não

vinculados, passa-se a analisar a hipótese de incidência da contribuição previdenciária do segurado,

abstraindo-se das diversas modalidades discriminadas na norma (Lei nº 8.212/91, BRASIL, 1991a) em

relação a cada categoria de contribuinte segurado, eis que todas (exceto a do segurado especial) se

referem àquela base de cálculo, de modo que as diferenças não repercutem na natureza da exação.

Para Luciano Amaro (1991), o fato gerador da contribuição previdenciária do segurado consiste

no trabalho remunerado ou no salário:

Senão vejamos: a contribuição previdenciária do empregado, qual o seu

fato gerador? Trabalho remunerado, salário. O que é isso? Isso é fato gerador

de taxa? Não, onde é que está a atuação estatal nesse fato gerador? Não há aí a

atuação estatal. É um fato do contribuinte e não um fato do Estado (AMARO,

1991, p. 214, grifo nosso).

Do mesmo modo, Cordeiro (2007) destaca que a hipótese de incidência da contribuição

previdenciária do segurado repousa em fato do contribuinte:

Da mesma sorte, não há na hipótese normativa (h.i.) das contribuições

previdenciárias, como subespécie das contribuições sociais, nenhuma

referência a uma atuação estatal, ainda que indiretamente. Vale firmar, o

sujeito passivo não deve recolher tais contribuições por decorrência de uma

prestação ou utilidade fornecida pelo Estado; deve assim proceder pelo simples

fato de praticar o fato de perceber (ou pagar) salário, receita, remuneração

(CORDEIRO, 2007, p. 281-282, grifos nossos).

Em sentido diametralmente oposto, Greco (1972) não apenas identifica a atuação estatal

vinculada à contribuição previdenciária do segurado, como vislumbra a equivalência entre sua medida

e a exação, qualificando-a como taxa:

o exame do sistema previdenciário objetivo deverá demonstrar a

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 89

ocorrência de todas as características próprias do instituto da taxa.

Assim, são peculiaridades da taxa:

1. atuação estatal (atual ou potencial);

2. referibilidade direta e imediata entre o contribuinte e a atuação;

3. proporcionalidade entre a atuação e o montante do tributo (ter por base

imponível algum atributo ínsito à atuação estatal).

[...]

Ora, a análise dos mesmos [refere-se às normas que instituem

contribuições previdenciárias dos segurados e benefícios, à época] torna

patente que:

a) inúmeros são os benefícios assegurados pela Previdência Social,

caracterizando nítidas prestações por parte do Estado que configuram atuações

suas (art. 22), desempenhadas por suas autarquias previdenciárias;

b) ditos benefícios serão gozados atual ou potencialmente por certos

indivíduos (segurados ou seus dependentes) conforme se insiram numa das

hipóteses dos arts. 24 e segs. Deixando de lado o exame da situação dos

dependentes se vê que, pelo sistema brasileiro, só terão direito a qualquer

dos benefícios os "segurados" (termo cujo alcance determinaremos em outra

parte deste estudo);

c) o dinheiro necessário ao custeio das despesas oriundas dos benefícios

é obtido mediante contribuição das próprias pessoas (além de outras que

serão estudadas oportunamente) que, em potencial (por terem a qualidade de

trabalhadores), podem vir a gozar dos benefícios, a qualquer instante.

Destarte, a atuação estatal (prestação do benefício) está diretamente

referida ao obrigado (sujeito passivo da obrigação de levar dinheiro aos cofres

públicos).

Assim, hipótese de incidência da contribuição do empregado é a

prestação potencial de serviços previdenciários (uma atuação estatal)

diretamente referida ao contribuinte;

d) por fim, como é ensinamento da doutrina, deve haver certa

proporcionalidade, certa correspondência, entre a atuação estatal e o montante

devido, o que, na hipótese, se dá perfeitamente, como o demonstra o art. 23 da

Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS). Isto porque, se maior é a atuação

estatal (se maior é o benefício a que tem direito o segurado) maior deve ser o

montante de contribuição, se menor o benefício, menor a contribuição.

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Demonstrada a ocorrência, na espécie, de todos os elementos

caracterizadores de um instituto jurídico típico, podemos validamente concluir

tratar-se ‘in casu’ (contribuição do empregado) de taxa (GRECO, 1972, p.

389-390, grifos do autor).

Susy Hoffmann (1996) aponta como fato gerador das contribuições, além da atividade do

Estado, o efeito causado por ela, e aduz que, no caso das contribuições destinadas ao financiamento da

seguridade social, “a sociedade causa a atividade social por parte do Estado” (HOFFMANN, 1996, p.

162), sendo que “o critério material [da hipótese de incidência da contribuição] está na obtenção de

vantagens (indiretas) em razão da atividade estatal de seguridade social a toda sociedade”

(HOFFMANN, 1996, p. 157, grifo da autora).

Referindo-se à contribuição do empregador, por exemplo, afirma Hoffman que “não há o

benefício direto, mas há o indireto, pois o empregador, como toda a sociedade de uma forma geral,

será beneficiado com um plano de seguridade social que traga melhores condições de vida para todas

as pessoas que formam essa sociedade” (HOFFMANN, 1996, p. 156, sic).

Reputa-se tal critério excessivamente amplo, pois justificaria qualquer exação estatal, na medida

em que se pressupõe que o objetivo do Estado seja propiciar melhores condições de vida para a

sociedade, mormente quando se propõe a construir uma sociedade livre, justa e solidária e a promover

o bem de todos (art. 3º, III e IV, Constituição).

De fato, previne Misabel Derzi (2007) que

se o quisermos, poderemos transformar todas as espécies tributárias em

finalísticas, no sentido extratributário. Tudo vai depender da ideologia

dominante. O finalismo colocará os atos de aplicação dos recursos - as

despesas públicas (despesas gerais no imposto; despesas com serviços públicos

específicos e divisíveis, nas taxas; despesas com obras públicas na

contribuição de melhoria; despesas com outros serviços e atividades estatais

nas contribuições especiais; despesas com guerra e calamidade pública nos

empréstimos compulsórios) como resultado integrante da norma financeira

(não tributária) e projetará as garantias do contribuinte em campo estranho ao

Direito Tributário, de tal forma que, uma vez pago o tributo, não sendo

prestado o serviço (nas taxas); nem sendo realizada a obra pública na

contribuição de melhoria; ou não sendo efetivados os atos estatais sociais ou de

intervenção nas contribuições especiais... não poderá o contribuinte reaver do

Estado as importâncias indevidamente pagas (DERZI, 2007, p. 659, sic).

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 91

Cabe, aqui, a advertência de Heron Arzua (1975, p. 65): “a vinculação alude sempre à posição

do Poder Público e não diz respeito ao destino do produto da arrecadação”.

Nosso Professor Sacha Calmon Navarro Coêlho (2012) defende que o fato gerador da

contribuição previdenciária do segurado é uma prestação estatal, rechaça sua classificação como taxa e

critica o equívoco da doutrina ao analisar o tributo:

Veja-se o texto de Samuel Carvalho Gaudêncio [2006] quando analisa

com a metodologia supostamente de Augusto Becker as contribuições dos

empregados para a seguridade social. Confira-se:

‘Critério material: ser trabalhador ou segurado da previdência social

(195, II, a).

Critério pessoal: trabalhador e segurado / INSS (União).

Critério quantitativo: valor do salário de contribuição (alíquotas de

7,65%, 8,65%, 9% ou 11%).

Espécie tributária: taxa, diante da retributividade. O Estado presta um

serviço previdenciário e o contribuinte paga uma taxa pelo serviço prestado ou

colocado potencialmente à sua disposição.’

A erronia é total. ‘Primus’, o aspecto material não é ‘ser trabalhador e

segurado’. Ao contrário, é a União, por instrumentalidade sua, conceder

benefícios em manutenção (auxílios) e aposentadorias. ‘Secundus’ taxa não é,

porquanto inexiste a prestação de um Serviço Público de utilidade individual,

específico e divisível prestado a dado contribuinte (coleta de lixo,

fornecimento de água, etc.), nem tampouco exercício regular do poder de

polícia (um passaporte, um atestado, etc.). Aliás, as suas premissas desmentem

as suas conclusões. Se o aspecto material do fato gerador é ser ‘Segurado ou

Trabalhador’, onde está a atuação do Estado? (COÊLHO, 2012, p. 100).

Segundo ele, a dificuldade de vislumbrar a prestação estatal na hipótese de incidência da

contribuição previdenciária do segurado decorre do engano de mesclá-la à sua consequência jurídica,

ou seja, da confusão entre o elemento material da hipótese de incidência, ou fato jurígeno, e o dever

jurídico decorrente (COÊLHO, 2012):

A segunda objeção estriba-se na afirmação de que o fato gerador nas

contribuições pessoais para o seguro social (previdência geral) seria o

recebimento de salários, subsídios, vencimentos, retiradas societárias,

honorários, comissões, proventos ou pensões (recebimentos econômicos por

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parte dos segurados obrigatórios do INSS). A assertiva, aqui, igualmente não

procede, pois confunde fato jurígeno com dever jurídico. Ditos recebimentos

são valorados na consequência endonormativa para usar a terminologia do

Prof. Paulo de Barros Carvalho, na 1ª fase de suas teorizações, ou, no

prescritor do dever tributário, que é a terminologia de Lourival Vilanova.

Exegetas de pouca categorização, formalistas, positivistas, confundem o plano

da norma (ser teórico), com o plano da lei (ser legislado) e, assim, escravizados

miseravelmente pela linguagem-do-objeto, acham que o fato jurígeno é

"receber salários", etc.

Com efeito, ditos recebimentos ou um percentual deles (elemento

quantitativo do dever tributário) são eleitos para extrair o quantum devido a

título da contribuição que o segurado irá pagar, observadas as prescrições

legais. Na hipótese de incidência da norma tributária, para usar a terminologia

de Geraldo Ataliba, o elemento material são as prestações atuais e futuras do

Estado em prol dos segurados. Os atuais podem ser um auxílio-natalidade, um

auxílio-funeral, um auxílio-reclusão, um seguro-desemprego etc., e os futuros

são os proventos por aposentadorias nas suas diversas modalidades e as

pensões por morte, em prol dos beneficiários dos segurados (COÊLHO, 2012,

p. 120-121).

Decerto, a Constituição institui a contribuição social do trabalhador e dos demais segurados da

previdência social para custeio das prestações do regime geral de previdência social – art. 195, II, c/c

art. 167, XI (BRASIL, 1998) –, destacando a referibilidade da exação à prestação estatal.

Observe-se que tanto a norma regulamentadora do custeio – Lei nº 8.212/91 (BRASIL, 1991a) –

quanto a que estipula os benefícios e serviços previdenciários – Lei nº 8.213/91 (BRASIL, 1991b) –

denominam “segurado” o contribuinte (Seção I do Capítulo I do Título VI da Lei nº 8.212/91) e o

beneficiário (art. 10, Lei nº 8.213/91), respectivamente.

É assente na doutrina que, exceto para o segurado facultativo, a filiação ao regime geral de

previdência social decorre do simples exercício de atividade remunerada, independentemente de

inscrição ou mesmo do recolhimento de contribuições.

O exercício de atividade remunerada (fato do contribuinte), então, produz dois efeitos

sucessivos: um, previdenciário, que torna o dito contribuinte destinatário da proteção estatal, na forma

de benefícios e serviços da previdência social (fato do Estado), como segurado-beneficiário; outro,

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 93

tributário, decorrente do primeiro, que o torna segurado-contribuinte da exação devida em razão dessa

atuação estatal (fato do Estado).

A remuneração constitui apenas o aspecto dimensível do aspecto material da hipótese de

incidência (GRECO, 1972) da contribuição previdenciária do segurado, a ‘atuação estatal’.

Observe-se bem: o tributo não é devido em decorrência do exercício de atividade remunerada,

mas em razão do fato do Estado (referibilidade), que tem por fundamento, este sim, tal exercício. Se

não houvesse sido instituído um Plano de Benefícios da Previdência Social, como fez a Lei nº

8.213/91 (BRASIL, 1991b), o exercício de atividade remunerada não bastaria para a cobrança da

contribuição previdenciária do segurado.

É certo que existem hipóteses em que a contribuição do segurado é presumida ou dispensada,

para fins previdenciários, além de efeitos previdenciários independentes da extinção da obrigação

tributária. Também se verifica, ao contrário, que algumas prestações previdenciárias requerem certo

número de contribuições para serem concedidas ao beneficiário.

A referibilidade advém da relação bilateral entre Estado e contribuinte, independentemente da

correspondência entre a atuação estatal e a obrigação de pagar o tributo. Foi nesse sentido que se

afirmou “que o contribuinte, na espécie, não financia o sistema para os outros, mas para si próprio”

(COÊLHO, 1996, p. 173).

Isso significa que não há equivalência entre a contribuição previdenciária do segurado e a

contraprestação estatal, pois a relação sinalagmática que se instaura entre o contribuinte e o Estado se

dá de modo parcial ou mediato (COÊLHO, 1996):

[...] a distinção, muito nítida no Direito brasileiro, de contribuições que

são impostos afetados a fins específicos e contribuições especiais verdadeiras,

como as dos servidores públicos (contraprestacionais). A partir de agora, não

sendo a analisada contribuição um imposto, não há falar em capacidade

contributiva, nem tampouco em alíquotas progressivas, que são formatos para

mensurar a capacidade econômica do contribuinte. E, se como taxa não se

apropositar a soi disant contribuição, não se haverá de falar também no custo

real ou estimado do serviço prestado ou posto à disposição do contribuinte

(caráter sinalagmático imediato). Em se tratando de contribuição social-

previdenciária, com caráter sinalagmático mediato, cuja finalidade é co-

financiar, juntamente com o Estado (eqüidade), pensões e aposentadorias,

segundo cálculos atuariais, então haveremos de falar da base de cálculo como

sendo os vencimentos, e da alíquota como o índice que irá extrair dessa base o

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tributo, sempre proporcionalmente (COÊLHO, 1996, p. 173, sic, grifo nosso).

Comprova essa conclusão a análise da base de cálculo da contribuição previdenciária do

segurado. Tratando-se de autêntica ‘contribuição’, já se demonstrou que a base de cálculo deve ser a

medida da referibilidade da atuação estatal ao contribuinte (e não o valor despendido pelo Estado, para

quem não se defende seu enquadramento como taxa).

Nesse sentido, o Professor Sacha Calmon Navarro Coêlho (2012, p. 120-121, grifo do autor)

aponta a “pertinência entre a base de cálculo e o fato gerador [...], [pois] no caso da contribuição

pessoal para a seguridade, as pagas são proporcionais aos benefícios, especialmente aposentadorias e

pensões”.

Cordeiro (2007) discorda dessa análise, pois vislumbra na base de cálculo do tributo um liame

com a capacidade contributiva, ao invés da referibilidade à atuação estatal, motivo pelo qual lhe atribui

a natureza de imposto:

[...] classificar as contribuições previdenciárias como tributos vinculados

implica mesmo em afirmar que todas elas sejam inválidas. Sem embargo, ao se

admitir uma atuação estatal na sua hipótese normativa, esta se tornaria

incompatível com a base de cálculo levada a efeito.

Decerto, as contribuições possuem base de cálculo peculiar aos impostos,

tanto que já se cogitou serem um bis in idem ao imposto sobre a renda - IR -,

medindo direta ou indiretamente a capacidade contributiva do obrigado

tributário. Assim, concluir serem tributos vinculados lhes inquina com a

mácula da inconstitucionalidade, por infração ao princípio da tipologia.

[...]

Verbi gratia, no IPVA, que tem como hipótese ‘ser proprietário de

veículo automotor’, não se pode validamente extrair como base de cálculo o

rendimento do proprietário, já que a hipótese traçada não pergunta sobre

eventual rendimento auferido. Da mesma sorte, supondo que as contribuições

previdenciárias tivessem como hipótese ‘a prestação ou disponibilidade de

serviço público previdenciário’, não se poderia obter como base de cálculo os

rendimentos ou salários percebidos pelos supostos beneficiários. Ocorre que

estas bases são impostas pela Constituição (!). São as materialidades possíveis

para a inauguração desse tipo de exação. Se a prestação do serviço

previdenciário fosse a hipótese normativa da contribuição previdenciária, a

base de cálculo deste tributo somente poderia expressar uma grandeza

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 95

econômica ligada à atuação estatal previdenciária, ainda que com base em um

custo mínimo despedido. Assim, propugnar pela vinculação das contribuições

previdenciárias é olvidar-se da "materialidade tributária" tecida pelo art. 195, I

e II da CF/88, já que a base de cálculo constitucionalmente permitida apenas

relaciona-se estritamente com a capacidade contributiva (bc) - auferir salário,

receita etc. Disso se extrai que a hipótese normativa das contribuições

previdenciárias deve se relacionar, ainda que indiretamente, ao contribuinte

(CORDEIRO, 2007, p. 292-293).

Não se pode olvidar, porém, que o cálculo da maioria dos benefícios de prestação continuada

considera o salário de contribuição (art. 28, e art. 29, ambos da Lei nº 8.213/91), o que significa que a

base de cálculo do tributo se relaciona, ao menos em certa medida, à prestação estatal.

Outra objeção de Cordeiro (2007) decorre da possibilidade de os contribuintes, no caso concreto,

não reunirem os requisitos necessários, em razão das circunstâncias concretas, para fruir benefícios,

hipótese em que não restaria caracterizada a prestação estatal, pois

quanto à característica de potência dos serviços públicos, pensamos que

o seu conceito não seja suficiente ao perfazimento das notas necessárias e

suficientes ao conjunto "tributo vinculado", já que aqui exige-se uma efetiva

atuação estatal. O característico do serviço público que pode dar ensejo ao

nascimento de tributo vinculado é a ‘disponibilidade’, jamais a

‘potencialidade’, dada a evidente distinção entre ambos os termos. E a

diferença ganha contornos mais nítidos quando temos presente que serviço

público disponibilizado é serviço público efetivamente prestado. A

potencialidade da fruição pelo contribuinte, ao seu turno, remarca a existência

de serviços públicos compulsoriamente prestados. É que são exatamente esses

serviços, compulsoriamente prestados, que podem deixar de ser usufruídos

pelos administrados (CORDEIRO, 2007, p. 296).

Esquece-se Cordeiro, porém, do caráter securitário da previdência social. Além da concessão de

benefícios de prestação continuada, como aposentadorias, benefícios de caráter indenizatório, como o

auxílio-acidente, e serviços, como a reabilitação profissional, um dos objetivos da previdência social é,

justamente, disponibilizar – no sentido atribuído à palavra por Cordeiro (2007) – a proteção

previdenciária.

Não ostenta valia jurídica dizer que a contraprestação pode não ocorrer e,

portanto, cairia por terra o sinalagma e a natureza bilateral das obrigações

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 96

tributárias heterônomas que apresentam como fatos jurígenos atuações

estatais, que digam respeito aos contribuintes, sejam para satisfazer

necessidades ut singuli, ou em prol de grupos. A inanição do argumento

começa quando se compara o seguro-social ao seguro privado. Num seguro de

veículos, pode ser que o segurado pague e nada aproveite, porque o veículo

não sofreu sinistro algum. Nem por isso o sinalagma está ausente. Mas no

seguro social, ou melhor, na contribuição pessoal para a seguridade

previdenciária, sempre haverá uma contraprestação estatal justamente o motivo

da paga que é para financiá-la. Em algum momento, algum segurado requer

um auxílio-maternidade, se aposenta e passa a receber proventos ou morre e

seus beneficiários indicados passam a receber as pensões devidas (COÊLHO,

2012, p. 120-121).

Também se refuta a referibilidade invocando o sistema de repartição simples e o princípio da

solidariedade intergeracional, alegando-se que o grupo que contribui (ativos) não é o grupo

beneficiado (inativos):

A própria previdência pátria adota, como regime financeiro, o sistema de

repartição simples, com base na distribuição de riquezas e na solidariedade

humana. No referido regime de previdência permite-se que os recursos do

custeio dos benefícios por uma geração sejam concedidos à geração

antecessora. Em outras linhas, a contribuição previdenciária não se destina a

custear os próprios benefícios do contribuinte, mas sustentar uma estrutura

organizada (CORDEIRO, 2007, p. 295).

A solidariedade intergeracional, porém, não afasta a referibilidade da contribuição

previdenciária do segurado (COÊLHO, 2012):

Inútil argumentar com viés atuarial que o segurado não paga para si, mas

para a geração mais antiga e que será beneficiado pelas pagas das gerações

mais novas (sistema de repartição simples ou pacto de gerações). Isto é

verdadeiro pelo ângulo sociológico, não porém pelo ângulo jurídico. A

contraprova é simples. Se o segurado nada pagar, direito algum terá perante o

INSS, pouco lhe adiantando o tal ‘pacto de gerações’. Para fruir as atuações do

Estado em seu prol terá que contribuir obrigatoriamente, ou seja, terá que

pagar um tributo ao Estado ou a instrumentalidade sua, dele (COÊLHO, 2012,

p. 120-121, sic).

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 97

Ao contrário, a própria solidariedade intergeracional vem ressaltar a referibilidade como

princípio da solidariedade de grupo2:

Distintamente do princípio da solidariedade genérica, esculpido no art.

3º, I, da CF/88, o princípio da solidariedade de grupo tem fundamento no fato

de uma pessoa pertencer a determinado grupo social homogêneo, distinto de

outros grupos sociais, o que, portanto, lhe acarreta uma responsabilidade

social maior sobre os membros do seu grupo. A solidariedade stricto sensu

provoca uma redistribuição de recursos dentro do grupo (YAMASHITA, 2005,

p. 63-64).

Yamashita (2005, p. 66) invoca “a jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão acerca dos

requisitos cumulativos para instituição de contribuições fundadas no princípio da solidariedade de

grupo”, dos quais se destaca (BVerfGE 55, 274 – Ausbildungsplatzföderungsgesetz, apud

YAMASHITA, 2005):

a oneração parafiscal de membros de um grupo pressupõe que entre a

oneração e os beneficiários, que a contribuição especial ocasiona, exista uma

vinculação adequada. Este é o caso, quando a arrecadação da contribuição é

empregada no interesse do grupo de pessoas sujeitas à contribuição, portanto,

em benefício do grupo (YAMASHITA, 2005, p. 66, grifo do autor).

Torres (2005) também se refere a essa imprescindibilidade da contraprestação estatal em favor

do grupo, que revela a referibilidade:

O princípio da solidariedade, de dimensão constitucional, vincula a

cobrança das contribuições sociais, que passam a exibir a natureza causal ou

finalística. Se não houver os laços de solidariedade entre os que pagam o

ingresso e os que recebem o benefício estatal e, conseguintemente, se inexistir

a contraprestação estatal em favor do grupo e se não configurar a equação do

custo/benefício, será inconstitucional a cobrança da contribuição social, exceto

2 Leda de Oliveira Pinho (2007, p. 55) explicita que o princípio da solidariedade pode ser apreendido por diversas perspectivas e exemplifica, citando a ‘solidariedade vertical’, que aliaria os elementos de poupança (mantendo-se a correlação exata entre a contribuição e o benefício) com a comunhão (solidariedade) apenas em relação aos riscos, e a ‘solidariedade horizontal’, que “consiste na obrigação que as pessoas que exercem alguma atividade lucrativa têm de destinar uma parte de seus rendimentos em proveito daqueles que incorreram em determinadas situações de necessidade”, ambas identificáveis no sistema suíço de seguridade social. Segundo ela, nossa ‘solidariedade entre gerações’ constitui espécie de solidariedade horizontal. Interessante destacar que na solidariedade horizontal recebe-se e paga-se ao mesmo tempo, ou seja, o beneficiário não resta excluído da obrigação de contribuir para o sistema. De qualquer forma, trata-se do mesmo fenômeno ‘solidariedade’, que pode ser abordado de acordo com a perspectiva que melhor permita compreendê-lo, sem que a opção didática escolhida exclua qualquer outra. Neste trabalho, optou-se pela concepção de ‘solidariedade de grupo’, por se entender que esta revela didaticamente as diversas relações entre os grupos de contribuintes e beneficiários da previdência social brasileira.

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 98

naqueles casos previstos na própria Constituição, em que incide sobre o

faturamento, o lucro e a movimentação financeira, adquirindo a característica

de imposto com destinação especial (TORRES, 2005, p. 202, sic, grifo do

autor).

Em que pese a contribuição dos segurados e a dos empregadores sobre a folha de salários

encontrarem-se vinculadas ao custeio da previdência (art. 167, XI, Constituição), este ainda é

complementado pelas demais formas de financiamento, a cargo de toda a sociedade, o que, num

primeiro momento, parece quebrar a equação custo/benefício referida por Torres (2005), na medida

em que o custo seria dividido com grupos que não mantêm laços de solidariedade especial com os

beneficiados.

Entretanto, eventual complementação do custeio da previdência social por outras fontes

(inclusive a contribuição previdenciária do empregador) não interessa à análise da natureza jurídica da

contribuição do segurado. A referibilidade da prestação estatal ao contribuinte não implica a

equivalência ou total correspondência entre ela e a contribuição do segurado, a exemplo do que ocorre

com o fato gerador das taxas, mas se esgota na referida relação sinalagmática mediata.

Por isso se refuta a crítica de Torres (2005, p. 203, grifos do autor) acerca da contribuição

previdenciária do servidor público inativo, afirmando como fundamento da exação o princípio

estrutural da solidariedade, que, “substituindo a solidariedade do grupo, desloca o fundamento das

contribuições sociais do princípio do custo/benefício, que lhe é adequado, para o da capacidade

contributiva, típico dos impostos, justificando as distorções sistêmicas [...]”.

A contribuição previdenciária do servidor público inativo encontra-se em perfeita consonância

com o princípio da solidariedade de grupo porquanto se trata de contribuição a ser paga pelos

servidores inativos que recebem benefícios superiores em prol do grupo que percebe benefícios

inferiores.

A aparente “distorção sistêmica” (TORRES, 2005) decorre, na verdade, da equivocada tendência

de reduzir a noção de referibilidade a uma mera equivalência, na realidade inexistente, entre a

obrigação do indivíduo contribuinte e a prestação estatal por ele próprio auferida, ao invés da relação

sinalagmática mediata entre o indivíduo e o Estado, traduzida na vinculação entre a contribuição do

indivíduo e a prestação estatal referida ao grupo com o qual o contribuinte é solidário.

A correlação exata entre a contribuição e o benefício auferido, ademais, determinaria grave

desequilíbrio de financiamento, pois, já se apontou, a cobertura previdenciária abrange também a

questão do risco:

O direito previdenciário nasce do risco. A previdência social não visa

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 99

indenização, mas acudir a necessidade social, daí por que não há exata

correspondência entre o que o trabalhador paga ou por ele se paga, e o que ele

recebe se ocorrido o evento acobertado (PINHO, 2007, p. 69).

E o risco, aqui, não se esgota naquele ao qual se encontra sujeito o contribuinte, o que

determinaria apenas a inclusão do seu custo na correlação entre a contribuição e o benefício. Consiste,

na verdade, naquele que submete todo o grupo, por força do princípio da solidariedade e do sistema de

repartição. É o que garante, por exemplo, que o segurado empregado incapacitado em decorrência de

acidente de qualquer natureza possa perceber aposentadoria por invalidez por toda a vida, ou que o

dependente receba pensão por morte, ainda que o segurado não tenha vertido nenhuma contribuição

sequer (art. 26, I e II, c/c art. 27, I, da Lei nº 8.213/91).

Ainda em relação à base de cálculo da contribuição previdenciária do segurado, lembre-se que se

adota no Brasil, como decorrência do regime de repartição simples, o sistema de benefício definido,

segundo o qual se define o valor do benefício (ou a forma de cálculo deste), significando que,

cumpridos os requisitos legais, o segurado fará jus ao benefício (previdenciário) no valor determinado

pela norma, independentemente do valor acumulado em decorrência das contribuições que recolheu.

Ao contrário, nos sistemas que adotam a contribuição definida, o valor do benefício dependerá

do montante acumulado, tal qual ocorre nos planos de previdência privada (regime de capitalização).

Dessa maneira, a atuação estatal (cobertura previdenciária) vem medida pelo salário de

contribuição (base de cálculo), o que resta comprovado não apenas pelo fato de este elemento integrar

a forma de cálculo da maioria dos benefícios, mas também pelos critérios impostos pela norma para

garantia da higidez financeira do sistema – e assim do pagamento futuro das prestações –, como

carência e número mínimo de contribuições, que, além disso, inserem na equação a cobertura do risco

de todo o grupo.

A noção de solidariedade de grupo afasta seguinte a crítica de Cordeiro (2007):

A prestação dos serviços de previdência é fato que não compõe a regra

responsável pelo nascimento de contribuição previdenciária. O sujeito passivo

aqui deve pagar não pela prestação previdenciária (vinculação), mas, numa

visão teleológica, para o serviço público e prestações que integram a

seguridade social (CORDEIRO, 2007, p. 295).

O que ele denominou “serviço público e prestações que integram a seguridade social” – referido

autor não enxerga diferença entre as contribuições sociais e as previdenciárias, pois adota uma

perspectiva de solidariedade estrutural (TORRES, 2005) – configuraria, justamente, a “prestação

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 100

previdenciária”, hipótese material de incidência da contribuição, caso se restringisse o conceito aos

serviços públicos e prestações que integram a previdência social.

No sistema de benefício definido, adotado pelo regime de repartição simples, com fulcro no

princípio da solidariedade, a base de cálculo consiste, justamente, na contraprestação esperada, nela

incluídas as hipóteses de utilizar ou não a cobertura securitária da previdência.

Ressalte-se, também, que o fato de alguns segurados não fruírem benefícios (seja porque

faleceram sem dependentes, antes de receber algum benefício previdenciário, seja porque perderam a

qualidade de segurado antes de reunir as condições para fazer jus a alguma prestação, por exemplo)

não impede seja a contribuição previdenciária do segurado classificada na categoria de tributo

vinculado ‘contribuição’.

Os critérios legais para fazer jus aos benefícios (carência, número mínimo de contribuições,

qualidade de segurado, etc.) constituem elementos de ajuste da medida da atuação estatal, uma vez que

esta abrange mais do que o benefício futuro da aposentadoria, revelando-se insuficiente uma

contribuição proporcional apenas a esse benefício e não a toda a cobertura previdenciária (aí incluídos

os custos decorrentes da solidariedade de grupo).

O elemento intermediário (ATALIBA, 2011) a determinar a base de cálculo da contribuição do

segurado consiste, justamente, no benefício (proveito, vantagem) auferido pelo próprio segurado

contribuinte e pelo grupo ao qual este é solidário – englobando a percepção temporária ou permanente

de prestações (benefícios previdenciários), a utilização de serviços ou, apenas, a proteção securitária

oferecida, da qual se goza ainda que não se receba qualquer prestação (benefício previdenciário) – e

não na capacidade contributiva, como defende Balera (2012, p. 456).

À semelhança do que ocorre com as contribuições de melhoria, também integrantes da categoria

tributária ‘contribuição’, o benefício (vantagem) auferido deve ser o limite da contribuição individual,

mas o custo da atuação do Estado deve ser o limite de toda a arrecadação. Eis, então, a imagem do

princípio da contrapartida em relação à contribuição previdenciária do segurado.

A demonstrada complexidade da relação sinalagmática entre o contribuinte e o Estado tem

escapado à análise da maioria dos juristas, que se apega à equivalência entre a prestação estatal e a

contribuição previdenciária do segurado, seja para afirmar, seja para lhe negar o caráter de tributo

vinculado ou de uma de suas categorias:

[...] no caso específico das contribuições previdenciárias, o fato gerador

seria a prestação estatal de proteção à seguridade social, e não a realização do

trabalho, como tem entendido a doutrina especializada. Por consequência, o

tributo contribuição previdenciária seria devido apenas a partir do momento

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 101

em que demonstrada a realização da atividade estatal de prestação de

seguridade social em determinada forma específica, em favor de determinado

sujeito, que evidentemente não se coaduna com a realidade (SEVERO, 2010,

p. 105-106).

Além do aspecto de seguro da previdência social, a hipótese do art. 28, § 2º, da Lei nº 8.212/91

(BRASIL, 1991a), que considera salário de contribuição o salário-maternidade, benefício

previdenciário (art. 18, I, g, Lei nº 8.213/91), já desautorizaria a conclusão de Severo (2010), mas,

trazendo custeio e prestação para o mesmo plano temporal, ilustra ainda a referida complexidade.

Basta pensar que as contribuições incidentes sobre o benefício (de salário-maternidade) não são

suficientes para custeá-lo.

Como demonstrado, a contribuição previdenciária do segurado apresenta as características da

categoria de tributo denominada ‘contribuição’, revelando-se tributo vinculado. Muito embora seja

possível instituir imposto para o financiamento da seguridade social, como ocorre em França

(COÊLHO, 2007, p. 32), esta não foi a opção adotada pelo constituinte brasileiro.

O princípio da contrapartida e a evolução histórica da Seguridade Social

A celeuma em torno da natureza das contribuições previdenciárias do segurado adveio, como se

demonstrou, de uma incorreta percepção da relação sinalagmática decorrente do seu caráter de tributo

vinculado.

Restringindo-a a uma mera equivalência da contribuição à atuação estatal, acabou-se por

deturpar, também, o conceito do princípio da contrapartida.

Tais concepções se desenvolveram num contexto individualista, explicado pela própria origem

histórica da Seguridade Social:

[...] a previdência social, que aparece como regime privado e facultativo

característico das associações mutualistas, passa pelos regimes de seguros

sociais obrigatórios, e acaba por se firmar como instrumento de justiça social,

está pautada na ideia de solidariedade e de responsabilidade social (SEVERO,

2010, p. 93-94).

Ugatti (2003) informa que o princípio da contrapartida surgiu com a Lei Orgânica da

Previdência Social (Lei nº 3.807/60), em seu art. 158, sob a égide da Constituição de 1946, a primeira

a empregar a expressão previdência social e a se preocupar em sistematizá-la (NASCIMENTO, 2007).

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Somente com a Emenda Constitucional nº 11/1965, porém, foi ele alçado à categoria de norma

constitucional.

Verifica-se que o princípio da contrapartida surge em um contexto de evolução da previdência

social, quando se buscava a universalização da cobertura e a sistematização da atividade estatal, sem,

contudo, que se tivesse abandonado a visão individualista da proteção.

Almansa Pastor (1977, p. 61) registra que “la aceptación de los nuevos principios solidaristas fue

lenta y aun hoy día éstos conviven con principios individualistas”.

É certo que uma mudança de paradigma começou a ser observada “nas discussões da

Assembleia Nacional Constituinte, em que se começou a desenhar o sistema de seguridade social

estabelecido no texto constitucional, inspirado no modelo de bem-estar social e baseado na superação

do modelo então contratualista e individual” (ABREU, 2016, p. 103), vindo a Constituição de 1988 a

substituir “o paradigma individualista até então vigente pelo paradigma da solidariedade” (SEVERO,

2010, p. 97).

Embora não tendo superado o aspecto privado (BALERA, 2012, PIERDONÁ, 2007), a nova

ordem constitucional introduziu a ideia de conjunto integrado de ações, que agora caracteriza o âmago

do conceito da seguridade social brasileira:

O art. 194 da Constituição pátria enuncia que a seguridade social

compreende um conjunto integrado de ações destinadas a assegurar os

direitos relativos à saúde (arts. 196-200), à assistência social (arts. 203 e 204) e

à previdência social (arts. 201, 202 e 40), formando um sistema de proteção.

Visando à proteção de todos, o constituinte uniu os três direitos sociais

fundamentais (art. 6º da CF) acima mencionados, os quais, cada um dentro de

sua área de atuação, protegem seus destinatários e, no conjunto, todos

serão protegidos.

Para tanto, a seguridade social, conforme referimos acima, apresenta

duas faces: uma delas visa a garantir a saúde para todos. A outra face tem por

objetivo a garantia de recursos para a sobrevivência digna das pessoas, nas

situações de necessidade, os quais não podem ser obtidos pelo esforço próprio.

A segunda face divide-se em previdência social e assistência social,

sendo que esta é subsidiária daquela, ou seja, teremos assistência apenas

quando o indivíduo não está protegido pela previdência, a qual, em sua

essência, visa à garantia de recursos ao trabalhador e seus dependentes

quando da ausência de capacidade laboral. Já a assistência objetiva a proteção

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aos necessitados, ou seja, os que não são nem segurados nem dependentes da

previdência e, além disso, não possuem a proteção familiar (assistência

privada).

Nesse sentido, o artigo 196 da Constituição Federal preceitua que a

“saúde é direito de todos e dever do Estado”; o art. 203 estabelece que “a

assistência social será prestada a quem dela necessitar, independente de

contribuição à seguridade social”; e

no que se refere à previdência, as disposições do art. 201, bem como do

art. 40, tanto em sua redação original como na redação atribuída pela EC nº

20/98, exigem contribuição para que o segurado e seus dependentes façam jus

às prestações previdenciárias, enquanto os direitos relativos à saúde e à

assistência independem de contraprestação direta dos beneficiários

(PIERDONÁ, 2007, p. 21-22, grifos nossos).

Verifica-se dos ensinamentos de Zélia Pierdoná (2007) que a ‘proteção social’ universal decorre

do constitucionalmente referido ‘conjunto integrado de ações’, onde cada ‘ação’ tem objetivo e área de

atuação diversos, mas, integradas, alcançam todos os destinatários.

A solidariedade também adquire concepções diversas de acordo com cada ‘ação’ em foco.

Enquanto a solidariedade incidente nas ações de saúde e assistência social se apresenta no seu aspecto

‘estrutural’ (TORRES, 2005), a que determina a previdência social é, primordialmente, a solidariedade

de grupo (YAMASHITA, 2005). Coêlho (2012) demonstra bem essa dinâmica:

Há, contudo, certas finalidades que não são gerais, a exigir

financiamento solidário ou individual. Certos fins dizem respeito a

grupamentos sociais e somente a eles, podendo o grupo ser imenso, como o

dos aposentados e pensionistas, ou restritos, como o dos corretores de imóveis,

exportadores de café, etc. Nesses casos, surge a figura da ‘contribuição’ que

certos grupos devem pagar para que o Estado ou entes paraestatais realizem,

com espeque no princípio da retributividade, em prol deles, determinadas

tarefas (atuações estatais), que satisfaçam as suas necessidades, ocasionando

maiores despesas, como se diz na Europa, especialmente em Portugal. O custo

da atuação, bem como o benefício que deva ser alcançado pelos pagantes, se

ajuntam para determinar a base de cálculo da ‘contribuição’ a ser paga pelos

interessados (pois não seria justo que toda a sociedade, por imposição

tributária ou sua repercussão, i.e, translação tributária, pagasse para que

somente estes grupos se beneficiassem). Quando, porém, o grupo a ser

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 104

atendido como que se confunde com a sociedade inteira, hipótese da

seguridade social, o Direito Tributário comparado apresenta três modelos de

financiamento:

a) por meio de pagas específicas dos segurados (a payroll tax dos

americanos para o seguro social);

b) através de impostos ou adicionais de impostos afetados a tal finalidade

(caso dos impostos afetados à seguridade social, como é o caso da CSLL, PIS e

Cofins);

c) mediante sistemas mistos, onde vemos impostos finalísticos e

contribuições pessoais e sinalagmáticos, precisamente o caso do Brasil. Para

quem paga PIS, COFINS, a paga é de imposto. Quem contribui

individualmente para a seguridade, a paga é para ter em troca benefícios em

manutenção, aposentadoria e pensão.

[...]

Impostos, inclusive os afetados, às vezes denominados de

"contribuições" por alguns sistemas jurídicos positivos, são referenciados ao

valor solidariedade.

As taxas são referidas ao valor ressarcimento do sobre-esforço estatal

em prol de pessoas, tão-somente.

As contribuições verdadeiras, as sinalagmáticas, são referidas ao valor

retributividade (COÊLHO, 2012, p. 106, grifos do autor).

Diante do novo paradigma, impossível atribuir uma compreensão individualista ao princípio da

contrapartida, que se refere à seguridade social (ou, seja, ao ‘conjunto integrado de ações’ e não

apenas à ‘ação’ relativa à previdência), como observou o Ministro Eros Grau no julgamento da Ação

Direta de Inconstitucionalidade nº 3.105-8/DF (BRASIL, 2004):

23. Passo a outro capítulo, no qual a afirmação de que o § 5º do artigo

195 da Constituição ensejaria a conclusão de que a instituição de nova exação

previdenciária apenas se justificaria desde que estabelecido novo benefício. No

julgamento da ADI 2.01 foi dito que “[s]em causa eficiente, não se justifica a

instituição (ou a majoração) da contribuição da seguridade social, pois no

regime de previdência de caráter contributivo deve haver, necessariamente,

correlação entre custo e benefício”.

O raciocínio, contudo, não procede no regime instalado pelo artigo 195,

caput, da Constituição, de caráter contribuinte e solidário.

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 105

[...]

25. O raciocínio que estou a recusar parte de uma leitura invertida do

preceito contido no §5º do art. 195 da Constituição do Brasil, visto que a

correlação presente neste dispositivo tem apenas uma via, ou seja, a de que

nenhum benefício será instituído sem fonte de custeio.

Insisto em que a interpretação a contrario sensu só teria sentido em um

sistema exclusivamente contributivo. E que não há, no texto constitucional,

menção à situação inversa, no sentido de que a cada contribuição criada deva

corresponder um benefício específico (BRASIL, 2004, p. 272-274).

Ademais, qualquer interpretação individualista do princípio restaria afastada pelo próprio

sistema de financiamento da Previdência instituído pela Constituição, que não se limita à contribuição

dos segurados (PIERDONÁ, 2007):

Dessa forma, a Constituição arrola, no art. 195, diversos pressupostos de

fatos geradores de contribuições de seguridade social. Ressaltamos que as

contribuições previstas no inciso I, alínea a – contribuição da empresa sobre a

folha de salário e demais rendimentos –, e no inciso II – contribuições dos

trabalhadores são destinadas exclusivamente ao pagamento dos benefícios do

regime geral de previdência social, conforme determinação do art. 167, XI, da

CF, motivo pelo qual as denominamos de contribuições previdenciárias e não

de seguridade social. Ressaltamos, todavia, que as demais contribuições

arroladas no art. 195 são destinadas à seguridade social, portanto, também, à

previdência social (PIERDONÁ, 2007, p. 28-29, grifo nosso).

Por outro lado, atribuir ao princípio da solidariedade nas ações de previdência social apenas a

concepção de ‘solidariedade estrutural’ (TORRES, 2005) conduziria necessariamente à conclusão

oposta de inexistência de qualquer referibilidade entre a contribuição e a prestação estatal (ABREU,

2016):

A solidariedade contrapõe-se ao individualismo, ao paternalismo e ao

corporativismo, que geram cismas internas na classe trabalhadora e dificultam

o estabelecimento de uma luta política pautada pela identificação de interesses

em comum.

[...]

Por outro lado, a ideia de solidariedade depende muito da

desmercantilização da proteção social. Quando os direitos sociais tendem a ser

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 106

vistos como meros direitos subjetivos individuais, voltam a ser tratados como

mercadoria. Se forem providos pelo Estado em contrapartida ao esforço

pessoal com o pagamento de contribuições, perde-se o componente de

auxílio mútuo dentre os membros da comunidade (ABREU, 2016, p. 150, grifo

nosso).

Do princípio da solidariedade advém o dever de participar do financiamento do sistema

(NABAIS, 2007); porém, tanto a pulverização do financiamento da previdência a toda a sociedade

quanto a instituição da equivalência entre a contribuição do segurado e a contraprestação estatal

mostram-se incompatíveis com o atual sistema constitucional.

A relação sinalagmática reflete-se na referibilidade da prestação do Estado (cobertura

previdenciária) ao grupo com o qual o contribuinte tem laços de solidariedade.

A extensão dessa cobertura torna necessária, porém, a complementação do financiamento por

outras fontes, advindas de grupos que tenham relações de solidariedade com o grupo garantido, como

os empregadores – ainda a solidariedade de grupo –, ou de toda a sociedade – solidariedade estrutural

(TORRES, 2005). Neste último caso, opera-se o custeio indireto da previdência como ação integrante

da seguridade social.

Assim também ocorre na Itália:

La Corte, in particolare, con la sentenza n. 132/1984 ha osservato che

nell'esperienza italiana è possibile enucleare due tipi di sistema previdenziale:

"il primo si caratterizza per la riferibilità dell'assunzione dei fini e degli oneri

previdenziali all'esigenza della divisione del rischio fra gli esposti e per la

rigorosa proporzionalità (ispirata allo schema sinallagmatico fra premi e

indennità, proprio dell'assicurazione privata) fra contributi e prestazioni

previdenziali; mentre il secondo si caratterizza per la riferibilità dell'assunzione

dei fini e degli oneri previdenziali a princìpi di solidarietà (secondo il modello

della sicurezza sociale), sia pure operante all'interno della categoria, e per

l'irrilevanza della proporzionalità fra contributi e prestazioni previdenziali,

essendo considerati i primi unicamente quale mezzo finanziario della

previdenza sociale - che è prelevato fra tutti gli appartenenti alla categoria in

ragione della loro capacità contributiva -, ed essendo considerate le prestazioni

quale strumento per l'attuazione concreta dei fini della previdenza stessa"

(CINELLI, 1999, p. 73).

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 107

É neste sentido que se deve interpretar a conclusão de João Ernesto Aragonés Vianna (2010, p.

110) de que “segundo o plano de custeio, é o total da arrecadação que deve ser equivalente ou

levemente superior ao total das despesas, não havendo que se falar nessa correlação em relação a cada

contribuição considerada em si própria”.

Partiu o autor das seguintes premissas:

Salta aos olhos que não há correlação entre o critério quantitativo da

regra matriz de incidência e o custo da atividade pública, nesse caso, o sistema

de seguridade social. Isso é assim porque, em função da solidariedade, o custo

desse serviço público será atendido pela totalidade dos recursos que verterem

para o sistema, nos termos do plano de custeio.

[...]

Daí discordarmos de Geraldo Ataliba quando este afirma que a base de

cálculo nas contribuições sociais, deve repousar no elemento intermediário.

Esse raciocínio é válido para as contribuições de melhoria, mas não para as

contribuições do art. 149 da Constituição Federal (VIANNA, 2010, p. 110).

Confundem-se, aparentemente, três pontos.

Certamente o custo do sistema de seguridade social será atendido pela totalidade dos recursos

vertidos para tanto, com amparo na solidariedade ‘estrutural’ (TORRES, 2005). Por isso, o princípio

da contrapartida, que se refere aos benefícios e serviços da seguridade social, relaciona-se ao total da

arrecadação para a seguridade social.

Entretanto, como a previdência social integra as ações coordenadas de seguridade social, tal

princípio também incide sobre ela. Nessa perspectiva, como uma das ‘ações’ de seguridade social,

com amparo na ‘solidariedade estrutural’ (TORRES, 2005), subordina-se o custeio também à

limitação do total da arrecadação, com fulcro no princípio da contrapartida.

No âmbito da previdência social, porém, convivem a ‘solidariedade estrutural’ (TORRES, 2005)

e a ‘solidariedade de grupo’ (YAMASHITA, 2005). A partir desta última perspectiva, o princípio da

contrapartida exige que as contribuições previdenciárias dos segurados sejam integralmente destinadas

à prestações estatais relativas ao grupo do contribuinte, impedindo que o Estado utilize tais recursos

para outras despesas que não o custeio dessas prestações.

Em função do ‘pacto entre gerações’, o princípio da contrapartida significa, então, que as

exações impostas aos contribuintes segurados, tendo em vista sua natureza de contribuição (categoria

de tributo vinculado), devem necessariamente financiar benefícios ou serviços em prol dos

beneficiários do sistema previdenciário.

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 108

Identificam-se, então, uma visão particular do princípio da contrapartida, quando relacionado à

contribuição previdenciária do segurado, e outra mais geral, quando enfatizada a perspectiva do

financiamento, a partir dos totais de despesa e arrecadação.

Ugatti (2003) acrescenta o impacto dos critérios atuariais na compreensão do princípio da

contrapartida:

Ressalte-se, ainda, que tal correlação entre a prestação e a fonte de

custeio deve ser aferida com fundamento em cálculos atuariais, visto que a

ciência atuarial é a responsável pelo estudo dos eventos aleatórios, entre estes

os chamados riscos sociais, viabilizando de forma efetiva o equilíbrio entre as

fontes de receita e as despesas do sistema.

[...]

O princípio constitucional da contrapartida não permite a instituição de

fonte de custeio ou de prestação de seguridade social sem a respectiva

correlação atuarial entre estas, quando da elaboração dos respectivos planos de

custeio e de prestações (benefícios e serviços).

E mais, o legislador ordinário também deverá indicar na instituição de

nova prestação ou de nova fonte de custeio, posteriores aos planos de custeio e

de prestações, de forma expressa, qual a prestação que estará sendo custeada

pela nova exação ou qual a contribuição para a seguridade social que

financiará a nova prestação (UGATTI, 2003, p. 84 e 89).

Ambas as perspectivas do princípio da contrapartida, geral e particular, resultam da aplicação

dos critérios atuariais na relação sinalagmática que se forma entre o contribuinte e o Estado e, em

conjunto, fornecem a completa compreensão do princípio. Excluir a perspectiva geral resulta na

indevida redução da relação sinalagmática para a equivalência entre a prestação estatal e a

contribuição do segurado, enquanto desconsiderar a perspectiva particular surte o efeito oposto,

descaracterizando qualquer referibilidade, sempre em prejuízo do equilíbrio atuarial do sistema.

Entretanto, como

[o] vínculo da contribuição previdenciária com a folha de pagamento

torna inseparáveis o financiamento da previdência social e os salários pagos

pelo mercado formal regulado pela CLT[...] [, s]erá natural, para o segurado,

invocar o princípio da “contrapartida”, pois mais fácil olhar a aparência de

sinalagma entre o pagamento de contribuição e o recebimento de benefício do

que entender que sua contribuição serviu para financiar todo o sistema da

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 109

seguridade social, e que a previdência opera por repartição3 (ABREU, 2016, p.

166).

Relação jurídica tributária e relação jurídica previdenciária

Conforme já explicitado, além das diversas especificidades em relação a cada grupo de

segurados, a contribuição previdenciária apresenta-se de maneira complexa, sendo necessário, para sua

análise, ter em vista todo o sistema previdenciário, de custeio e de prestações, e suas interrelações.

A relação jurídica previdenciária (prestações) e a tributária (custeio) se desenvolvem, muitas

vezes, lado a lado, mas são independentes, embora ambas compartilhem institutos dos quais extraem,

como não poderia deixar de ser, consequências diversas, afetas à respectiva área de atuação (o salário

de contribuição, por exemplo):

O reconhecimento de inter-relações sistemáticas entre todos os ramos do

ordenamento jurídico-positivo, contudo, não deve levar à acolhida da

apriorística posição de que os fenômenos jurídicos operados num determinado

ramo repercutem inexoravelmente nos demais. A existência de tais

repercussões há de ser aferida pelo intérprete caso a caso, sem perder de vista

que, apesar de unidos num sistema unitário, os subsistemas apresentam feições

particulares e, não raro, repelem os efeitos jurídicos produzidos alhures.

[...]

Consoante supra-exposto, posto que haja inter-relações entre o Direito

Previdenciário e o Direito Tributário, os fenômenos jurídicos verificados num

determinado ramo não produzem inexoravelmente efeitos no outro

(VELLOSO, 2007, sic, p. 628 e 636).

Por isso,

o recolhimento das contribuições não é, no sistema da LBPS, um

requisito para a filiação e tampouco para o nascimento de direitos na esfera

previdenciária: a filiação opera-se com o desempenho de atividade laboral que

determine a vinculação obrigatória à Previdência Social, à exceção dos

segurados facultativos, cuja filiação verifica-se tão-somente com o pagamento

da primeira contribuição [...] (VELLOSO, 2007, p. 613).

3 Advirta-se apenas que neste trabalho se concluiu que a contribuição do segurado financia (ou deveria financiar...) apenas o sistema de previdência social.

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 110

Assim, o exercício de atividade remunerada determina o nascimento do vínculo previdenciário,

que, por sua vez, faz incidir a obrigação tributária – revisou-se, nesse ponto, entendimento defendido

anteriormente (SILVA, 2014). No caso do segurado facultativo, em razão das suas peculiaridades, o

fato escolhido pelo legislador, para ambos os efeitos, é o recolhimento da primeira contribuição; ao

fazê-lo, o segurado facultativo torna-se contribuinte e segurado.

Quer se identifique uma relação jurídica tributária e outra previdenciária, como faz a maioria dos

tributaristas, quer uma relação previdenciária decorrente da relação de trabalho, como grande parte dos

previdenciaristas, quer se abstenha do conceito de relação jurídica para explicar a proteção

previdenciária (ABREU, 2016), fato é que se identificam nela duas faces, a do custeio e a da proteção.

E não se faz referência aqui a uma “separação rígida entre a fase de recolhimento das

contribuições – que se dá durante o trabalho ativo – e a fase de gozo dos benefícios, que são

imunizados quanto à cobrança de novas contribuições”, como definida pelo Ministro Roberto Barroso

no voto que proferiu no Recurso Extraordinário nº 661.256 (BRASIL, 2016, grifos do autor), porque,

de algum modo, elas interagem entre si, podendo-se afirmar, inclusive, que em decorrência do

princípio da contrapartida, a face do custeio e a da proteção se complementam.

Analisando a indenização (atualmente, prevista no art. 45-A da Lei nº 8.212/91) exigida dos

contribuintes individuais para contar como tempo de contribuição do período de atividade remunerada

referente ao qual não tenha havido recolhimento das contribuições previdenciárias, alcançadas pela

decadência, Andrei Pitten Velloso (2007) destacou a independência entre as relações jurídicas

tributária e previdenciária:

Já se expôs que há duas obrigações diversas: uma representada pela

obrigação de recolhimento das contribuições previdenciárias (heterônoma, de

caráter tributário) e outra representada pela obrigação de recolhimento,

enquanto um pressuposto para o gozo de determinadas prestações

previdenciárias, dos valores correspondentes a tais contribuições (obrigação

autônoma, de caráter previdenciário).Essa distinção restou ainda mais evidente

com o advento da Lei 9.032/95, que veio a consagrar uma obrigação

propriamente previdenciária, revestida de conteúdo econômico específico e

que pode, ou não (conforme o entendimento adotado), coexistir com a

obrigação tributária. Isso porque tal diploma legal não condicionou a

averbação do tempo de serviço ao pagamento do crédito tributário

inadimplido. Pelo contrário, previu a obrigatoriedade do pagamento de uma

prestação pecuniária específica, cujo montante é determinado mediante o

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 111

emprego de critérios próprios e distintos daqueles que embasam a

determinação dos créditos tributários.

[...]

Pode-se notar, com isso, que, até o momento da extinção do crédito

tributário pela caducidade, coexistiam a obrigação tributária e o dever

previdenciário: na esfera tributária, o contribuinte estava sujeito à cobrança

forçada das contribuições inadimplidas; e, na seara previdenciária, exigia-se a

extinção da obrigação tributária pelo pagamento ou o recolhimento dos valores

correlatos. Após o momento da extinção da obrigação tributária pela

caducidade, por outro lado, a obrigação previdenciária (que não pressupõe a

existência de um direito creditício no âmbito tributário), conquanto só, subsiste

na íntegra (VELLOSO, 2007, p. 622 e 634, grifos do autor).

O mesmo se verifica noutras situações de presunção absoluta de recolhimento de contribuições

ou de dispensa seu recolhimento (VELLOSO, 2007, p. 616), como as arroladas por Cordeiro (2007):

Como fundamentar o benefício previdenciário assegurado aos

trabalhadores rurais independentemente de contribuição, antes da Lei

8.213/91? E quanto à possibilidade de se auferir benefícios acidentários, os

quais não exigem prazo de carência, como na aposentadoria por invalidez,

ainda que no primeiro dia de labor? Como explicar o período de graça (art. 15

da Lei 8.213/91), no qual o sujeito, não obstante a ausência de custeio

(recolhimento de contribuição), ainda faça jus aos benefícios, mantendo-se na

condição de "segurado"? E o fato de inexistir contraprestação do Estado, v.g.

pela demissão do empregado antes de completados os requisitos necessários à

aquisição de qualquer benefício, sem direito à restituição da quantia até então

recolhida? (CORDEIRO, 2007, p. 282).

Da previdência social, então, advêm deveres do Estado e do cidadão, fundamentados ambos no

princípio da solidariedade. Da perspectiva do dever do Estado, manifesta-se o princípio por meio da

relação jurídica previdenciária, e em relação ao dever do cidadão, da relação jurídica tributária.

Trata-se, porém, da mesma relação de solidariedade, vista por ângulos diversos, que não se

coaduna com um conceito individualista do princípio da contrapartida, baseado na redução da relação

sinalagmática à equivalência estrita entre contribuição e prestação previdenciária.

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 112

O princípio da contrapartida não sustenta a desaposentação

Agrupam-se sob a alcunha de ‘desaposentação’ quaisquer formas de renúncia a benefício de

aposentadoria em fruição com o objetivo de aproveitar o tempo de contribuição sobre o qual se

fundamenta para a obtenção de novo benefício ou o recálculo daquele benefício, agregando-se tempo

de contribuição posterior à sua concessão.

O julgamento da tese da desaposentação pelo Supremo Tribunal Federal, tão controverso quanto

o tema apreciado, deixou transparecer divergência de fundo calcada em percepções diversas do

princípio da contrapartida.

Dentre os diversos fundamentos apontados para sustentar aquele instituto, destaca-se uma

compreensão individualista do princípio da contrapartida, ao qual se atribui a necessidade de que as

contribuições previdenciárias do segurado lhe resultem em vantagem direta – no caso, o incremento do

valor do benefício em decorrência das contribuições recolhidas após a aposentadoria.

Nascida em contexto individualista, a previdência social tem esse caráter ressaltado pelos

juristas, que ainda não absorveram completamente a noção de solidariedade e não vislumbraram como

tal princípio revolucionou sua percepção.

O mesmo se observa em relação ao legislador. Nesse sentido, já se mencionou a existência de

diversos projetos legislativos para instituir a desaposentação, podendo-se apontar, também, outros que

incrementam o regime de proteção previdenciária do aposentado, para fazer face às suas contribuições,

ou que excluem a própria obrigação tributária4.

Partindo-se da concepção delineada neste trabalho, conclui-se, entretanto, que o instituto da

desaposentação não decorre do princípio da contrapartida. Ao contrário, vai na contramão do sistema

previdenciário justamente porque pressupõe uma inexistente equivalência entre contribuição e

benefício (previdenciário) do contribuinte, sem levar em consideração que a relação sinalagmática

mediata que se estabelece entre o Estado e o contribuinte se materializa na correlação entre a prestação

estatal e o benefício (vantagem) do grupo do contribuinte.

Certamente, as contribuições posteriores à aposentadoria não poderiam ser consideradas fonte de

custeio de um novo benefício (ou de um recálculo deste), porque, com fulcro no princípio da

solidariedade de grupo, elas são apenas indiretamente vinculadas à pessoa do contribuinte, na

qualidade de integrante do grupo de beneficiários, ou por ser o contribuinte solidariamente responsável

em relação ao mesmo grupo (em decorrência do ‘pacto de gerações’, por exemplo).

4 Os Projetos de Lei nos 4.178/2015 e 7.761/2017, da Câmara dos Deputados, alargam o rol de benefícios auferíveis pelo aposentado que retorna ao trabalho. Já o Projeto de Lei do Senado nº 56/2009 exclui a obrigação de contribuir do aposentado que retorna ao trabalho.

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 113

Todavia, os diversos projetos de lei que tratam do instituto, todos fundamentados na ideia de

equivalência, mostram oportuna a constatação de Abreu (2016):

A história da previdência brasileira é, portanto, a história da concessão de

direitos a determinadas categorias privilegiadas, o que aos poucos é

universalizado, mas não completamente, devido às características da economia

brasileira, heterogênea e desigual. O discurso de universalização serve à

manutenção de privilégios e de uma sociedade estratificada, sem que haja

efetiva alteração nas desigualdades ou na concentração de renda (ABREU,

2016, p. 85-89).

Conclusão

Submetida à análise de constitucionalidade, a desaposentação foi considerada instituto passível

de ser adotado pelo ordenamento, desde que por meio do processo legislativo.

O principal argumento em seu favor consiste numa relação sinalagmática entre a prestação

estatal e a do contribuinte, decorrente do seu caráter de tributo vinculado, apreendida como a

equivalência entre elas, concepção positivada, para os defensores da desaposentação, no princípio

constitucional da contrapartida.

Identificando-se a origem da controvérsia na compreensão equivocada da ‘relação

sinalagmática’, decorrente das dificuldades de verificação da natureza jurídica das contribuições

previdenciárias dos segurados, alcançou-se seu verdadeiro significado ao se analisarem a fundo as

características dessas contribuições, enquadrando-as na categoria de tributo vinculado ‘contribuições’.

Daí se concluiu pela existência da relação sinalagmática, que, entretanto, não se reduz à

equivalência contribuições/prestação estatal. Extrapolada a visão exclusivamente individualista da

previdência social, torna-se imperioso revisitar o conceito para compreendê-lo no contexto de um

sistema solidário.

Nesse contexto, a relação sinalagmática traduz apenas a referibilidade da obrigação do Estado ao

grupo protegido, com o qual o contribuinte tem um vínculo de solidariedade, revelando a face

individual do princípio da contrapartida.

De um ângulo geral, o princípio deve ser compreendido como um equilíbrio das contas públicas.

Tais perspectivas não devem ser isoladas, pois se complementam.

Desse modo, o princípio da contrapartida se expressa na relação sinalagmática, decorrente da

natureza do tributo, que revela a correspondência atuarial entre a contribuição e o benefício

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(vantagem, consistente na disponibilidade de todo o sistema previdenciário) decorrente para o grupo

do contribuinte (solidariedade de grupo), limitada pelo equilíbrio das contas do ponto de vista geral.

A ideia de que as contribuições previdenciárias recolhidas pelo aposentado precisam ser

revertidas em seu próprio benefício, portanto, ofende o princípio da contrapartida e distorce a relação

sinalagmática característica da natureza jurídica das contribuições previdenciárias dos segurados.

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TEORIA GERAL DO RISCO SOCIAL ∗

RAFAEL VASCONCELOS PORTO

Juiz Federal Titular da Vara Única da Subseção Judiciária de Poços de Caldas - MG. Bacharel

em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestrando em Direito Previdenciário pela

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Ex-Defensor Público Federal. Professor de

Direito Previdenciário em cursos preparatórios para o concurso da magistratura federal. Autor de

diversos artigos jurídicos.

RESUMO: A proposta do ensaio consiste em desenvolver o conceito de risco social,

demonstrando seu soerguimento a partir da ideia genérica de risco e sua conjugação reflexiva, nesse

desenrolar histórico, com o progresso da previdência social a partir do seguro social. Ao final,

trabalha-se com o conceito, já desenvolvido, dentro do regime previdenciário brasileiro quanto a

alguns de seus aspectos.

PALAVRAS-CHAVE: Risco; risco social; mutualismo; seguro social; previdência social;

carência.

1. Introdução

1.1. Delimitação do tema

O presente ensaio tem a pretensão, apenas, de prestar um contributo à teoria geral do risco

social. Com efeito, não há aqui a ambição ou aspiração de estabelecer um novo paradigma1 em torno

∗ Artigo recebido em 14/3/2018 - Aprovado em 5/4/2018 1 Segundo Thomas Khun, o teórico que inaugurou o conceito atual de “paradigma” (como esferas de pré-compreensão compartilhadas num pano de fundo de silêncio), “uma teoria científica, após ter atingido o status de paradigma, somente é considerada inválida quando existe uma alternativa disponível para substituí-la. (...) Rejeitar um paradigma sem simultaneamente substituí-lo por outro é rejeitar a própria ciência. (...) A ciência normal esforça-se (e deve fazê-lo constantemente) para aproximar sempre mais a teoria e os fatos. Essa atividade pode ser vista como um teste ou uma busca

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da temática - como o título do trabalho poderia dar a entender, pelo que é salutar esclarecer, desde já,

que não -, senão apenas o objetivo de revolver (repisar, ruminar) os elementos e repensar alguns

contornos da ideia de risco social.

Esclareço que o conceito de “risco social” comporta amplitudes diversas, mas a que aqui nos

interessa é uma restrita, singular, atinente a um ramo específico, que é o do seguro social. Em suma,

nossas cogitações, embora amplas, se encaminharão em tal senda - o que fica logo esclarecido -,

embora partam de bases demasiado mais genéricas.

O seguro social é, como demonstraremos adiante, o embrião da previdência social, a qual,

mesmo hoje, carrega consigo uma formulação básica ainda essencialmente – em termos de considerar

seus elementos primordiais – redutível à ordenação lógico-teórica dali haurida, apenas com o

acréscimo de alguns ingredientes modernos - que podem ser classificados como puramente

circunstanciais, tendo em vista uma natureza sobretudo política ou, ainda mais contingencial, jurídico-

positiva2. Destarte, o risco social que desperta nossas preocupações é aquele que está ligado – esteja

assim ou não reconhecido pelo direito positivo – à previdência social.

Aí está, portanto, a definição prévia do caminho que pretendemos trilhar, o que cumpre o papel

de indicar ao leitor a vereda à qual direcionaremos o raciocínio subsequente, de modo a não deixar que

as considerações que vão sendo feitas fiquem como que “suspensas”, à espera do que se argumentará

na sequência; ou seja, parece-nos interessante estabelecer desde logo um eixo central que, funcionando

como um campo magnético, permita que se agregue de imediato a construção paulatina que se

pretende encadear nas linhas vindouras.

Pois bem, o risco é um dos elementos do seguro, conjuntamente com o prêmio, o sinistro e a

indenização. Em síntese, contrata-se, mediante o pagamento de um prêmio, a cobertura de um risco, o

qual, se materializado pela ocorrência do sinistro, gera o pagamento da indenização. Transpondo tais

elementos ao âmbito da previdência social, o prêmio pode ser reconhecido na contribuição

previdenciária (especialmente aquela a cargo do próprio segurado) e a indenização no pagamento do

benefício, sendo que do risco [social] – que, a nosso sentir, é o seu elemento mais importante e

definidor - aqui trataremos e o sinistro lhe é o outro lado da moeda, numa relação de hipótese [de

incidência] e fato [gerador].

de confirmação.” (A Estrutura das Revoluções Científicas. Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. 5a. ed. São Paulo: Perspectiva, 1998, p. 108-111). Destarte, o que se pretende aqui é tão somente esse desenvolvimento da denominada “ciência normal”. 2 No ponto, anota Wagner Balera que “O significado do seguro é o fundamento de todos os demais conceitos que giram em torno da concepção moderna de risco. Esse conceito delimita o quadro, impedindo que o estudioso do assunto se disperse em cogitações vagas e imprecisas. É conceito fundamental em matéria previdenciária. (...) São conceitos fundamentais (...) o de seguro, como contraponto necessário ao risco[,] e o de assistência[,] que, conquanto possa atuar de modo complementar ao seguro, possui características próprias e inconfundíveis.” (Noções Preliminares de Direito Previdenciário, 2ª Ed., São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 157-158).

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Colocadas tais premissas básicas, convém, na sequência, perscrutar acerca das origens da

previdência social, desde um ponto de vista sociológico, para, a seguir, estabelecer os contornos da

transposição do mutualismo ao seguro social e, no arremate [introdutório], proceder a um breve

retrospecto histórico sobre o surgimento da previdência social, o que permitirá situar melhor o nosso

tema.

1.2. Às origens da Previdência Social

Com efeito, é possível afirmar, na senda do que propõe Fábio Zambitte Ibrahim3, que a proteção

social nasce no seio da família4, no contexto de mútua proteção entre seus membros, a partir de uma

solidariedade baseada, por assim dizer, em relações consanguíneas (ancestralidade), de fundo afetivo5.

Convém anotar, porém, que nos primórdios o conceito de família era bastante mais largo do que

aquele que se verifica hodiernamente - restrito, em geral, ao núcleo familiar mais próximo, formado

por pais e filhos economicamente dependentes6. Assim, num passado distante, as pessoas viviam em

extensas aglomerações familiares e os anciãos (ou incapacitados por outra razão), quando já inaptos ao

trabalho braçal produtivo, se recolhiam a afazeres domésticos (por vezes, auxiliando no trato com as

crianças7) e eram sustentados economicamente pelos mais jovens8.

Aqueles que não dispunham do amparo familiar, por qualquer razão – ou porque eram “sozinhos

no mundo” ou porque a família não detinha meios para auxiliar -, caindo em situação de indigência,

3 Curso de Direito Previdenciário, 17ª Ed. Niterói: Impetus, 2012. 4 É certo que ao homem primitivo - que vivia isolado ou em formas embrionárias de organização social, mas, de todo modo, satisfazia por seu próprio esforço suas poucas necessidades vitais (seguindo apenas seus instintos e impulsos) e era abandonado à própria sorte quando incapaz de fazê-lo - a pobreza, o isolamento e a ignorância sequer eram percebidos como um mal e os conflitos se limitavam a uma eventual disputa por comida ou pela posse da fêmea. Quando os homens atingem um estágio de desenvolvimento em que passam a conviver segundo a razão, tornando-se sociáveis, surge um estado social, caracterizado por instituições como a família, a propriedade e o escambo. 5 No ponto, anota Berwanger (Previdência Rural: inclusão social. Curitiba: Juruá, 2008, p. 18) que mesmo na Antiguidade, após o surgimento de colégios profissionais, “a maior ajuda nas dificuldades, ainda provinha mais da família”. 6 É certo, porém, que não era de todo incomum que, em conformações sociais diversas, esse auxílio aos mais idosos se implementasse num contexto desligado das relações de parentesco estrito, ou seja, a tribo, aldeia ou conglomerado (comunidade gentílica) criava uma rede de proteção generalizada a todos os seus membros. 7 Anota Fabio Konder Comparato (A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, 7ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 52) que “Já se observou, de resto, que o processo de seleção natural deu mais vantagens biológicas aos grupos que cuidavam de seus membros não reprodutivos do que àqueles que abandonavam ou matavam os anciãos, pois a capacidade de reprodução global dos grupos altruístas via-se assim singularmente reforçada. Os velhos sempre constituíram um grande auxílio ao grupo, não só pelo fato de se ocuparem das crianças, liberando os demais adultos para a realização de outras tarefas, mas também pelo concurso de sua maior experiência a enfrentar as situações que põem em perigo a sobrevivência do grupo.”. 8 Em suma, assim como hoje os pais são responsáveis pelo sustento dos filhos menores, os filhos eram responsáveis pelo sustento dos pais idosos, inclusive do ponto de vista legal (e não apenas moral, portanto), havendo ainda resquícios disto no Direito atual.

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permaneciam, em geral9, na dependência da caridade de terceiros, atitude que era, normalmente,

incentivada pela Igreja10.

Esse auxílio prestado pela família é ainda suscitado por nossa legislação, inclusive

constitucional11, quando trata do benefício assistencial de prestação continuada: “a garantia de um

salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não

possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família” (art. 203, V,

CRFB – grifos nossos).

9 Segundo Paul Durand (La Política Contemporánea de Seguridad Social, trad. de José Vida Soria. Espanha: Ministerio de Trabajo y Seguridad Social, 1991, p. 88-90): “La asistencia puede, en principio, prestarse por los grupos sociales a los que pertenece la vítima del riesgo y, concretamente, por el grupo familiar y la empresa privada. Tradicionalmente, corresponde a la familia la misión de proteger a los miembros del grupo familiar. (...) Incluso (...) la ley civil traduce esta exigencia moral a través de la forma de una obligación natural. (...) Durante mucho tiempo la familia ha prestado a sus miembros este tipo de cobertura. Todavia hoy cumple esa función en los medios (...) donde (...) la familia constituye la base de la organización económica. (...) Por otra parte, la familia ha experimentado, como consecuencia de las transformaciones económicas del mundo actual, crecientes dificultades para llevar a cabo esa misión que tradicionalmente se le asignaba. (...) La tendencia a una proletarización general no ha permitido a la familia desarrollar su papel de elemento de seguridad. El grupo profesional (...) puede también constituir una garantia contra los riesgos sociales. En la antigua Francia las corporaciones se consideraban obligadas por un deber de caridad hacia sus miembros; (...) La acción de las hermandades secundaba a la de las corporaciones.”. 10 Anota Serau Júnior que “Na Antiguidade a proteção contra os riscos sociais não constituía uma preocupação pública, restando entregue totalmente à esfera privada, a partir de práticas de assistência familiar e de caridade, especialmente das ordens religiosas e por influência do pensamento judaico-cristão. A noção de proteção às contingências sociais durante o período da Idade Média também segue a característica já assinalada de constituir, essencialmente, prática caritativa de fundo religioso-moral ou restrita à assistência familiar.” (A Seguridade Social como Direito Fundamental Material: ou a Seguridade Social como Parte Inerente à Constituição. In FERRARO, Suzani Andrade; FOLLMANN, Melissa [Coord.]. Previdência: entre o direito social e a repercussão econômica no Século XXI. Curitiba: Juruá, 2009, p. 297). 11 E também a civil, conforme dita o nosso Código: Art. 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação. § 1o Os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada. § 2o Os alimentos serão apenas os indispensáveis à subsistência, quando a situação de necessidade resultar de culpa de quem os pleiteia. Art. 1.695. São devidos os alimentos quando quem os pretende não tem bens suficientes, nem pode prover, pelo seu trabalho, à própria mantença, e aquele, de quem se reclamam, pode fornecê-los, sem desfalque do necessário ao seu sustento. Art. 1.696. O direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros. Art. 1.697. Na falta dos ascendentes cabe a obrigação aos descendentes, guardada a ordem de sucessão e, faltando estes, aos irmãos, assim germanos como unilaterais. Comentando o supracitado art. 1.694 do Código Civil, salienta Milton Paulo de Carvalho Filho (in PELUSO, Cezar [coord.]. Código Civil Comentado, 4ª Ed., Barueri: Manole, 2010, p. 1905) que “há que se diferenciar dever de sustento de obrigação alimentar. O primeiro, que compreende os alimentos, decorrerá do poder familiar (art. 1.634), existindo, por isso, entre pais e filhos menores. A segunda, que decorre da lei, está fundada no parentesco e pressupõe a necessidade do alimentado. O presente dispositivo trata especificamente da obrigação alimentar ao referir-se aos parentes, ao casamento e à união estável. A obrigação alimentar tem como principais características a reciprocidade, a possibilidade de que seu surgimento não cesse nunca e, por fim, a pressuposição da necessidade do alimentando. Já o dever de sustento não é recíproco e prescinde da necessidade do alimentando, por ser presumida de modo absoluto.”.

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Já a solidariedade entre as gerações (jovens ativos prestando auxílio aos idosos inativos) é algo

também ainda presente em nosso sistema previdenciário - a denominada “solidariedade

transgeracional”12, que dita o regime de repartição simples, que é, precipuamente, o nosso.

A assistência privada, por sua vez, até hoje desempenha um papel importante, encontrando

também guarida constitucional, inclusive por meio de incentivo fiscal: “são isentas de contribuição

para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências

estabelecidas em lei” (§7º do art. 195 da CRFB).

Ambas as situações – a da assistência mútua entre familiares e a caridade de terceiros –

evoluíram ao longo dos séculos – por muito tempo paralelamente, com poucas intersecções13, mas

mais recentemente em composição sistemática e complementar (ou subsidiária) -, sendo cabível,

portanto, a análise seccionada, sendo que, no presente ensaio, a assistência não é assunto que nos

interessa.

1.2.1. Do mutualismo ao seguro social

Conforme descreve Armando de Oliveira Assis, “o homem, na marcha para a sociedade atual,

veio agrupando-se segundo moldes cada vez mais complexos, a saber: primeiro construindo o grupo

familiar, em seguida compondo a tribo, e, afinal, radicando-se, organizando as nações. O que teria

impulsionado o homem para esse tipo de aglomeração? (...) muito certamente, deve ter concorrido

poderosamente para tal resultado o desejo dos indivíduos de, mediante a ajuda de seu semelhante,

reforçar ou criar meios de defesa contra certas contingências diante das quais se sentiam impotentes

isoladamente, no obscuro instinto de segurança que a existência comum torna concretizável. Daí para

a estrutura da sociedade atual, com os seus sistemas de seguro social, nada mais fez o homem que

aprimorar esse impulso inicial.”14.

12 Comparato (op. cit., p. 52) diz que “a solidariedade humana atua em três dimensões: dentro de cada grupo social, no relacionamento externo entre grupos, povos e nações, bem como entre as sucessivas gerações na História.”. 13 Durand (op. cit., p. 72) descreve que “Diversos son los procedimientos que pueden emplearse para proteger al individuo contra los riesgos (...). Inicialmente puede utilizarse la técnica de la Previsión individual, representada por el ahorro y la Previsión colectiva que tiende a la agrupación y el reparto (dispersión) de riesgos a través de la formula mutualista y las técnicas del seguro. Un segundo procedimiento consiste en imponer la carga de la indemnización a la persona que ha dado origen al riesgo; esta técnica, propia de las reglas sobre Responsabilidad, ha sido empleada para los accidentes de trabajo. La última de las fórmulas es la de la Asistencia, otorgada por grupos privados o por el Estado.”. 14 Em busca de uma concepção moderna de risco social. Revista dos Industriários, n. 18, dezembro de 1950. Republicado na Revista de Direito Social, n. 14, abril/junho de 2004, p. 149-173. Cabe consignar aqui a advertência posta pelo mesmo autor: “Vejamos o reverso. Se o indivíduo espera satisfação, por parte da sociedade, a certas necessidades pessoais, é claro que essa satisfação se efetivará a custa da cessão, por parte dos demais membros da comunidade, de uma dada fração de seus respectivos interesses, isto é, de suas cotas para a composição de um bem comum. Em outras palavras, a garantia que o indivíduo recebe é a resultante da soma de tantas parcelas quanto os demais membros do mesmo agrupamento. Ora, se assim é, a vice-versa é lógica: todo indivíduo, como componente desse mecanismo, está na obrigação evidente de dar sua contribuição para efetivação dessa garantia. (...) Esse equilíbrio, essa reciprocidade, essa inter-relação entre indivíduo e

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Com efeito, o exame do evolver histórico da humanidade permite que visualizemos diversas

outras formas de agrupamento para assistência mútua, sem a participação direta do Estado - o que

também, diga-se de passagem, acha abrigo até hoje em nossa legislação (ou seja, o regime de

previdência privada). Basta ver, por exemplo, o caminhar da Previdência Social no Brasil, que evoluiu

da afluência que gravitava em torno de cada empresa, para a que tinha como eixo a categoria

profissional, chegando, aí já com participação estatal direta, à dicotomia entre urbanos e rurais para

desaguar, finalmente, no atual regime único (ainda que não totalmente único, pois seccionado entre

iniciativa privada e serviço público e, neste último caso, ademais entre servidores civis e militares,

muito embora esta dicotomia também venha sendo paulatinamente enfraquecida). Em suma, o

mutualismo foi a primeira manifestação organizada de compartilhamento de riscos. Enfim, dentre as

várias espécies de seguro, o que cobria a incapacidade laborativa era apenas mais um15.

A doutrina considera que a origem remota do mutualismo é milenar, com os “colégios” gregos

(heterias) e romanos (Collegiae). Segundo Ruben Contreras, “Luego en plena edad media, nace la

comuna aldeana, que tenía como objetivos la posesión, explotación, disfrute y defensa común del

terreno en el cual desarrollaban sus actividades de la vida diaria y les servía de morada. Es aquí que

nace la función del sistema de previsión y asistencia hacia los demás, protegiendo a sus miembros de

la necesidad, principalmente por medio del cultivo en común de una parte de la tierra comunal para

con sus frutos, alimentar a los miembros que se encontraran en mala situación, e incluso a los

viajeros que necesitaban la ayuda de la Comuna. Debido a estas iniciativas y a ese deseo de

superación y organización del hombre ante las necesidades por mejorar su condición de vida, dado su

esencia gregaria, empiezan también en plena edad media a aparecer las Cofradías Medievales, la

Hermandad del Socorro y los Montepíos. La Cofradía Medieval es la institución social, que algunos

estudiosos del mutualismo como Rumeu de Armas, autor de La Previsión Social en España,

consideran la forma embrionaria de mutualidad más remota de la Historia.”16.

sociedade fazem evidenciar a ação reflexa que inevitavelmente se produz entre os dois. Se o indivíduo é uma parte constitutiva do todo que é a sociedade, e se esta é uma resultante da congregação de indivíduos, claro é que um não pode viver como se desconhecesse o outro, ou como se a outra parte lhe fosse adversa, e que qualquer coisa que cause dano a um não deixará de repercutir sobre o outro. (...) Se, pois, o que atinge a sociedade atinge também o indivíduo, e se o que prejudica o indivíduo se reflete na sociedade, esta não poderá deixar de se ressentir de ser perturbada na sua integridade quando qualquer de seus membros sofrer o ataque de uma dessas contingências da vida humana. Quando menos, o infortúnio dos indivíduos causará enfraquecimento na sociedade. Por isso, deve esta velar pela segurança de seus componentes e satisfazer às suas necessidades eventuais por duas razões: 1ª) como um gesto de auto-sobrevivência; 2ª pelos deveres precípuos que lhe tocam.” (idem). 15 No ponto, Marisa Ferreira dos Santos (Direito Previdenciário Esquematizado, 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 28-29) anota que “O seguro do Direito Civil forneceu as bases para a criação de um novo instrumento garantidor de proteção em situações de necessidade. A primeira forma de seguro surgiu no século XII: o seguro marítimo, reivindicação dos comerciantes italianos. Não eram, ainda, as bases técnicas e jurídicas do seguro contratual. O desenvolvimento do instituto do seguro fez surgir novas formas: seguro de vida, seguros contra invalidez, danos, doenças, acidentes etc.”. 16 El mutualismo y su mundo de oportunidades. Acesso em 18 de novembro de 2017. Disponível em: <<http://www.noticierodigital.com/forum/viewtopic.php?t=5036.>>

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As guildas (que surgem a partir do século VII) germânicas e anglo-saxônicas “fue la primera de

las diversas Asociaciones de naturaleza gremial que asocio a los trabajadores por oficios, las cuales

surgieron y se extendieron por toda la geografía europea a partir del siglo X. Estas Gildas de

Artesanos se encargaban de realizar funciones profesionales y económicas relacionadas con la

producción y el trabajo, incluso religiosas y festivas y sus principales cometidos eran la previsión y

asistencia, tomándose según el caso a su cargo, los huérfanos del fallecido y la responsabilidad del

enterramiento. O en otros casos como incendios se socorría al afectado con el objeto que este pudiera

rehacer sus actividades. Con el transcurrir del tiempo estas cofradías asumían más responsabilidades

como el auxilio en dinero a favor de sus integrantes en caso de cautividad, de vejez e invalidez y

también por casos de enfermedad, generando estos auxilios monetarios por la asignación de los

trabajos y sus respectivos rendimientos, lo cual les permitía dar asistencia hospitalaria (...). Se

trataba entonces de una actividad de asistencia social más que de previsión social, lo cual se logró

por la organización de gremios de asociados, según sus habilidades y oficio, llegándose a dar una

dualidad en estas cofradías medievales, de ser cofradías y gremios, las cuales desempeñaban

simultáneamente funciones propias de ambas instituciones, incluyendo en ellas la organización del

trabajo.”17.

Com a revolução industrial, em vista da falta de amparo conferida pela empresa ao trabalhador,

este reagiu, “creando instituciones de Socorros Mutuos, Las Sociedades Cooperativas de Producción

y de Consumo de los Sindicatos. Es asi que ante la pasividad del estado liberal, los trabajadores de la

industria, tratan de organizar un sistema de previsión y asistencia, en la cual la ayuda mutua entre

sus socios, era el factor preponderante para demostrar la solidaridad, a fin de protegerse ante las

distintas situaciones de necesidad que pudiesen confrontar por el desenlace ante los riesgos de

enfermedad, vejez, invalidez, muerte e incluso en algunos casos desempleo.”18.

Em apertada síntese, “Después de revisar estos antecedentes del Mutualismo, podemos decir que

fue concebido como un sistema de ayuda mutua, mediante la creación de asociaciones diversas, con

integrantes de variados estamentos y colectividades, con la finalidad de asumir riesgos y

contingencias sociales como invalidez, enfermedad, vejez y la muerte. Se ha sustentado con los

aportes de sus integrantes o asociados y tenían como fin básicamente la previsión y el socorro. (...) En

el mutualismo está ausente el espíritu de lucro, inspirándose en el principio de la solidaridad lo cual

ha servido de base y antecedentes de los que hoy conocemos como la seguridad social.”19.

17 Idem. 18 Idem. 19 Idem.

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Ocorre que, como bem salienta Marisa Ferreira dos Santos, o “seguro decorria do contrato, e era

de natureza facultativa, isto é, dependia da manifestação da vontade do interessado”20. Assim, o que

acabava acontecendo é que adquiriam a proteção apenas os trabalhadores que fossem parte de

categorias profissionais mais bem organizadas em torno de um vínculo associativo ou aqueles por

natureza mais precavidos e que gozassem de uma situação financeira minimamente confortável, a

comportar algum excedente que permitisse contratar a cobertura junto a uma seguradora privada. Em

suma, a proteção securitária acabava sendo privilégio de uma minoria e deixava de fora boa parte da

massa assalariada.

No ponto, anota Comparato que as declarações de direitos “representaram a emancipação

histórica do indivíduo perante os grupos sociais aos quais ele sempre se submeteu: a família, o clã, o

estamento, as organizações religiosas. É preciso reconhecer que o terreno (...) fora preparado (...) pela

reforma protestante, que enfatizou a importância decisiva da consciência individual em matéria de

moral e religião (...) [e] pela cultura da personalidade de exceção, do herói que forja sozinho o seu

próprio destino (...). Mas, em contrapartida (...), a perda da proteção familiar, estamental ou religiosa,

tornou-o muito mais vulnerável às vicissitudes da vida. (...) a lei assegurava imparcialmente a todos

(...) a possibilidade jurídica de prover livremente à sua subsistência e enfrentar as adversidades da

vida, mediante um comportamento disciplinado e o hábito da poupança. O resultado dessa atomização

social (...) foi a brutal pauperização das massas proletárias (...). O reconhecimento dos direitos

humanos de caráter econômico e social foi o principal benefício que a humanidade recolheu do

movimento socialista (...). O titular desses direitos, com efeito, não é o ser humano abstrato, com o

qual o capitalismo sempre conviveu maravilhosamente. É o conjunto dos grupos sociais esmagados

pela miséria, a doença, a fome e a marginalização. Os socialistas perceberam (...) que esses flagelos

sociais não eram cataclismos da natureza nem efeitos necessários da organização racional das

atividades econômicas, mas sim verdadeiros dejetos do sistema capitalista de produção (...)”. Assim,

“o movimento socialista fez atuar, a partir do século XIX, o princípio da solidariedade como dever

jurídico, ainda que inexistente no meio social a fraternidade enquanto virtude cívica. A solidariedade

prende-se à ideia de responsabilidade de todos pelas carências ou necessidades de qualquer indivíduo

ou grupo social. (...) O fundamento ético desse princípio encontra-se na ideia de justiça distributiva,

entendida como a necessária compensação de bens e vantagens entre as classes sociais, com a

socialização dos riscos normais da existência humana.”21.

Com o surgimento do Estado moderno e o vínculo estreito que se estabelece entre o aparato

estatal e a organização social – destacando-se aí, inclusive, o importante papel desempenhado pelo

20 Op. cit., p. 29. 21 Op. cit., p. 65, 66, e 77.

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Direito -, parece inevitável que o Estado assuma a função ao menos de dirigir (orientar) a rede de

proteção social. Ademais, era necessário contemplar, de algum modo, a massa de trabalhadores até

então despida de proteção.

Conforme aduz Augusto Venturi, citado, com tradução, por Marisa Ferreira dos Santos22, era

“necessário dar um novo passo adiante e este se deu com o reconhecimento de uma dupla necessidade:

de um lado, tornar obrigatórias, para todos os que pertenciam a importantes categorias de

trabalhadores, formas de seguro frente aos principais riscos a que se encontram sujeitos – questão que,

necessariamente, devia ser competência do Estado -; de outro lado, ajudar os trabalhadores a suportar

o custo desses seguros – e, também aqui, o Estado devia adotar alguma medida, chamando a contribuir

a categoria dos empregadores”.

Rubén Contreras anota que “Con el correr del tiempo y ante la multiplicación de los riesgos y

necesidades de sus integrantes y de los trabajadores, tuvo el estado que ponerle atención a los

problemas básicos de la población y fijar su atención en estas asociaciones mutualistas de socorro y

de previsión social y se implementaron los primeros planes de coordinación públicos, a fin de superar

los esquemas limitados de la mutualidad espontanea propiciadas por dichas asociaciones, dado que el

radio de acción del mutualismo siempre ha sido limitado a un área geográfica y poblacional cercana

a la ubicación de su sede y también debido a que los aportantes de fondos han sido personas

trabajadoras y ciudadanos del común, con escasos recursos económicos, lo cual incide en que las

coberturas ante los riegos y contingencias han sido reducidas, con lo cual pudiéramos decir, que ante

ese cumulo de problemas y la limitada respuesta de dichas asociaciones mutualistas y de socorro, se

inició la política oficial de los estados nacionales en materia de previsión y seguridad social.”23.

Segundo Lopes Júnior: “É sabido que a instituição de um sistema de previdência que não seja

obrigatório e que fique a critério de cada um resolver se deve ou não se filiar, enfraquece o Estado no

desenvolvimento de sua tarefa de prestar os benefícios e serviços necessários a garantir o

desenvolvimento da proteção social, especialmente nos países em que não houve ainda uma firmação

do pensamento e conscientização da necessidade de se assegurar o próprio futuro por parte do

trabalhador. (...) Justifica-se ainda a obrigatoriedade (...), uma vez que, tratando-se de um sistema de

repartição como é o brasileiro, quanto mais participantes, maior é a arrecadação e consequentemente

melhores são as condições de concessão e manutenção de benefícios e serviços. Finalmente, somente

22 Idem, ibidem. 23 Op. cit.

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 127

por intermédio de um sistema de filiação obrigatória é que se pode garantir a necessária equidade na

forma de participação no custeio, bem como a diversidade da base de financiamento.”24.

Anota Machado da Rocha, que dentre os fatores que “serviram de estímulo para que os Estados

implementassem a instituição dos seguros obrigatórios (...) [está] a redução com os gastos na

assistência social, custeada pelo Estado, pois os trabalhadores, nos momentos de necessidade social,

contariam com um instrumento mais efetivo (...) por força de sua participação direta.”25.

Serau Júnior, por sua vez, argumenta que “a História mostrou que as medidas individuais (como

a poupança) ou mesmo grupais (como o mutualismo) não são suficientes para garantir ao indivíduo a

satisfação de suas necessidades sociais mínimas, impondo-se a intervenção do Estado em prol do bem

comum.”26.

Destarte, na evolução histórica ora examinada – do mutualismo ao seguro social -, o Estado,

num primeiro momento, reconhece a importância e utilidade social das organizações privadas de

mutualismo, que se constituem com participação apenas dos próprios trabalhadores; num segundo

momento (que, frise-se, não se repercute em todos os cantos do planeta), o Estado torna obrigatório

que o empregador contrate, junto a uma empresa privada de sua escolha (num rol taxativo ou não), um

seguro social para seus empregados, o qual, em geral, se resume a cobrir riscos estritamente

acidentários27, mediante aportes do empregador ou do empregador e do empregado; num terceiro

momento, o Estado percebe que se faz necessário (ou ao menos útil) assumir a administração desse

seguro social e, posteriormente, de expandi-lo para além do universo dos empregados stricto sensu, o

que gera a necessidade de ampliação da base de financiamento, geralmente com aportes diretos por

parte do próprio poder público (é o denominado “custeio tripartite”, com participação de

empregadores, empregados e Estado no financiamento).

24 LOPES JÚNIOR, Nilson Martins. A proteção social do trabalhador rural. 2006. 196 f. Dissertação (Mestrado em Direito das Relações Sociais) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. 2006, p. 76. 25 O Direito Fundamental à Previdência Social na Perspectiva dos Princípios Constitucionais Diretivos do Sistema Previdenciário Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 151. Anota o mesmo autor (p. 153-155) que “Não podemos menosprezar, na consolidação do princípio da obrigatoriedade, a interpretação consagrada pelo STF nos precedentes da Súmula 466. (...) Os empregadores eram considerados segurados facultativos até o advento da LOPS, que operou sua inclusão. (...) O princípio da obrigatoriedade, essência da relação jurídica do seguro social, determinará a vinculação com o regime previdenciário, prescindindo-se da vontade dos trabalhadores. Como consectário da obrigatoriedade, advém a automaticidade da filiação, isto é, a inclusão do segurado em um regime de previdência, e o consequente dever de contribuir, instaurado ope legis, por norma de ordem pública, no momento em que a atividade econômica-laboral passa a ser desempenhada.”. 26 Op. cit., p. 304. “En effect, la sécurité sociale exige que la collectivité, responsable de tous ses membres, les protège, conformément à un ensemble de principes unique, les seules exceptions étant celles que peut justifier l’intérêt national. La communauté, dispensatrice de la sécurité sociale, doit donc en quelque sorte assumer le rôle d’une société nationale de secours mutuel offrant à tous ses membres un régime de prestations uniforme.” (Bureau Internacional do Trabalho, Les tendances se la securité sociale dans le periode d’aprés guerre, Genebra, 1949, citado por Armando de Assis Oliveira, op. cit.). 27 Isto esteve vigente no Brasil, quanto à Infortunística propriamente dita, até a década de 1970.

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Discute-se, em doutrina, se o seguro social surge apenas quando o Estado assume sua

administração e parcela do financiamento ou já quando apenas se torna obrigatória a contratação pelo

empregador de uma seguradora privada. De minha parte, embora considere que não se trata de uma

questão realmente útil (senão apenas de nomenclatura ou classificação), entendo que a obrigatoriedade

e a expansão do financiamento para além do bolso do próprio segurado são características básicas28

que permitem que já se fale, a partir daí, em seguro social, que passa, então, a ser um direito subjetivo

do trabalhador29. Como veremos no escorço histórico que logo adiante traçaremos, o seguro social

surge ao final do século XIX, com Bismarck. Na concepção inicial, contemplava apenas a categoria

dos trabalhadores assalariados (o que corresponderia, hoje, ao segurado empregado), deixando de fora

os autônomos.

Na essência, a partir daí, o seguro social perde o seu caráter civilista (ainda que preserve

algumas das características anteriores30) e adquire uma linha publicista, passando a ser regido pela

ideia de solidariedade (social)31 e não mais de mutualismo (ainda que, insisto, haja sobreposição

quanto a certos traços)32.

É a partir do Plano Beveridge que o seguro social passa a pretender abarcar todos os

trabalhadores (agregando, assim, os não-assalariados) - ainda que, em geral, não se expandisse, no

Brasil, para além do setor urbano, é dizer, os trabalhadores rurais vieram a ser integrados mais

tardiamente, mas a ideia de universalidade subjetiva já se fazia presente.

28 Pode-se mencionar também algumas outras, como: a constituição de um fundo mútuo sustentável (sem, porém, o objetivo direto de lucro); e a seleção desinteressada (ou seja, não regida por um cálculo capitalista) dos riscos cobertos (antes, na relação privada, a análise financeira operada pela seguradora poderia determinar a exclusão de certos riscos cuja cobertura fosse demasiado onerosa) pelo legislador (e não pelo contrato, portanto) . 29 Colhemos aqui, novamente, a lição de Durand (op. cit., p. 72-83): “la mutualidad y el seguro (...) presentan un caráter común: (...) la carga que suponga un siniestro (...) se divide entre todos los miembros del grupo. (...) La mutualidad representa (...) una forma arcaica para la reparación de riesgos sociales. (...) En Gran Bretaña, las sociedades de socorros mutuos (...) fueron mucho (...) importantes. En Alemania (...), la temprana implantación de Seguros Sociales - forma de mutualidad obligatoria - hizo menos útil el desarrolo de instituciones de previsión voluntaria. (...) El éxito de la mutualidad supondría la constitución de una agrupación obligatoria que dispusiera a la vez de cotizaciones de los adheridos y de recursos distintos a esas cotazaciones. Esta fórmula es precisamente la típica de los seguros sociales. (...) la intervención de una sociedad de seguros permite poner en relación a mutualistas que se desconocen, que pertenecen a profesiones y a regiones muy diversas y que, en circunstancias normales, no habrian tenido ocasión de entrar en un mismo movimiento mutualista. Técnicamente, el seguro es más perfecto que la simple fórmula de la mutualidad. Agrupa más riesgos y practica el reaseguro. (...) La técnica del seguro es una de las más perfectas que se pueda imaginar para la cobertura de riesgos. Y es precisamentre esta la que los seguros sociales han utilizado, modificando, sin embargo, alguna de sus características.”. 30 No ponto, anota Marisa Ferreira dos Santos (op. cit., p. 31): “O seguro social é espécie do gênero seguro, que, embora com características próprias, ainda tinha muito do seguro privado”. 31 Há, porém, que reconheça que tal transição só se efetua num momento histórico mais tardio, como já deixei consignado. 32 José Vida Soria (“estudio preliminar” à obra de Paul Durand – op. cit., p. 34) aduz que “En el apartado que se dedica a las técnicas de Reparación de efectos de riesgos sociales se sitúan en realidad todos los mecanismos jurídicos e institucionales que se pueden calificar de tradicionales, que toman su origen en los procedimientos más primitivos de protección social (e individual) - ahorro, responsabilidad civil, mutualidades, seguros sociales - hasta llegar a las fórmulas coordinadas que convencionalmente se podrían calificar, como normalmente se viene haciendo, de sistema de Previsión social.”.

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Num momento posterior, que se prolonga à quadra que vivemos, o seguro social é acoplado por

um novo sistema, a seguridade social, que resulta da unificação daquele com a assistência pública,

sendo que os dois subsistemas passam a desempenhar um papel de complementariedade recíproca (ou

subsidiariedade). Em suma, o seguro social subsiste até hoje, consistindo, porém, num subsistema - o

previdenciário – dentro de um sistema mais amplo, que é o da seguridade social33.

1.2.2. Antecedentes remotos da Previdência Social

Jane Berwanger indica que “As primeiras medidas de proteção social, registradas na história,

ainda na Antiguidade, surgiram (...) com o Código de Hamurabi (...) e com o Código de Manu, (...)

que continham preceitos de proteção aos trabalhadores e carentes. (...) ainda destacam-se a legislação

de Sólon, na Grécia, que concedia subsídio aos carentes.”34.

Daniel Machado da Rocha35 aponta alguns antecedentes da Previdência Social na antiguidade –

os “colégios” gregos (heterias) e romanos (Collegiae) 36 - e também no medievo – como as guildas

(que surgem a partir do século VII) germânicas e anglo-saxônicas, que, algumas delas, previam dentre

suas finalidades a assistência em caso de doença e funeral, e, mais tarde (século XII), com as

corporações de ofício, com nítido caráter mutualista37.

33 Há quem, porém, discorde de tal afirmação, sustentando que a Seguridade Social não pode ser vista como integração das formas previdenciárias ou assistenciais preexistentes (por exemplo, Giuliano Mazzoni, in Existe um conceito jurídico de seguridade social?, Revista de Direito Social n. 22, p. 170). Balera (in Noções..., p. 68-69) afirma que “não nos parece rigoroso alegar que a fase ou era da previdência social já se tenha encerrado. De feito, o histórico da questão social, com seu curso imprevisível, determinou que essa problemática tomasse rumos mais abrangentes sem, contudo, esgotar-se por completo o modelo originariamente estabelecido [o bismarckiano, no caso]. Seria errôneo, pois, procurarmos encontrar antinomias entre a ‘fase’ da previdência social e a ‘etapa’ da seguridade social, como quer certa doutrina, ao afirmar que esta última é estágio distinto daquele formado pela técnica do seguro.”. 34 BERWANGER, Jane Lucia Wilhelm. Previdência Social Rural: inclusão social. Curitiba: Juruá, 2008, p. 17. 35 O Direito Fundamental à Previdência Social na Perspectiva dos Princípios Constitucionais Diretivos do Sistema Previdenciário Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. 36 Os Collegia romanos existiram até a queda do Império Romano do Ocidente, merecendo destaque pela “sua natureza mutualista, na medida em que buscavam (...) manter um regime de ajuda recíproca aos seus membros” (Machado da Rocha, op. cit., p. 21). 37 No mesmo sentido, a lição de Serau Júnior: “Destacam-se (...) as guildas germânicas e anglo-saxônicas, com origens no século VII, que incluíam em suas finalidades a assistência em caso de doença e a cobertura de despesas de funeral. Posteriormente, por volta do século XII, sublinhe-se o aparecimento das corporações de ofício, em toda a Europa, formadas por pessoas que exerciam o mesmo ofício ou profissão, dotadas de caráter mutualista (...).” (op. cit., p. 297). Rubén Contreras relata que na “América Precolombina también se dieron casos de previsión y asistencia con nuestros aborígenes, como lo acaecido en el Imperio de Los Incas, en Tahuantinsuyo, con el Alyllu, quienes garantizaban a la totalidad de sus integrantes el derecho a la vida mediante la satisfacción plena de las necesidades físicas y primordiales como la alimentación, vestido, vivienda y salud, que equivalía a evitar el hambre y la miseria y otras penurias derivadas de las desigualdades sociales, si como los efectos destructores de la naturaleza. Asi, los sobrantes del cultivo de las tierras del Inca eran depositadas en las piruas (graneros del estado), para cubrir la escasez en casos de sequía y calamidades públicas, tal como se lo refiere el Inca Garcilaso de La Vega en Sus Comentarios Reales. Otra organización comunal precolombina fue el Calpulli, en el México aborigen, como lo refiere Fray Bernardino de Sahagún en Estudios Etnológicos del México Precolombino, el cual cumplía determinadas funciones de previsión social, ,similares al Alyllu incaico, ya que cuando alguno de sus integrantes se enfermaban o sufrían accidentes, o se lesionaban en las guerras, tenían el derecho a seguir percibiendo los bienes que producían en la comunidad.” (op. cit.)

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Na Idade Moderna, surge, no mundo ocidental, o Estado nacional (território, povo, nação)

soberano e laico, com a assunção do monopólio da força e da missão legislativa (um só exército, única

ordem jurídica). A burguesia ascendente, contrariada com a intervenção estatal, que considera

excessiva, passa a exigir a limitação do poder do Estado, exaltando o valor da liberdade individual, de

onde surge a ideia dos direitos fundamentais (de primeira geração), consagrando valores liberais38.

Nessa quadra histórica, aponta Machado da Rocha que “a proteção das necessidades sociais efetiva-se

por intermédio das irmandades de socorro, e, depois, dos montepios”. A irmandade, que nasce como

sucessora do grêmio, conferia, diferentemente deste, direito subjetivo aos seus membros para obter a

proteção pertinente. “Depois”, continua Machado da Rocha, “são sucedidas pelos montepios laicos e

subvencionados pelo Estado, não para a massa da população, mas restritos a atividades

profissionais”39.

Aponta o mesmo autor que os “colégios romanos, as irmandades e corporações medievais, as

sociedades de socorro mútuo apresentavam o caráter de mutualidade, mas não tinham incorporado os

pressupostos técnicos e jurídicos do seguro (...). O instituto do seguro não apresenta uma evolução

histórica unitária, mas um desenvolvimento independente dos seus diferentes ramos. (...) os seguros

privados surgiram antes da assistência social, a sua aplicação para a cobertura de riscos sociais

somente será efetivada muito mais tarde.”40.

Em termos de assistência social, destaca Wagner Balera41 que, em âmbito mundial, ela se

expressa pela primeira vez segundo fórmula engendrada pelo imperador Trajano, que criava modelo

no qual fornecia crédito aos agricultores e, com o rendimento dos empréstimos, proporcionava o

sustento regular de crianças pobres da região de Veleia42. No ano 100 da era cristã, surge o normativo

cujo teor é o mais antigo comprovante da existência dos seguros públicos na Itália: a “tábua de

Veleia”, como é conhecida, se acha exposta no Museu Arqueológico Nacional de Parma. Segundo

Balera43, “criava concreta fórmula assistencial, consistente no pagamento mensal de benefício, cujo

valor corresponderia à nossa atual noção de mínimo existencial, e que perdurava durante todo o

período da menoridade”. No Act for the Relief of the Poor, promulgado durante o reinado de Isabel I,

na Inglaterra, em 1601, usualmente citada como a primeira lei assistencial do mundo, era garantida

proteção aos carentes nas situações de enfermidade, invalidez e desemprego. Segundo Balera, trata-se

38 São documentos de destaque dessa época a Petition of Rights, de 1628, o Habeas Corpus Act, de 1679, e o Bill of Rights, de 1689. 39 Op. cit., p. 26. 40 Op. cit., p. 27. 41 Sistema de Seguridade Social. 7ª Ed. São Paulo: LTr, 2014. 42 Em outra obra (Noções..., p. 60), o autor refere também as chamadas “leis fumentárias”, a primeira de 123 a.c., que fixavam o preço do trigo a ser vendido à população pobre, em valor muito inferior ao de mercado. Foram depois substituídas pela Lex Cassia Terentia Frumentaria, que determinava a distribuição, pelo Estado, de cinco medidas de trigo à população pobre cadastrada. 43 In Noções..., p. 62.

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da “primeira modelagem concreta a certo programa de proteção social de caráter permanente”44.

Machado da Rocha, por sua vez, aponta que “No campo da assistência aos pobres, a intervenção

estatal implementou-se, com caráter geral, primordialmente em 1413 em Gênova, cuja Constituição

desse ano determinava a nomeação de ‘oficiais de misericórdia’, com o intuito de arrecadar e distribuir

oferendas aos indigentes. Em Frankfurt, há registro de regulação da assistência oficial aos pobres em

1437. Nessa trilha, surgiram leis na França (Edito, de Francisco I, em 1536), Alemanha

(Reichspolizeiordnung, de Carlos V, em 1530), progressivamente ampliadas pela legislação posterior,

bem como estendendo-se para os demais países europeus. À medida que as sociedades evoluem, as

políticas de socorro aos desvalidos não emergem apenas motivadas pelo espírito de caridade, mas

também como medida de ordem pública que poderia ser ameaçada pela fome e pela miséria de grandes

grupos de excluídos. (...) medidas de polícia continuavam sendo amplamente utilizadas (...), tais como

a expulsão dos indigentes e as deportações ultramar.”45.

1.2.3. O surgimento da Previdência Social no mundo

A par dos antecedentes remotos, acima mencionados, é possível afirmar que a Previdência

Social, da forma como a conhecemos, surge já na Idade Contemporânea. O que ganha relevo, aqui, é a

transposição do esquema (difuso) de seguros privados para o sistema do seguro obrigatório.

No ponto, anota Machado da Rocha que “A introdução do seguro social obrigatório somente foi

possível, na lição de Venturi, pela conjugação de três fatores: uma nova corrente de pensamento

econômico-social, um ambiente econômico propício e um homem de Estado que acolhesse a ideia e

tivesse a força suficiente para vencer qualquer resistência. O novo salto, na trilha evolutiva da proteção

social, registra-se com a Lei Prussiana, de 1810, que previu o seguro-doença para os assalariados, e a

Lei Austríaca, de 1854, englobando os riscos de morte, invalidez e velhice, porém restrita aos

trabalhadores das minas. Coube a Bismarck (...) o pioneirismo de instituir um sistema de seguros

sociais, começando pelo seguro-doença (...) de 1883, extensível à generalidade dos trabalhadores. (...)

O sistema alemão foi sendo ampliado mediante a edição das Leis de 1884 e 1889, as quais versavam,

respectivamente, sobre acidentes do trabalho46 e seguros de velhice e invalidez47, e, em 19 de julho de

44 Idem, p. 63. 45 Op. cit., p. 26. 46 Na Inglaterra, o The Workmen's Compensation Act, promulgado em 1897, trazia regramento similar ao da lei alemã de 1884, sobre acidentes no trabalho. Tal ato veio substituir o Employer's Liability Act, de 1880, que concedia ao trabalhador o direito de processar o empregador, com inversão do ônus da prova. A partir de 1987, todavia, bastava provar que a lesão ocorrera no trabalho, ou seja, havia responsabilidade objetiva do trabalhador. 47 Na Inglaterra, o Old Age Pensions Act, de 1908, concedia pensão aos maiores de 70 anos, independentemente de contribuição.

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1911, serão essas três consolidadas e ampliadas no primeiro Código de Seguros Sociais.”48. Conforme

o entendimento histórico prevalecente, as condições que confluíram para que a Alemanha fosse

precursora na implementação do seguro social obrigatório foram, de um lado, a visão do Chanceler

Bismarck no sentido de que seria necessário oferecer algumas concessões para não colocar em risco as

relações de poder vigentes e, por outro lado, a própria transição histórica da sociedade alemã desde o

feudalismo, implementada em grande parte por reformas elaboradas por uma elite intelectual (numa

espécie de aristocracia)49.

Apenas em 1911, o desemprego involuntário passou a ser resguardado pelo seguro social na

Grã-Bretanha (precursora no assunto, se considerarmos a implementação em âmbito nacional), o que

resultou de uma mudança de concepção em torno do tema: de um azar ou incompetência individual

(grave), de alguém que deveria procurar se adaptar ao regime, para um risco ou contingência

inexorável do sistema, desequilibrado por natureza50. Na sequência, os seguros sociais se proliferaram

pelo restante da Europa51. Durand anota que coube à Suécia, por uma lei de 1913, conceber “la

primera experiencia de un sistema de pensiones nacionales para todos los miembros de una

población”52.

A Constituição Mexicana de 1917 previa em seu art. 123 a cobertura contra acidentes de

trabalho e moléstias profissionais, de responsabilidade do empregador (inciso XIV), e também um

período de descanso pós-parto remunerado de um mês (inciso V), além de considerar de utilidade

social a criação de “Caixas de Seguros Populares”, que devem cobrir os riscos de invalidez, de vida,

de cessação involuntária de trabalho, de acidentes e outros53. O art. 161 da Constituição de Weimar

prescrevia o seguinte: “In order to maintain health and the ability to work, in order to protect

motherhood and to prevent economic consequences of age, weakness and to protect against the

48 Op. cit., p. 35. 49 Guilherme Delgado e Helmut Schwarzer apontam que “o próprio evento do nascimento da previdência moderna, na Alemanha bismarckiana, é um exemplo clássico de como, em sociedade e economia de desenvolvimento tardio, um regime autoritário, imperial e patrimonialista serve-se de concessões em política social para aplacar focos de oposição. Mais do que isso, por meio da natureza paternalista do vínculo estabelecido entre Estado e população afetada, logra criar profundos laços de lealdade e dependência dos beneficiários para com o seu ‘soberano’.” (Evolução Histórico-Legal e Formas de Financiamento da Previdência Rural no Brasil. In CARDOSO JR., José Celso; DELGADO, Guilherme. A Universalização de Direitos Sociais no Brasil: a Previdência Rural nos anos 90. Brasília: IPEA, 2000, p. 187-210). 50 O National Insurance Act, de 1911, criava um regime contributivo tripartite (empregado, empregador e Estado contribuíam, em proporções diversas), cobrindo os riscos de doença e desemprego, destinado apenas aos trabalhadores assalariados. 51 No EUA, o marco inicial é o Social Security Act, de 1935, que foi uma das medidas do New Deal, de F. D. Roosevelt, sendo, conforme descreve a maior parte da doutrina, a primeira vez que o termo “seguridade social” foi utilizado. Não obstante, Durand (op. cit., p. 53) relata que Miguel García Cruz “remonta la utilización del término a Simón Bolívar, que declaraba, en el mes de febrero de 1819: ‘EL sistema más perfecto de gobierno es aquel que engendra la mayor suma de bienestar, la mayor suma de seguridad social y la mayor suma de seguridad política’.”. 52 Op. cit., p. 113. 53 Anota Balera que foi na Constituição Mexicana de 1917 que, “pela primeira vez, o Estado assumia que o risco do trabalho não poderia ser suportado apenas pelo operário. (...) Na verdade, a concepção moderna de risco social nasce nesse instante: o da assunção, pelo Estado, do papel garantidor da proteção social dos trabalhadores.” (Noções..., p. 155-156).

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vicissitudes of life, the Reich establishes a comprehensive system of insurances, based on the critical

contribution of the insured” 54. Anota Machado da Rocha que “É pertinente indicar que, na

Conferência de Paz que se reuniu em 1919, em Versalhes, cuja preocupação central foi a questão

social, a Alemanha já havia proposto a introdução de um direito comum dos seguros sociais, baseado

em normas mínimas, a qual restou rejeitada. Contudo, na parte XIII do Tratado de Versalhes,

deliberou-se a criação da Organização Internacional do Trabalho (...).”55.

Outro momento crucial, a alterar o curso da história de nossa disciplina, teve início em 1941,

quando o economista Sir William Beveridge foi convidado pelo governo britânico para presidir uma

comissão incumbida de produzir um diagnóstico sobre a seguridade social no país. Os relatórios

elaborados por tal comissão viriam a influenciar na escalada do seguro social ao redor do mundo, sem

qualquer exagero ou força de expressão. Em síntese, tratava-se de um esquema bastante completo (e

também ousado, cabe ressaltar), a conferir proteção extensiva contra os ditos cinco “gigantes”: a

necessidade, a enfermidade, a ignorância, a miséria e a necessidade. O denominado “Plano Beveridge”

criou um sistema universal, abrangendo todos56 e com participação compulsória de toda a sociedade57.

O contexto do pós-Segunda Guerra, de completa destruição, foi um campo fértil para que ganhasse

corpo a ideia de uma amplíssima proteção social. E assim foi: a seguridade social experimentou um

crescimento desenfreado58 nas décadas que seguiram59.

Podemos perceber, a partir do que foi relatado, que o devir histórico-evolutivo da previdência

social, até os tempos mais recentes, foi sempre no sentido de ampliação da proteção (dos sujeitos e dos

54 A tradução em inglês, à qual fiz pequenas correções de ortografia (na verdade, erros de digitação), consta no seguinte endereço eletrônico: http://www.zum.de/psm/weimar/weimar_vve.php (consulta em 26/12/2016). 55 Op. cit., p. 33. 56 Não apenas os empregados, mas todos os trabalhadores. 57 É ideia corrente a de que Beveridge defendia a cobertura “do berço ao túmulo”, mas parece não haver provas de que isto tenha sido mesmo por ele afirmado. 58 O direito à seguridade social encontrou abrigo no corpo de diversas declarações internacionais de direitos humanos. Cabe mencionar, pela relevância, o art. 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948): “1. Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade. 2. A maternidade e a infância têm direito a ajuda e a assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozam da mesma protecção social.”. 59 No ponto, José Vida Soria (no “estudio preliminar” à republicação da obra de Paul Durand – op. cit., p. 24-26) anota que “La decada de los cincuenta (...) inicia la apoteosis de la Seguridad Social, al menos en el mundo occidental, o mejor europea (...), construida sobre las huellas de los Informes Beveridge, y constituida en piedra angular del Estado Social, planificador, intervencionista y estabilizador del orden social. (...) Casi cuarenta años después presenciamos un proceso de disgregación aluvional (...) [y] de su sustitución por otro (...) que en realidad tiene una significación y una funcionalidad muy distinta”. E, citando o próprio Durand, acrescenta que “la inclinación por el riesgo y la necesidad de seguridad constituyen dos tendencias fundamentales del espiritu humano”, completando, já em suas próprias palavras: “y como el siglo XIX (...) fue la epoca de la inclinación por el riesgo, (...) el siglo XX da muestra de necesitar la seguridad. (...) a la altura de 1953, el proceso de montaje institucional de una red de Seguros sociales (...) estaba ya consolidado prácticamente en todos los países desarrolados. (...) Quizás el dato más significativo al respecto, (...) Beveridge (...) vino a instrumentar el planteamiento keynesiano en el ambito de la protección social”.

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riscos)60, ainda que com algumas idas e vindas, caminhando para o estágio protetivo do “homem todo

e de todos os homens”, conforme consta na Encíclica Populorum Progressio, de Paulo VI. Não

obstante, há algumas décadas, a Previdência entrou em crise, fase que se prolonga até a atualidade. Tal

desenrolar, contudo, não será aqui analisado61. Por ora, cabe anotar apenas, com Helmut Schwazer,

que “o sistema previdenciário formal de tipo bismarckiano (...) estipulava, como regra de acesso, a

contribuição prévia. (...) o modelo conhecido como beveridgiano (...) não exige contribuição

individual anterior para a obtenção de um benefício básico: avalia-se o direito à prestação por alguma

característica definidora da cidadania (...). No entanto, desde Beveridge, esse modelo apresenta, além

do benefício básico universal, um significativo módulo contributivo. Com as reformas do Welfare

State na segunda metade do século XX, em diversos países, elementos componentes desses (...)

paradigmas passaram a se sobrepor. Embora ainda seja possível identificar a prevalência de algum dos

‘paradigmas originários’, dificilmente serão encontrados casos estritamente clássicos. A Alemanha,

por exemplo, embutiu no seguro contributivo bismarckiano vários elementos universalizantes e,

ademais, teceu uma extensa rede de assistência social. A Suécia, o protótipo de Welfare State

60 A ampliação da seguridade social para além das fronteiras do risco essencialmente laboral contribuiu, inclusive, para a autonomia da disciplina em relação ao Direito do Trabalho. Neste sentido, anotam Antonio Martín Valverde, Fermín Rodríguez-Sañudo Gutiérrez e Joaquín García Murcia (Derecho del Trabajo, 20ª Ed. Madrid: Tecnos, 2011, p. 63): “¿Forman parte las instituciones jurídicas de la Seguridad Social del sistema de normas que llamamos Derecho del Trabajo? La respuesta a esta pregunta era afirmativa hasta el segundo tercio de siglo XX. En sus primeiras etapas la Seguridad Social se concibió como um mecanismo de protección destinado exclusivamente a los trabajadores asalariados, y para la cobertura de riesgos relacionados con el trabajo (...). La tendencia manifestada tras la Segunda Guerra Mundial a generalizar la protección dispensada a toda la población activa, e incluso a todos los ciudadanos, impide considerar hoy la Seguridad Social como una parte del Derecho del Trabajo. (...) Esta tendencia hace obligado redefinir en términos jurídicos las contingencias o situaciones de necesidad protegidas, que ya no aparecen vinculadas necesariamente al trabajo asalariado: accidente, enfermedad, incapacidad, carencia de medios de vida, vejez. De todas maneras, aunque no quepa negarle sustantividad como rama del ordenamiento, la Seguridad Social sólo se puede estudiar en buenas condiciones a partir del Derecho del Trabajo; al menos en los sistemas de Seguridad Social, como el español, que responden al llamado ‘modelo profesional’. Primero, porque los conceptos fundamentales de aquélla provienen en buena parte de éste. Segundo, porque el núcleo central y principal punto de referencia normativo de la Seguridad Social vigente es el denominado Régimen General de la Seguridad Social, que es el aplicable a los trabajadores asalariados de la industria y los servicios. Y tercero, y sobre todo, porque existe una evidente complementariedad en materia de protección social entre la Seguridad Social y determinadas instituciones del Derecho del Trabajo.”. 61 Acerca das fases evolutivas da previdência social no mundo, há, por óbvio, construções diversas espalhadas pela doutrina. Procuramos, aqui, adotar uma menos controversa e mais adequada à opinião dominante, pautada especialmente na visão de Paulo Cruz que, por sua vez, segue Jean Touchard, indicando quatro fases evolutivas: Experimental – Bismarck, na Alemanha, promulga um conjunto de normas (seguro-doença, aposentadoria e proteção a vítimas de acidente de trabalho). É o marco inicial da Previdência Social no mundo, segundo a doutrina majoritária. No início do Séc. XX, a Inglaterra avançou fortemente em termos de legislação de proteção social do trabalhador. Consolidação – Constitucionalização de direitos sociais (Mexicana, de 1917; Weimar, de 1919). Em 1919, foi criada a OIT e em 1927, a Associação Internacional de Seguridade Social. Expansão – Período do segundo pós-guerra. Em 1944, foi adotado na Inglaterra o “Plano Beveridge”, que criou um sistema universal (abrangendo todos e com participação compulsória de toda a sociedade). Está aí a origem da Seguridade Social. Redefinição – Uma fase de “crise”, decorrente do alegado gasto excessivo do modelo de Estado do Bem-Estar Social.

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universal, em 1998 transformou profundamente o seu sistema previdenciário, que se tornou mais

contributivo.”62.

1.3. O fundamento da Previdência Social

Podemos indicar vários fundamentos teóricos que sustentam a existência – como criação ou

manutenção – da previdência social. Com efeito, é possível apontar, com segurança, ao menos quatro:

a doutrina social da Igreja, a ideia de bem comum, a teoria do contrato social e a ideia de precaução.

Cabe aqui trazer algumas linhas apenas sobre este último, em vista de sua mais íntima correlação com

a ideia de risco.

Como bem observa Comparato, “o curso do processo de evolução vital foi substancialmente

influenciado pela aparição da espécie humana. A partir de então, surge em cena um ser capaz de agir

sobre o mundo físico, sobre o conjunto das espécies vivas e sobre si próprio, enquanto elemento

integrante da biosfera63. O homem passa a alterar o meio ambiente e, ao final, com a descoberta das

leis da genética, adquire os instrumentos hábeis a interferir no processo generativo e de sobrevivência

de todas as espécies vivas, inclusive a sua própria” 64. É certo que muitos animais têm como hábito,

instintivo, o de guardar alimentos para as temporadas mais difíceis do ano. Não obstante, nenhum

animal, exceto o homem, tem a perspectiva de plantar (e cultivar) para depois colher, de domesticar e

destinar outro animal à engorda para dele posteriormente se alimentar, enfim, de construir as bases de

sua segurança alimentar. E o ser humano, ao longo da história, vem desenvolvendo meios para

aumentar sua segurança em torno de diversos outros aspectos, como, por exemplo, os climáticos. Em

suma, busca controlar ou ao menos diminuir os riscos impostos pela natureza65. Ademais disto,

62 A Previdência Rural na Experiência Internacional. In CARDOSO JR., José Celso; DELGADO, Guilherme. A Universalização de Direitos Sociais no Brasil: a Previdência Rural nos anos 90. Brasília: IPEA, 2000, p. 211-242. 63 “Numerosas são as maravilhas da natureza, mas de todas a maior é o homem! Singrando os mares espumosos, impelido pelos ventos do sul, ele avança e arrosta as vagas imensas que rugem ao redor! E Gea, a suprema divindade, que a todos mais supera, na sua eternidade, ele a corta com suas charruas, que, de ano em ano, vão e vêm, fertilizando o solo, graças à força das alimárias! Os bandos de pássaros ligeiros; as hordas de animais selvagens e peixes que habitam as águas do mar, a todos eles o homem engenhoso captura e prende nas malhas de suas redes. Com seu engenho ele amansa, igualmente, o animal agreste que corre livre pelos montes, bem como o dócil cavalo, em cuja nuca ele assentará o jugo, e o infatigável touro das montanhas. E a língua, e o pensamento alado, e os sentimentos de onde emergem as cidades, tudo isso ele ensinou a si mesmo! E também a abrigar-se das intempéries e dos rigores da natureza! Fecundo em recursos, previne-se sempre contra os imprevistos. Só contra a morte ele é impotente, embora já tenha sido capaz de descobrir remédio para muitas doenças, contra as quais nada se podia fazer outrora. Dotado de inteligência e de talentos extraordinários, ora caminha em direção ao bem, ora ao mal... Quando honra as leis da terra e a justiça divina ao qual jurou respeitar, ele pode alçar-se bem alto em sua cidade, mas excluído de sua cidade será ele, caso se deixe desencaminhar pelo Mal.” (trecho do famoso canto do coral da Antígona, de Sófocles) 64 Op. cit., p. 18. 65 Ao mesmo tempo, porém, cria ou desenvolve outros, como descreveremos mais adiante.

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procura também criar um arcabouço apropriado para lidar, da melhor maneira possível, com os efeitos

da contingência (sinistro66) já ocorrida.

Conforme anota Zambitte, a “preocupação com os infortúnios da vida tem sido uma constante da

humanidade. Desde tempos remotos, o homem tem se adaptado, no sentido de reduzir os efeitos das

adversidades da vida”67. Esta rede de proteção veio, com o tempo - especialmente em virtude da

evolução do pensamento humano, da sociedade, do Estado e da economia -, se expandindo, ganhando

complexidade e também transformando sensivelmente suas bases.

A previdência pode ser vista, nessa toada, como parte dessa rede de segurança, tendo como base

a ideia de precaução, já que visa proteger o trabalhador que sofre um infortúnio, ainda enquanto a pino

sua capacidade laborativa, ou após ter atingido uma idade avançada que, ao menos em tese, impede ou

dificulta demasiadamente que permaneça em atividade (ressalte-se que, ao menos em princípio, o que

se tem em vista aqui são razões de natureza física e não propriamente de mercado de trabalho).

A ideia de precaução não se confunde com o princípio da precaução, este de ampla utilização

hodierna no âmbito do Direito Ambiental. Dentre as diversas versões propostas ao princípio da

precaução, podemos destacar aquela estabelecida pela Comissão Mundial sobre Ética da Ciência e da

Tecnologia da Unesco (Comest): “Quando atividades podem conduzir a dano moralmente inaceitável,

que seja cientificamente plausível, ainda que incerto, devem ser empreendidas ações para evitar ou

diminuir aquele dano. ‘Dano moralmente inaceitável’ refere-se a dano para os seres humanos ou para

o ambiente, que seja uma ameaça à vida ou à saúde humanas, ou que seja sério e efetivamente

irreversível, ou injusto com as gerações presentes e futuras, ou imposto sem a adequada consideração

dos direitos humanos daqueles afetados. O juízo de plausibilidade deve estar fundado em análise

científica. As análises devem ser contínuas, de modo que as ações escolhidas sejam submetidas a

revisão. ‘Incerteza’ pode aplicar-se, mas não necessita limitar-se, à causalidade ou aos limites do dano

possível. ‘Ações’ são intervenções empreendidas antes que o dano ocorra que buscam evitar ou

diminuir esse dano. Deve-se escolher ações que sejam proporcionais à seriedade do dano potencial,

com consideração de suas conseqüências positivas e negativas, e com uma avaliação tanto da ação

como da inação. A escolha da ação deve ser o resultado de um processo participativo.”68.

O princípio da precaução estaria jungido ao princípio da prevenção, sendo que este determina

que, diante de uma atuação potencialmente danosa, é preciso empreender estudos em torno do impacto

66 Esclarecemos que diferenciamos o conceito de “risco” do de “contingência” - na mesma linha do que fazem outros autores, mas é certo que não há padronização a respeito -, no mesmo sentido em que, no direito tributário, diferencia-se “hipótese de incidência” de “fato gerador”. Assim, “risco” é a previsão legal e abstrata da ocorrência, enquanto “contingência” é o sinistro em si, ou seja, a ocorrência de fato no mundo fenomênico. 67 Op. cit., p. 01. 68 Retiro a transcrição de: LACEY, Hugh. O Princípio da Precaução e a Autonomia da Ciência. Scientia Studia, São Paulo, v. 4, n. 3, p. 373-392, 2006.

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possível antes de se tomar qualquer medida, enquanto aquele dispõe que, permanecendo a incerteza

científica após feitos os estudos, a regra é não agir. Em suma, o escopo é o de evitar a materialização

dos riscos.

Em nosso ramo, contudo, a ideia de precaução tem a função precípua69 de antecipar a

organização da distribuição do ônus da materialização dos riscos, até porque há aqueles que não são

propriamente indesejáveis (idade avançada, maternidade). Não se trata aqui, portanto, de se antecipar

no conhecimento do risco para evitá-lo ou amainá-lo, mas sim para formar uma rede de proteção apta

a lidar, da melhor maneira possível (sem onerar demasiadamente o atingido), com as suas

consequências.

2. O Conceito de Risco

“A despeito de toda liberdade concedida à autodeterminação, nem mesmo no interior do

ambiente artificial o seu arbítrio poderá revogar algum dia as condições básicas da existência humana.

Sim, a inconstância do fado humano assegura a constância da condição humana. O acaso, a sorte

e a estupidez, os grandes niveladores nos assuntos dos homens, atuam como uma espécie de entropia e

permitem que todos os projetos desemboquem por fim na norma eterna. (...) Assim, mesmo (...) em

seu próprio artefato, no mundo social, o controle do homem é pequeno, e sua natureza permanente

acaba por se impor.”70.

Em obra célebre sobre o assunto, Peter L. Bernstein anota que “A ideia revolucionária que

define a fronteira entre os tempos modernos e o passado é o domínio do risco: a noção de que o futuro

é mais do que um capricho dos deuses e de que homens e mulheres não são passíveis ante a natureza.

Até os seres humanos descobrirem como transpor essa fronteira, o futuro era um espelho do passado

ou o domínio obscuro de oráculos e adivinhos que detinham o monopólio sobre o conhecimento dos

eventos previstos. (...) Ao (...) compreender o risco, medi-lo e avaliar suas consequências, (...)

converteram o ato de correr riscos em um dos principais catalisadores que impelem a sociedade

ocidental moderna.”71. Em outra passagem, arremata: “A incerteza inevitável do futuro sempre nos

impedirá de banir totalmente o destino de nossas esperanças e temores; porém, após 1654, a feitiçaria

deixaria de ser o método de previsão favorito.”72. O Renascimento e a Reforma protestante prepararam

69 É certo, como anota Balera, que “Antes que cuidar da proteção, os sistemas jurídicos deveriam tratar de programar idôneas medidas de prevenção” (Sistema...), mas é preciso reconhecer que, apesar da relação íntima aí existente, a prevenção/precaução, em tal acepção, é uma matéria afeta mais ao outros campos do conhecimento, como o do direito do trabalho, especialmente. 70 JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Tradução de Marijane Lisboa e Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006, p. 33. Grifos nossos. 71 Desafio aos Deuses: a fascinante história do risco. 21ª Ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 1997, p. 1. 72 Idem, p. 71.

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o terreno para a compreensão de que os seres humanos não são totalmente impotentes diante do

destino. “Os conceitos de frugalidade e abstinência que caracterizam a ética protestante evidenciaram

a importância crescente do futuro em relação ao presente.”73. “Até a época do Renascimento, as

pessoas percebiam o futuro como pouco mais do que uma questão de sorte ou o resultado de variações

aleatórias e a maioria das decisões era motivada pelo instinto. Quando as condições de vida estão tão

estreitamente ligadas à natureza, pouco resta para o controle humano. Enquanto as exigências da

sobrevivência limitam as pessoas às funções básicas de procriar, cultivar o solo, caçar, pescar e

procurar abrigo, elas são simplesmente incapazes de conceber circunstâncias em que possam

influenciar o resultado de suas decisões. Tostão poupado é tostão ganho, mas só quando o futuro é

algo mais do que um buraco negro.”74. A natureza do risco é moldada pelo horizonte de tempo, já que

o futuro é o campo de jogo.

Conforme assinala (por todos) Ulrich Beck, a sociedade moderna é uma sociedade de riscos75:

alguns mensuráveis e previsíveis estatisticamente, outros não76. O conceito de risco e de sociedade de

risco combina o que outrora era mutuamente excludente: sociedade e natureza, ciências sociais e

ciências da matéria. Os perigos pré-industriais eram “golpes do destino”, que eram descarregados

sobre a humanidade desde “fora”, e que eram, ademais, atribuídos a “outrem”. Hodiernamente,

contudo, tal situação restou modificada, já que boa parte doa riscos provém da atividade humana,

direta ou indiretamente (é dizer, ainda que conjugada com forças da natureza). A sociedade do risco

global avança fazendo equilíbrios mais além dos limites até onde é possível se assegurar. Os riscos

aceitáveis são os que foram aceitos. Quanta segurança é segurança suficiente? As ciências de

engenharia podem determinar unicamente a segurança provável. Portanto, mesmo que amanhã

explodam dois ou três reatores nucleares, seus enunciados seguirão válidos77. O autor considera que o

essencial é distinguir entre os riscos que dependem de decisões, e que em princípio podem ser

controlados, e os perigos que escaparam dos ou neutralizaram os requisitos de controle da sociedade

73 Idem, p. 20. 74 Idem, p. 18. 75 “É certo que”, anota Beck, “os riscos não são uma invenção moderna. Quem – como Colombo – saiu em busca de novas terras e continentes por descobrir assumiu riscos. Estes eram, porém, riscos pessoais, e não situações de ameaça global (...).” (Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. 1ª Ed. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 25). 76 Risk Society – Towards a New Modernity. Translated by Mark Ritter. UK: SAGE, 2013. Na tradução ao português, é intitulada “Sociedade de Risco - Rumo a uma outra modernidade”. 77 Mesmo uma probabilidade de acidentes reduzida é alta demais quando um acidente significa extermínio, anota Beck, tornando, assim, evidentes nas discussões de risco as fissuras e trincheiras entre racionalidade científica e social ao lidar com os potenciais de ameaça civilizacional. “É certo que racionalidade científica e racionalidade social se distanciam uma da outra, mas ao mesmo tempo seguem interpoladas e referidas de múltiplas maneiras uma na outra. Rigorosamente falando, a própria diferenciação torna-se cada vez menos possível. (...) Racionalidade científica sem racionalidade social fica vazia, racionalidade social sem racionalidade científica, cega.” (Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. 1ª Ed. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 35-36).

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industrial. Assim, por surgirem os riscos industriais78 dentro do processo de tomada de decisões, se

coloca de forma irrevogável o problema da exigência de responsabilidades sociais79. A análise do risco

requer, portanto, um enfoque multidisciplinar. O debate sobre a gestão do risco convergirá de três

pressupostos obrigatórios: plena informação (ou o máximo possível)80, tentativas independentes

(independent sources)81 e a relevância da avaliação quantitativa (análise por amostragem)82. Como há

análises conflitantes sobre o risco, as decisões concretas sobre os riscos aceitáveis se convertem em

lutas de poder83. Com efeito, “Constatações de risco baseiam-se em possibilidades matemáticas e

78 Anota Balera que “os riscos ecológicos, químicos, nucleares e genéticos, produzidos industrialmente, externalizados economicamente, individualizados juridicamente, legitimados cientificamente e minimizados politicamente, contaminam toda a sociedade.” (Noções..., p. 165). Quanto ao risco tecnológico, cabe aqui a advertência de Hans Jonas: “O grande empreendimento da tecnologia moderna, que não é nem paciente nem lento, comprime (...) os muitos passos minúsculos do desenvolvimento natural em poucos passos colossais, e com isso despreza a vantagem daquela marcha lenta da natureza, cujo tatear é uma segurança para a vida. À amplitude causal se acrescenta, portanto, a velocidade causal das intervenções tecnológicas na organização da vida. O fato de ‘tomar o seu desenvolvimento em suas próprias mãos1, isto é, de substituir o acaso cego, que opera lentamente, por um planejamento consciente e de rápida eficácia, fiando-se na razão, longe de oferecer ao homem uma perspectiva mais segura de uma evolução bem-sucedida, produz uma incerteza e um perigo totalmente novos. (...) Assim, a constatação de que a aceleração do desenvolvimento alimentado tecnologicamente nos reduz o tempo para autocorreções conduz a outra constatação: no tempo de que ainda dispomos, as correções tornam-se cada vez mais difíceis, e a liberdade para realizá-las é cada vez menor.” (op. cit., p. 77-79). Zygmunt Bauman, por sua vez, alerta que “a tecnologia tornou-se um sistema fechado: ela postula o resto do mundo como ‘ambiente’ – como uma fonte de alimento, de matéria-prima para tratamento tecnológico, ou como entulho para os resíduos (que se esperam recicláveis) daquele tratamento; e define suas próprias desventuras e ações falhas como efeitos de sua própria insuficiência, e os ‘problemas’ resultantes como exigências para dar mais de si mesma: quanto mais ‘problemas’ gera a tecnologia, tanto mais de tecnologia se precisa. Só a tecnologia pode ‘melhorar’ a tecnologia (...). Não é tanto a questão de problemas que exigem mais tecnologia, mas a questão da própria presença de capacidades tecnológicas que só podem ‘problematizar’ aspectos do mundo que de outra forma não se veriam como problemas (ou seja, como estados de coisas ‘erradas’ exigindo forçosamente ser alterados ‘para melhor’).” (Ética pós-moderna. Tradução de João Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1997, p. 213-214). No mesmo sentido, anota Hugh Lacey (op. cit.) que “quando o princípio de precaução é tomado como "irrealista", freqüentemente supõe-se que a trajetória do capital e do mercado é virtualmente irresistível, que não há outra via possível e que a tecnociência pode oferecer, e com freqüência oferece, soluções para os problemas urgentes da humanidade.”. 79 Como bem adverte Hans Jonas: “não se pode evitar que o meu agir afete o destino de outros; logo, arriscar aquilo que é meu significa sempre arriscar também algo que pertence a outro e sobre o qual, a rigor, não tenho nenhum direito.” (op. cit., p. 84). 80 Sem dados, o risco é uma questão de pura coragem. 81 Como ensina Bernstein: “Pessoas diferentes dispõem de informações diferentes; cada um de nós tende a matizar a informação de que dispõe à sua própria maneira. Mesmo o mais racional dentre nós muitas vezes discordará sobre o significado dos fatos.” (op. cit., p. 110). 82 Segundo consigna Bernstein, “Os seguros são um negócio que depende totalmente do processo de amostragem, do cálculo de médias, da autonomia das observações e da noção de normal [regressão à média, traço característico de situações repetitivas] (...).” (Idem, p. 88). 83 No ponto, anota Hans Jonas que “o caráter ‘meramente possível’ das projeções, que é inseparável da debilidade teórica dos procedimentos disponíveis de extrapolação, torna-se facilmente mortal, pois evidentemente significa que outra coisa também é possível – e quem não poderia dizer ‘igualmente possível’? Nessas circunstâncias, o interesse, a inclinação ou a opinião podem escolher o prognóstico mais propício – entre todos os possíveis – para o projeto de sua preferência, ou dispensá-los todos, com a decisão agnóstica de que não sabemos o suficiente para que renunciemos ao conhecido em favor do desconhecido.” (op. cit., p. 75). Cabe consignar também a seguinte constatação de Mary Douglas: “You will find that the dominant psychological theory of risk perception gives little clue about how to analyse political aspects of risk. Indeed, reading the texts on risk it is often hard to believe that any political issues are involved. But while the risk experts keep their hands clean, the public does not refrain from politicizing the subject.” (Risk and Blame: essays in cultural theory. Londres: Routledge, 1992, p. 38-39). Bauman, por sua vez, alerta para o fato de que “diversamente dos velhos perigos que a modernidade começou a eliminar ou tornar menos perigosos, os novos perigos produzidos pela modernização são invisíveis a olhos nus e não imediatamente reconhecíveis como tais; acima de tudo, não se podem descobrir, nem se fale de lutar contra eles, por parte de pessoas leigas.” (op. cit., p. 228). Cria-se, assim, uma “dependência social de instituições e agentes que bem podem ser – e provavelmente são cada vez mais – estranhos,

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interesses sociais, mesmo e justamente quando se revestem de certeza técnica. Ao ocuparem-se com

riscos civilizacionais, as ciências sempre acabam por abandonar sua base de lógica experimental,

contraindo um casamento polígamo com a economia, a política e a ética.”84. Como salienta John

Adams, “Raramente as decisões sobre o risco são tomadas com informações que podem ser reduzidas

a probabilidades quantificáveis, porém, de alguma forma, as decisões são tomadas.”85.

A aceitação de um risco como tal pressupõe que ele tenha sido “bem-sucedido” num processo de

“reconhecimento social”. Isto porque os riscos são inicialmente bens de rejeição, cuja inexistência é

pressuposta, como princípio, já que não se deve parar, inadvertidamente, o progresso. E os riscos

denegados costumam prosperar particularmente bem e rápido, sem falar que a carência ou necessidade

de recursos costuma servir para ofuscar prolongadamente a percepção do risco. Destarte, “aqueles que

apontam os riscos são difamados como ‘estraga-prazeres’ e produtores de riscos. Os efeitos para o ser

humano e o meio ambiente, por eles apontados, são tomados por ‘exagero desmedido’. Mais pesquisa

seria necessária antes que se soubesse do que se trata e quais medidas poderiam ser tomadas. Somente

um produto interno bruto em rápido crescimento garantiria os pressupostos para uma melhor proteção

do meio ambiente. A confiança na ciência e na pesquisa é professada. Sua racionalidade teria sido

capaz até hoje de encontrar soluções para todos os problemas. A crítica à ciência e as inquietações em

relação ao futuro, em contraposição, são estigmatizadas como ‘irracionalismo’. Elas seriam as

verdadeiras causas de todo o mal. O risco seria simplesmente uma decorrência do progresso (...). Por

trás da pluralidade de interesses, (...) ninguém mais sabe se (...) o discurso em torno do risco não é

obscuros e inacessíveis à maior parte das pessoas atingidas pelos riscos em questão.” (Scott Lash e Brian Wynne, no prefácio à edição inglesa da obra de Beck, “Risk Society”). Em arremate, Beck: “Quem quer que se veja exposto no pelourinho da produção de riscos, acabará refutando, na medida do possível, com uma ‘contra-ciência’ paulatinamente institucionalizada em termos empresariais, os argumentos que o prendem ao pelourinho, trazendo outras causas e portanto outros réus à tona.” (Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. 1ª Ed. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 38). Como as decisões não podem esperar (ou simplesmente não esperam), as lacunas de informações são preenchidas por inferências e crenças, estas muitas vezes produzidas e inculcadas no imaginário popular. A imprecisão da ciência, aliada ao que ora denomino “marketing [pseudo-]científico”, produz esse “jogo de empurra”, bastando perceber, por exemplo, que, só nos últimos tempos, alguns alimentos - como por exemplo o ovo de galinha ou mesmo a carne de porco -, já passaram de vilões a heróis alimentares num “piscar de olhos” ou a partir de um “novo” “estudo” “científico” (merecem mesmo estar todos os três vocábulos entre aspas). Quem é mais jovem talvez não se lembre de que, há cerca de duas décadas, o ovo chegou a ser considerado como um dos principais causadores da alta do colesterol, sendo que recomendava-se o consumo de não mais do que dois por semana. Posteriormente, os estudiosos concluíram que não era bem assim e hoje recomenda-se o consumo intenso do referido alimento. Quem, afinal, está com a razão? Imagine-se o interesse econômico existente por trás da segunda teoria, que prevalece atualmente? John Adams chega a afirmar, baseando-se na lição de Douglas e Wildasvy (em Risk and Culture), que o risco é “culturalmente construído”, “fenômeno este que pode ser observado em todas as situações nas quais debates sobre saúde e segurança permaneçam irresolvidos, ou irresolvíveis, pela ciência” e “que geraram uma substancial literatura ‘científica’ sem formar um consenso sobre o que se deveria fazer” (op. cit., p. 76). Em síntese, “a concepção pós-moderna de risco, na medida mesma em que revela a precariedade dos seus contornos, exigirá muito mais de decisão política do que de ferramental técnico.” (BALERA, Wagner. Noções..., p. 166). 84 Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. 1ª Ed. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 35. 85 Risco. Tradução de Lenita Rimoli Esteves. São Paulo: Editora Senac, 2009, p. 58.

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expressão de uma dramaturgia política deslocada, que pretende na verdade algo inteiramente

distinto.”86.

Os riscos não se referem aos danos produzidos, representam uma ameaça de destruição. O

conceito de risco, portanto, caracteriza um peculiar estado intermediário entre a segurança e a

destruição, no qual a percepção dos riscos que nos ameaçam determina o pensamento e a ação. As

proposições sobre riscos não são apenas fáticas ou valorativas, são ambas as coisas de uma vez ou algo

intermédio (in the in-between). Os riscos são ao mesmo tempo “reais” e constituídos pela percepção e

construção sociais87. A percepção sempre e necessariamente é contextual e está constituída

localmente.

Hans Jonas defende que “Enquanto o perigo for desconhecido não se saberá o que há para se

proteger e por que devemos fazê-lo: por isso, contrariando toda lógica e método, o saber se origina

daquilo contra o que devemos nos proteger (...): o reconhecimento do malum é infinitamente mais fácil

do que o do bonum; é mais imediato, mais urgente, bem menos exposto a diferenças de opinião; (...) o

mal nos impõe a sua simples presença, enquanto o bem pode ficar discretamente ali e continuar

desconhecido, destituído de reflexão (esta pode exigir uma razão especial). Não duvidamos do mal

quando com ele nos deparamos; mas só temos certeza do bem, no mais das vezes, quando deles nos

desviamos.”88.

Beck, contudo, adverte - naquela que é uma de suas afirmações mais célebres - que dispor de

mais e de melhor conhecimento frequentemente gera mais incerteza, o que não deixa de ser um

paradoxo, pois, como afirma Adams, “a direção da mudança pretendida pelos mensuradores (...) de

risco é quase invariavelmente para baixo”89, ou seja, o objetivo, ao conhecer, é demonstrar que a ideia

quase “apocalíptica” que se tinha antes não se verifica. O matemático A. F.M. Smith, citado por

Bernstein, sintetiza: “Qualquer abordagem da inferência científica que tente legitimar uma resposta à

incerteza complexa é, a meu ver, uma paródia totalitária de um processo de aprendizado pseudo-

racional.”90.

Cumpre ressalvar que, embora cogitemos aqui, também, do risco num sentido mais genérico, nos

interessa mais de perto o papel que o conceito cumpre dentro de uma relação securitária, conforme

deixamos transparecer ao delimitarmos, na abertura, o tema do presente ensaio.

86 BECK, Ulrich. Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. 1ª Ed. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 55-56. 87 Como bem salienta Rachel Carson, há riscos oriundos de determinados produtos ou práticas que, de tão universalizados, assumem “o aspecto inofensivo daquilo que é familiar” (Primavera Silenciosa, tradução de Claudia Sant’Anna Martins, 1ª Ed., São Paulo: Gaia, 2010, p. 28). Hans Jonas considera que é a previsão do perigo que pode servir como bússola, no que denomina “heurística do medo”. “Só sabemos o que está em jogo quando sabemos que está em jogo.” (Op. cit., p. 21). 88 Op. cit., p. 70-71. 89 Op. cit., p. 65. 90 Op. cit., p. 131.

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Pois bem, no âmbito securitário, risco, em sentido estrito, é o evento futuro e incerto91,

hipoteticamente descrito, apto a despertar a indenização prevista, caso venha a se concretizar no

mundo dos fatos92. Conforme elucida Beck, “Riscos não se esgotam, contudo, em efeitos e danos já

ocorridos. Neles exprime-se sobretudo um componente futuro. Riscos têm (...) fundamentalmente que

ver com antecipação, com destruições que ainda não ocorreram mas que são iminentes, e que,

justamente nesse sentido, já são reais hoje. (...) Em oposição à evidência tangível das riquezas,

[contudo,] os riscos acabam implicando algo irreal. Num sentido decisivo, eles são simultaneamente

reais e irreais. (...) a verdadeira força social do argumento do risco reside nas ameaças projetadas no

futuro. (...) riscos que (...) representam destruições de tal proporção que qualquer ação em resposta a

eles se torna impossível (...), possuem e desenvolvem relevância ativa. O núcleo da consciência do

risco não está no presente, e sim no futuro. Na sociedade de risco, o passado deixa de ter força

determinante em relação ao presente. Em seu lugar, entra o futuro, algo todavia inexistente, construído

e fictício como ‘causa’ da vivência e da atuação presente. Tornamo-nos ativos hoje para evitar e

mitigar problemas ou crises do amanhã (...). Na discussão com o futuro, temos (...) de lidar com uma

‘variável projetada’, (...) cuja relevância e significado crescem em proporção direta à sua

incalculabilidade e ao seu teor de ameaça (...).”93. Adams, por sua vez, sublinha que “O ‘risco’ é

definido, pela maioria dos que buscam mensurá-lo, como o produto da probabilidade e da utilidade de

algum evento futuro. O futuro é incerto e inescapavelmente subjetivo: ele não existe a não ser nas

mentes das pessoas que tentam prevê-lo. Nossas previsões, que orientam também o nosso

comportamento, são formadas por uma projeção da experiência passada no futuro. Se prevemos o

dano, tomamos medidas preventivas. Portanto, os índices de acidentes não podem servir, nem mesmo

retrospectivamente, como medidas de risco, pois se eles são baixos, não necessariamente indica que o

risco foi baixo, ou seja, pode apenas significar que um alto risco foi percebido e evitado.”94. Ou, digo

eu, simplesmente não ocorreu. É certo que em eventos constantes, repetitivos, caso se disponha dos

dados (possam ser e tenham sido recolhidos), essa “margem de erro” fica diluída dentro de um cálculo

91 Há quem acresça também no conceito a exigência de que “independa da vontade das partes”. Rocha anota que “A finalidade protetiva do sistema permeia o seguro social alterando as características básicas do seguro comum. Os seguros tradicionais, assentados sobre a noção de risco, reclamam que esse deve ser futuro e incerto.” (op. cit., p. 149). Adriana Freisleben de Zanetti anota que “Historicamente, o conceito remoto de ‘risco’ apresentava como característica principal a questão da imprevisibilidade. Com o avanço da Ciência, especialmente a matemática e a estatística, o risco passou a ser considerado previsível e mensurável.” (Risco social e Risco Privado: teoria dos riscos e os regimes geral e complementar de Previdência Social, mimeo). 92 É possível encontrar na doutrina conceituações diversas para os termos “risco” e “contingência”. Como já dito, preferimos vislumbrar “risco”, na senda proposta por Balera e Fernandes (op. cit., p. 65), como a previsão normativa hipotética, ou seja, a hipótese de incidência, que não se pode confundir com o fato jurídico concreto (hecho causante), ou seja, o fato gerador. Este é, a nosso ver, a “contingência” ou “sinistro”. É importante salientar, contudo, que boa parte da doutrina trata os termos mencionados como sinônimos, havendo, ademais, quem faça, como Horvath Júnior, diferenciação de outra ordem. 93 Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. 1ª Ed. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 39-40. 94 Op. cit., p. 66.

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atuarial correto, que tem, assim, condições de ser preciso, o que já não ocorre em eventos raros ou

complexos. Ademais disto, embora possa haver previsibilidade quanto à ocorrência do fenômeno, isto

não basta, sendo preciso conhecer também a potencialidade das consequências, o que pode ser ainda

mais dificultoso, em especial em eventos cataclísmicos, segmentados (acumulativos, compostos) ou

suscetíveis a concausas variadas e, estas, imprevisíveis.

Significa, segundo Beck, dizer que, no exame do risco, já não se deve mais colocar tanta ênfase

na questão de evitá-lo, mas sim na de distribuir o ônus de sua materialização. É justamente, como já

viemos de salientar, esta última a função primordial da teoria do seguro – inclusive e especialmente o

social obrigatório -, já que ela, em geral, não se ocupa diretamente da prevenção do risco (embora o

cálculo do valor do prêmio possa desempenhar um papel, indireto, de fomento à prudência e

vigilância, o que se revela, por exemplo, no seguro por acidente de trabalho), mas sim de sua

cobertura, ou seja, da construção prévia do arcabouço (financeiro inclusive, mas não só) destinado a

minorar os efeitos e, especialmente, compartilhar os resultados danosos de modo a não onerar

demasiadamente o(s) atingido(s).

Desde um ponto de vista civilista, o contrato de seguro é aquele “por via do qual uma das partes

(segurador) se obriga para com a outra (segurado), mediante o recebimento de um prêmio, a garantir

interesse legítimo desta, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos futuros predeterminados”95. Está

regulado em nosso Código Civil atual entre os arts. 757 a 777. A doutrina civilista relata que “É um

negócio jurídico que nos tempos modernos ganhou maior desenvolvimento, desbordando inteiramente

da sua disciplina tradicional. Não conhecido dos romanos, foi de elaboração mais recente. Teve como

ponto de partida o seguro marítimo, ainda no período medieval (...). Foi no século XX que se

desembaraçou de todo, e praticou-se francamente, devido um pouco ao espírito de solidariedade de

nosso tempo, e em pouco à conveniência de afrontar e repartir os riscos da existência.”96. Há de ser

dito ainda que “Não obstante a variedade de espécies, predomina em nosso direito positivo o conceito

unitário do seguro, segundo o qual há um só contrato, que se multiplica em vários ramos ou

subespécies, construídos sempre em torno da ideia de dano (patrimonial ou moral), cujo ressarcimento

ou compensação o segurado vai buscar, mediante o pagamento de módicas prestações (Vivante,

Gobbi, Viterbo, Ascarelli).”97. Sobre os caracteres jurídicos do contrato de seguro, descrevem os

civilistas que pode ser classificado como bilateral (gera obrigações recíprocas), oneroso, consensual

(não se exige forma escrita), por adesão (se forma pela aceitação do segurado às cláusulas impostas

pelo segurador) e aleatório. Esta última característica pode ser considerada marcante e é a que nos

95 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, Vol. III, Contratos. 12ª Ed. Atualizado por Regis Fichtner. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 451. 96 Idem, ibidem. 97 Idem, p. 453.

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interessa. Pois bem, o seguro é dito contrato aleatório “porque o segurador assume os riscos, sem co-

respectividade entre as prestações recíprocas, e sem equivalência mesmo que se conheça o valor global

das obrigações do segurado. É por isso que se costuma acentuar que o risco é um elemento essencial [e

central] no contrato de seguro, como acontecimento incerto, independente da vontade das partes. Pode

ser infeliz ou sinistro (morte, incêndio, naufrágio etc.) ou feliz (sobrevivência). Não obstante ser tão

importante, que falta objeto ao seguro se a coisa não estiver exposta a risco (Colin et Capitant, Serpa

Lopes), é um fator relativo no sentido de que a sua intensidade pode oscilar ao sabor de circunstâncias

várias (...). O objeto do contrato de seguro é o risco, que pode incidir em todo bem jurídico.”98.

Em suma, o risco é o elemento central na relação de seguro e a álea, o fator aleatório (ou seja, a

imprevisibilidade quanto à ocorrência do sinistro), é a nota característica do próprio conceito de risco.

Isto significa, em outras palavras, que para o conceito clássico (e ainda marcadamente atual) de risco a

aleatoriedade – ou seja, a imprevisibilidade – lhe é da essência mesma99.

2.1. Risco Social

Como já adiantamos, o risco social que nos interessa mais de perto é aquele que está na esfera de

cogitação da previdência social. Assim, ele consiste, em síntese, no risco do “não-trabalho”100, que é

um risco de caráter pessoal (e não material, portanto). Com efeito, Feijó Coimbra, citado por Balera e

Fernandes, aduz que é "sempre da inexistência ou da insuficiência de renda que se cogita, quando a lei

estabelece o direito à prestação previdenciária, e com ela sempre se pretende substituir uma renda que

98 Idem, p. 453-455. 99 “Você deseja uma válvula que não vaze e faz todo o possível para desenvolvê-la. Mas no mundo real só existem válvulas que vazam. Você tem de determinar o grau de vazamento que pode tolerar.” (Obituário de Arthur Rudolph, The New York Times, 03 de janeiro de 1996, citado por Bernstein, op. cit, p. 02). É atribuída a Albert Einstein a seguinte frase: "Insanidade é fazer sempre as mesmas coisas e esperar resultados diferentes". Contudo, a física quântica, que o sucede no tempo, demonstra que isto pode não ser bem assim. De acordo com diversas interpretações da mecânica quântica, fenômenos microscópicos são objetivamente aleatórios, ao menos em parte. Destarte, a mecânica quântica não especifica o resultado de experimentos individuais, mas apenas as probabilidades. Há, contudo, quem refute a tese de que a natureza contém uma aleatoriedade irredutível - convém ressalvar -, defendendo que em um processo que aparenta ser aleatório, há (ou podem haver) propriedades não observáveis (ocultas) que são as responsáveis por determinar o resultado, ou seja, a impressão de aleatoriedade decorreria do conhecimento fragmentado ou compreensão incompleta do fenômeno. Convém trazer, sucintamente, tal debate para demonstrar que até mesmo numa ciência pretensamente exata, como a mecânica, há sérias dúvidas acerca do comportamento padronizado diante dos mesmos ingredientes - por assim dizer -, enquanto numerosa e crescente corrente doutrinária no âmbito das ciências humanas, especialmente sociojurídicas, busca, de modo quase cartesiano, encontrar precisão em acontecimentos sociais ou socioeconômicos difusos e extrair desde aí uma cartilha de comportamentos padronizados - o que, inclusive, leva a nossa ciência, a jurídica, a se afastar, cada vez mais, do real, tornando-se verdadeira abstração. Um processo aleatório é o processo repetitivo cujo resultado não descreve um padrão determinístico, mas segue uma distribuição de probabilidade. A teoria das probabilidades é o núcleo matemático do conceito de risco. E no risco social, que nos interessa no presente ensaio, a probabilidade, talvez mais do que em qualquer outro setor, é uma construção fundamentalmente reflexiva. 100 Descreve José Maercio Pereira que “O risco social previdenciário é a possibilidade efetiva, concreta, iminente ou não, que pode, ao materializar-se, tornar o segurado incapaz para o trabalho, tolhendo-lhe a capacidade laborativa e, consequentemente, a possibilidade de realizar, por si mesmo, a sua manutenção e a de seus dependentes.” (Previdência Social: aposentadoria por tempo de contribuição e risco social. 2013. 224 f. Tese (Doutorado em Direito das Relações Sociais) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. 2013, p. 89).

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se perdeu e seria necessária para fazer face a um estado de necessidade, decorrente da eclosão de um

risco social"101. Seriam, assim, “riscos sociais”, pois geram, potencialmente, necessidades sociais, em

virtude da ausência ou diminuição, temporária ou definitiva, da renda, para o próprio segurado ou seus

dependentes. Não obstante, é certo que o conceito de “risco social” é mais amplo do que o risco

previdenciário, ou melhor, há entre eles uma relação de gênero e espécie, respectivamente.

Daniel Machado da Rocha e José Paulo Baltazar Júnior anotam que “O termo risco social é

empregado para designar os eventos, isto é, os fatos ou acontecimentos que ocorrem na vida de todos

os homens, com certeza ou probabilidade significativa, provocando um desajuste nas condições

normais de vida, em especial a obtenção dos rendimentos decorrentes do trabalho, gerando

necessidades a serem atendidas, pois nestes momentos críticos normalmente não podem ser atendidas

pelo indivíduo. Na terminologia do seguro, chamam-se tais eventos de ‘riscos’ e por dizerem respeito

ao próprio funcionamento da sociedade, denominam-se ‘riscos sociais’.”102.

Nilson Martins Lopes Júnior, citando Cesarino Júnior, aduz que “Há na vida humana

acontecimentos independentes da vontade do homem, aleatórios, chamados riscos. Estes podem ser

biológicos, isto é relativos à modificações do estado de saúde e da consequente capacidade para o

trabalho, ou da supressão da vida, ou econômico-sociais, isto é, os eventos impedientes da aquisição

pelo hipossuficiente de meios para sua subsistência, decorrentes da atual organização econômica da

sociedade. Os primeiros se referem à doença, à invalidez, à velhice, à morte, aos acidentes de trabalho

e à maternidade; e os últimos são os relativos ao desemprego. A realização dos riscos, denominada

sinistro, produz duas consequências danosas: I – o dano emergente, isto é, o prejuízo resultante da

realização do risco e que pode ser de ordem física, psicofísica ou econômica e II – o lucro cessante,

vale dizer, a perda ou diminuição do salário pela incapacidade ou impossibilidade de trabalhar.”103.

É importante salientar que, do ponto de vista econômico, o papel do seguro não é eliminar os

riscos – estes continuam a existir -, mas apenas distribuí-los com maior eficiência, ou seja, sem

comprometer demasiadamente aquele que vem a ser atingido pela contingência. Trata-se, enfim, de

um sistema de poupança grupal que visa atender às necessidades dos mais desafortunados. O risco é,

101 Ainda Balera e Fernandes consideram que, se somente serão protegidas as necessidades sociais causadas pela verificação de determinados eventos, parece que o bem jurídico tutelado é o próprio risco não a necessidade em si. Não se pode dizer que o bem jurídico tutelado é a necessidade social, já que somente são relevantes juridicamente as necessidades sociais decorrentes de situações previamente estabelecidas. De maneira diversa, no âmbito da seguridade social assistencial, protege-se a própria necessidade social, é dizer, no subsistema assistencial, a própria necessidade é diretamente posta na norma jurídica como o evento apto a desencadear a relação jurídica de proteção. 102 Comentários à Lei de Benefícios da Previdência Social. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 31. Silvio Marques Garcia, por sua vez, anota que “A expressão risco social é passível de críticas, como anota Daniel Machado da Rocha. Dentre elas, o fato de a previdência social cobrir também eventos desejados, a exemplo da maternidade, e o fato de que a palavra acontecimentos venturosos. Entretanto, o termo risco advém do direito dos seguros privados e, qualificado de social, indica as situações em que o cidadão não tem condições de auferir rendimentos do seu trabalho, sujeitas, portanto, à proteção social.” (Aposentadoria por idade do trabalhador rural. Franca: Lemos e Cruz, 2015, p. 86). 103 Op. cit., p. 06.

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assim, tomado em sua dimensão social (coletiva), para que cálculos atuariais permitam estabelecer a

provisão necessária aos eventos previstos. O risco social, ao menos numa concepção moderna, é

aquele assumido pelo Estado, como garantidor. Neste sentido, as considerações de Machado da Rocha:

“Durante a sua vida, o homem está exposto a uma gama muito diversificada de riscos que podem

afetar gravemente a sua situação social. (...) Para que o indivíduo não fique exposto a uma ação

exagerada desses eventos, considerando a insuficiência da previsão individual e do amparo familiar

para o enfrentamento das situações de necessidade social, a proteção social passou a ser organizada de

maneira coletiva e aperfeiçoada com o surgimento de entidades que puderam prestar apoio em

condições mais abrangentes, até que a coordenação estatal se impôs (...). A idéia norteadora (...) é o

resguardo dos trabalhadores e seus dependentes contra os efeitos da materialização dos riscos (...)

buscando-se eliminar ou, pelo menos, reduzir as consequências que deles podem decorrer. Tal

desiderato, é viabilizado pela redistribuição dos riscos sociais horizontalmente (entre grupos

profissionais distintos) e verticalmente (entre gerações) pelo equacionamento da economia coletiva.

(...) Frustrada a atividade preventiva, caberá ao seguro social permitir a superação do estado de

necessidade ou, pelo menos, a mitigação das consequências dos fatos que afetam o equilíbrio

econômico dos segurados.”104.

Como bem assinala Serau Júnior, até dado “momento histórico, os ‘riscos sociais’ podiam ser

considerados como ‘naturais’, correspondentes unicamente às situações que sempre propiciaram

algum grau de insegurança ao homem: a fome, a doença, a idade avançada, a pobreza etc. (...) E, se,

nesse contexto histórico as estruturas sociais de proteção e amparo às necessidades humanas já se

mostravam incipientes, o afloramento de um novo modelo econômico, caracterizado pela exploração

do homem pelo homem, aprofundará ainda mais essa característica.”105. Em outra passagem, anota o

mesmo autor que “Em apertada síntese, verifica-se que as estruturas privadas, pessoais, caritativas

e/ou familiares, de amparo e proteção social demonstraram-se claramente insuficientes e incompletas

quanto à questão social que se pôs a lume, particularmente após o advento do modelo econômico

capitalista. Diante deste quadro, a reação esboçada implicou a aceitação/conquista/reconhecimento do

direito à proteção social como uma das principais tarefas do Estado; reconhecida em legislação,

posteriormente, ganhou contornos constitucionais e, mais recentemente, adquiriu o status de direito

fundamental, sendo reconhecida ademais também no plano internacional.”106.

104 Op. cit., p. 144-147. 105 Op. cit., p. 298. Bernstein aponta que “O comércio também é um negócio arriscado. À medida que o crescimento do comércio transformou os princípios do jogo em geração de riqueza, o resultado inevitável foi o capitalismo, a epítome de correr riscos.” (op. cit., p. 21). 106 Op. cit., p. 300. Balera anota que o capitalismo “acabou sendo o indutor das transformações que o próprio Estado teria que operar em suas estruturas quando os alarmes começaram a soar por toda a parte, pondo em evidência a questão social.” (Noções..., p. 155).

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Nesse mesmo passo, anota Armando de Oliveira Assis que “Quando se pensa ou se fala em

sistema de proteção social, as atenções convergem logo para o problema econômico, por ser difícil

distinguir, se é que distinção há entre o social e o econômico. (...) ter sido tão raramente tentada a

análise especulativa do caráter dessa atividade reside no fato de não aparecer na análise teórica

habitual dos fenômenos econômicos, pela circunstância ou pela presunção de que a estrutura

econômica atual está teoricamente certa, surgindo, assim, a proteção social como corretor das falhas de

sua execução prática. A proteção social seria, portanto, um fenômeno extra-econômico. (...) Não seria

temeridade afirmar que o mundo, sobretudo em suas crises econômicas, não sofre escassez coletiva: o

mal provém da escassez individual.”107.

Mary Douglas anota que “‘Risco’ é a probabilidade de um evento combinado com a magnitude

das perdas e ganhos que isto implicará. No entanto, nosso discurso político degrada a palavra. A partir

de uma tentativa complexa de reduzir a incerteza, tornou-se um floreio decorativo para a palavra

‘perigo’.”108. Bauman considera que “o desvio do vocabulário é ele próprio carregado semioticamente.

Diversamente de ‘perigo’, ‘risco’ pertence ao discurso referente ao jogo de azar, ou seja, a uma

espécie de discurso que não mantém oposição bem clara entre sucesso e falha, segurança e perigo; um

discurso que reconhece sua co-presença em toda situação, e que assim fica montado na barricada que

os separa no discurso referente à ‘ordem’ de que procede e que representa o termo ‘perigo’. ‘Risco’

sinaliza que os movimentos não são seguros ou perigosos sem ambiguidades (...). ‘Risco’ refere-se

também ao que o jogador de azar faz, não ao que é feito por ele (é o jogador que ‘está assumindo

riscos’). (...) portanto, (...) ressoa como a visão pós-moderna do mundo como um jogo, e do estar-no-

mundo como jogo.”109. Destarte, digo eu, a pobreza - que muitos, embasados num discurso

supostamente liberal, se recusam até mesmo a enxergar como um risco social, no sentido de ser

causado e/ou pertencer à sociedade (dizem ser individual, atribuível, ao menos em maior escala, ao

próprio atingido) – se torna, ao invés de uma inerência do sistema capitalista, o simples resultado de

um jogo no qual há vencedores e perdedores, e em que estes o são por sua própria incompetência ou

ineficiência (eufemismos para “imbecilidade” ou “preguiça”)110 e, portanto, devem arcar isoladamente

com o ônus daí resultante. Segundo Bauman, falando sobre o risco genericamente considerado, “da

forma como opera a informação sobre riscos, os perigos coletivamente produzidos são ‘descarregados’

nos mundos privatizados [melhor diria “privados”] das vítimas individuais e traduzidos como

realidades com que se confronta individualmente e se luta com esforços individuais. Os riscos são pré-

107 Op. cit. 108 Op. cit., p. 40, em nossa livre tradução. Do original em inglês: “‘Risk’ is the probability of an event combined with the magnitude of the losses and gains that it will entail. However, our political discourse debases the word. From a complex attempt to reduce uncertainty it has become a decorative flourish on the word ‘danger’.”. 109 Op. cit., p. 228. 110 Em não sendo o caso, a “mão invisível (punguista?) do mercado” – essa entidade mística, quase sobrenatural – tratará de recompor a injustiça em algum momento (qual?), pelo que esta é, assim, meramente circunstancial.

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selecionados e pré-processados, de sorte que a consciência de perigos vem junto com a intimação da

censura ao indivíduo por continuar a exposição ao risco e da responsabilidade individual de evitar o

risco. (...) Sua mensagem oculta contradiz, portanto, à sabedoria teórica da ‘sociedade de risco’ que se

reproduz por maciços processos, em geral além do controle de suas vítimas (...).”111. Já quanto ao risco

social especificamente, anota aquele mesmo autor que “A ‘boa imprensa’, de que atualmente goza a

desigualdade em todas as ilhas de privilégio, o clima de opinião em que é de bom tom considerar com

desagrado ‘utopias igualitárias’, apelar aos pobres e miseráveis a ‘se ajudarem a si mesmos’,

considerar o ‘estado de bem-estar’ como um fracasso e toda redistribuição societariamente

administrada de renda contraprodutiva, proclamar a fome e o desemprego das massas como preço

aceitável da liberdade – são sinais seguros de que outra barreira, a ética, está em processo de se romper

(...). A mentira do século – batizando as partes drenadas do globo como países ‘em desenvolvimento’

– ainda ajuda a atenuar o dissenso e a resistência contra a exploração, brandindo a miragem de

‘alcançar’ os ricos perante os olhos dos pobres, enquanto ainda se pode contar com intervenções

militares seletivas para impedir que o dissenso invejoso se cristalize em oposição viável. (...) A

modernidade não pode sobreviver ao advento da igualdade. Endêmica ou organicamente, a

modernidade é forma parasítica de arranjo social (...). Não são só os privilegiados que pregam a

necessidade de mais modernidade para curar os males da modernidade112: também os desprivilegiados,

em conjunto, concordam com entusiasmo e confiança. Eles exigem o reembaralhar das cartas, e não

outro jogo. Não censuram o jogo, mas só a mão mais forte do adversário. De longe os mais numerosos

movimentos sociais de protesto que a modernidade cria são os que exigem a redistribuição de lucros, e

não a revisão da definição de lucro ou o desmantelamento do mecanismo (...).”113.

O risco social ganha, portanto, uma dimensão cada vez maior e mais complexa dentro do sistema

capitalista e se expande também desde um ponto de vista espacial a partir do fenômeno da

globalização. Nos tempos mais contemporâneos, o advento do neoliberalismo, a intensidade e

recorrência das crises econômicas globais e a severa e progressiva precarização das relações de

trabalho converte o risco social, o do não-trabalho, em algo cada vez mais abstruso e intrincado em

111 Op. cit., p. 231. Sobre a “sabedoria teórica da sociedade de risco”, trago, por outro ângulo (a demonstrar que é também perigoso “jogar a culpa” no sistema, já que implica em irresponsabilidade individual generalizada), as palavras do próprio Beck: “a altamente diferenciada divisão do trabalho implica uma cumplicidade geral e esta, por sua vez, uma irresponsabilidade generalizada. Todos são causa e efeito, e portanto uma não causa. As causas esfarelam-se numa vicissitude generalizada de atores e condições, reações e contrarreações. Isto confere evidência social e popularidade à ideia sistêmica. (...) O outro generalizado – o sistema – atua em e através de cada um: esta é a moral civilizacional do escravo, segundo a qual se atua social e pessoalmente como se estivéssemos sob o jugo de um destino natural, da ‘lei universal da queda livre’ do sistema. É dessa maneira que se joga, diante do iminente desastre ecológico, o ‘jogo do mico preto’.” (Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. 1ª Ed. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 39) 112 Cabe encaixar, no ponto, outra célebre construção de Beck, a da “modernidade reflexiva”. Em suas palavras: “O processo de modernização torna-se ‘reflexivo’, convertendo-se a si mesmo em tema e problema.” (Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. 1ª Ed. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 24). 113 Op. cit., p. 244-246.

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diagnóstico e desalentador em pretensão de cura. Parafraseando Balera, parece-nos que os alarmes

estão novamente soando, mas já se tornaram parte do cotidiano114.

3. Epílogo: Considerações sobre o Regime Previdenciário Brasileiro

Já nos idos de 1950, Armando de Oliveira Assis descrevia que “A generalidade dos sistemas de

Previdência Social em vigor tem por base, sobretudo quando se trata de prestações pecuniárias, a

garantia do nível de vida de que desfrutava a pessoa protegida. (...) Esse esquema, tal como funciona,

se justifica pelo fato de repousar na técnica do seguro, dentro da qual é fundamental que cada

participante seja atendido, por ocasião de um evento danoso, segundo o volume de suas contribuições

pessoais, mormente porque o seguro tem por essência indenizar na proporção do bem destruído ou

perdido. Mas, apesar desses princípios, o seguro social tem por hábito contemplar os salários apenas

até um determinado limite máximo, por (...) ser um sistema social e compulsório. (...) A adoção deste

[máximo indenizável] indica que, embora o argumento-base de manter o nível de vida do segurado,

isto vai somente até certo ponto, acima do qual as necessidades porventura emergentes não recebem

um tratamento ‘social’; quer dizer, são deixadas a cargo da iniciativa individual.”115.

Com efeito, segundo já referenciamos em outro trabalho de nossa autoria116, a previdência social

brasileira (hoje), do ponto de vista finalístico e levando em conta o nosso sistema constitucional, se

destina a atender os trabalhadores (assim considerados aqueles devidamente inseridos por longo tempo

no mercado de trabalho) e a fornecer uma cobertura razoável, que não deve ser inferior ao mínimo

existencial em sentido amplo, mas também deve se limitar a um patamar adequado, que, a nosso ver,

seria próximo ao rendimento médio do cidadão brasileiro117. Por outro lado, a assistência social

destinar-se-ia àqueles que, por uma razão ou outra, não puderam exercer atividade laborativa ou a

exerceram por tempo insuficiente para alcançar os requisitos mínimos para obtenção de algum

benefício, e que se encontram, ademais, em situação de desamparo, de indigência, de vulnerabilidade

econômica e social. É importante frisar que a assistência social tem diversas funções118, mas aqui a

114 Para um exame mais detido da questão da crise da previdência em virtude das metamorfoses do mercado de trabalho, numa perspectiva especialmente interna embora com algum aporte internacional, vide o meu artigo “Previdência e(m) crise”, publicado na Revista Brasileira de Direito Previdenciário, Ano VII, n. 39, Jun-Jul 2017, p. 50-77, o qual, recomendo, seja lido em conjunto com o presente, já que lhe serve, de certo modo, de complemento, visto que acaba por enfrentar a perspectiva atual do risco social. É certo que com os reflexos da Reforma Trabalhista e da eventual Reforma Previdenciária, tal tema precisará ser em breve revisitado. Para uma análise inicial (porém de fôlego) sobre este último paradigma, vide o artigo “Reforma Trabalhista e Financiamento da Previdência Social: simulação dos impactos da pejotização e da formalização”, do CESIT – Unicamp, disponível na internet. 115 Op. cit. 116 Previdência e(m) crise... 117 Sob a égide da LOPS, o teto da previdência evoluiu desde três até vinte salários mínimos, mas tal realidade não parece adequada aos ditames atuais de nossa disciplina. 118 Balera (Sistema...) destaca que há significativa quantidade de iniciativas governamentais na área de assistência social que, em boa medida, não guardam qualquer correlação entre si, revelando ausência completa de unidade sistemática. Com

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enfocamos apenas no que tange ao benefício assistencial de prestação continuada devido ao idoso119,

ou seja, nos interessa, na presente discussão, apenas o seu papel como uma cobertura subsidiária

destinada àqueles que, após atingir idade avançada, não lograram alcançar qualquer tipo de cobertura

previdenciária. Com efeito, segundo a recomendação da OIT n. 67, de 1944, as necessidades não

cobertas pela Previdência (que é de caráter contributivo) devem ser atendidas pela Assistência

Social120 (que é prestada de forma gratuita a quem esteja em situação de miserabilidade). A prestação

destinada pela assistência social deve ser suficiente para estancar a condição de miserabilidade, ou

seja, libertar o homem da indigência; assim, não haveria, ao menos em princípio, a obrigação de que

contemplasse o beneficiário com o mínimo existencial em sentido amplo121. Finalmente, a previdência

privada se destina àquele que pretende adquirir uma cobertura previdenciária superior ao teto

estabelecido pela previdência social122, ou seja, ao trabalhador que visa uma situação mais confortável

na velhice e, claro, possui condição econômica para, facultativamente, arcar com seu financiamento.

Assim, a previdência social oferece uma cobertura máxima limitada e quem pretenda expandi-la

deverá procurar a iniciativa privada, numa relação contratual, ainda que fortemente fiscalizada pelo

Estado123. A previdência privada, em suma, assegurará o padrão financeiro que o participante

desejar124.

efeito, a seara da assistência social, à falta de definição mais adequada e precisa dos projetos de enfrentamento da pobreza, vem atuando de modo totalmente fragmentário. 119 Nem mesmo o benefício devido ao portador de deficiência nos interessa aqui, pois se destina a situação que não guarda relação direta com as coberturas existentes no âmbito da previdência social – com efeito, em vista da legislação atual, não se pode confundir invalidez (incapacidade para o trabalho) com deficiência -, ainda que se sobreponham parcialmente na prática, mas entendemos que a proteção aqui destinada se pauta em valores ligeiramente distintos, o que dificulta uma análise conjunta. 120 OIT, Recomendação n. 67, de 1944: “Las necesidades que no estén cubiertas por el seguro social obligatorio deberían estarlo por la asistencia social; y ciertas categorías de personas, especialmente los niños, inválidos, ancianos y viudas necesitados, deberían tener derecho a asignaciones de una cuantía razonable, de acuerdo con el baremo establecido.” 121 Falo aqui daquele patamar mais amplo defendido por alguns autores, a englobar inclusive o lazer e a cultura. O limite, obviamente, comporta ampla discussão, mas a ideia que defendo, diante da situação econômica específica de nosso país, é a de que a assistência social deve ter por escopo alçar o beneficiário para acima da linha da miséria (e não necessariamente, portanto, acima da linha de pobreza), é uma questão de sobrevivência, com o mínimo de dignidade (alimentação, higiene, vestuário e moradia, além de acesso ao transporte, à saúde e à educação públicas), até mesmo a permitir certa possibilidade de emancipação, o que resultaria, inclusive, em benefício ao sistema. Em outras palavras, se destina, em síntese, a aplacar miséria atual, e não a permitir um incremento da situação econômica a um patamar confortável. 122 Balera e Fernandes (op. cit.) destacam que se o objetivo do regime geral fosse assegurar o padrão financeiro existente à época do período contributivo, não haveria teto máximo. Contudo, percebe-se que objetiva assegurar um padrão financeiro compatível com o histórico contributivo do segurado, limitado a teto máximo, isto é, ao "limite representativo do interesse social", a partir de onde não mais se considera necessário financeiramente à subsistência do beneficiário. O regime geral admite uma variação financeira do montante considerado "indispensável à manutenção" do beneficiário, que gira em torno do teto e do piso financeiro. Acima do teto encontramos aquilo que, segundo o direito positivo pátrio, é dispensável para manutenção do segurado. Arthur Altmeyer, citado por Assis (op. cit.), aduz que “Social security recognizes that all government program should do is to establish a minimum basic protection against loss of income, on wich the individual will be encouraged to build for himself a more attractive degree of well-being through the well-known devices of individual savings, insurance, and home ownership.”. 123 Salienta Balera (op. cit.) que há um móvel justificativo no controle estatal sobre a aplicação das reservas da entidade de previdência complementar: sem ordenamento rígido, o fundo poderia configurar base em ideário diverso daquele que deve animar o destino dessas portentosas somas de recursos. Quando o que se quer controlar é o envolvimento da entidade com as patrocinadoras, a razão é aceitável. As resoluções do Conselho Monetário Nacional trataram de estabelecer limites para

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Destarte, este é o desenho estrutural básico da previdência/assistência, que aqui delineamos a

fim de que se possa vislumbrar qual é o campo de cobertura a que se destina a previdência social em

sentido estrito – é dizer, para que serve -, qual seja, uma camada intermediária entre a previdência

privada e a assistência social.

A previdência social visa, em síntese, atender situação de necessidade econômica gerada pela

eclosão de um risco125 social. Os riscos previstos, parte deles inclusive na própria Constituição, são:

morte, reclusão, idade avançada, invalidez (parcial ou total; temporária ou permanente), maternidade,

exposição prolongada a atividade prejudicial à saúde ou integridade física e desemprego involuntário

(este, contudo, foi levado pelo legislador infraconstitucional para fora da previdência propriamente

dita)126. Não obstante, há também o benefício de aposentadoria por tempo de contribuição, que não

guarda relação com nenhum risco (está fora, portanto, do âmbito do seguro social em sentido estrito),

mas atende a outra ordem de relação, afeta ao regime de capitalização individual.

Diante de tal conceito, podemos perceber que, dentre os riscos previstos pela própria CRFB, o

são, estritamente, apenas a incapacidade (parcial ou total, definitiva ou temporária)127 e, de certo

as aplicações das reservas em valores de emissão das patrocinadoras. A diretriz constitucional da gestão democrática deveria ter sido estendida às entidades de previdência complementar, porém a Lei 10.190/2001 resolveu compor o CNSP, exclusivamente, com representantes governamentais. Balera critica ainda o fato de que a legislação isolou as entidades abertas, rejeitando-as enquanto componentes do sistema, tratando-as como meros apêndices do sistema financeiro nacional. 124 Descreve Balera (Sistema...) que os entes de previdência complementar atuam como círculos de expansão do arcabouço de proteção, formando, como já se costuma dizer em França, segunda rede de seguridade social. Consagra o art. 202 da CRFB o binômio característico da previdência complementar: contratualidade e facultatividade. Deveras, a previdência social é compulsória, instituída ope legis, e protege mesmo aqueles que nela não confiam ou acreditam. Por seu turno, a previdência complementar é de índole contratual, negocial, engendrada e arrumada pelos interessados. A facultatividade envolve o poder de que os interessados são revestidos pelo ordenamento jurídico para fazer ou deixar de fazer alguma coisa. A repercussão da função social na esfera da previdência complementar é algo para ainda ser refletido. O plano privado engendra contrato de adesão facultativa. É dado elementar, determinante, para o regime previdenciário privado o estar “baseado na constituição de reservas que garantam o benefício contratado”. É poupança de longo prazo. Diante da impossibilidade, financeira e política, de o regime básico conferir, a todos os filiados, a manutenção do mesmo padrão de vida que a atividade laborativa proporciona, se compreende e justifica a institucionalização dos planos complementares. A média nacional, no caso do Brasil, se encontra situada em nível de subsistência. Ao criar segunda rede de proteção, o legislador quer afastar limites. São dois bem definidos campos de atuação: o escopo do regime geral é destinar certa renda básica correspondente à média nacional; quanto aos planos privados, seu móvel é a complementação da proteção. 125 Balera e Fernandes (Fundamentos...) destacam que, se somente serão protegidas as necessidades sociais causadas pela verificação de determinados eventos, parece que o bem jurídico tutelado é o próprio risco não a necessidade em si. Não se pode dizer que o bem jurídico tutelado é a necessidade social, já que somente são relevantes juridicamente as necessidades sociais decorrentes de situações previamente estabelecidas. De maneira diversa, no âmbito da seguridade social assistencial, protege-se a própria necessidade social. No subsistema assistencial, a própria necessidade é diretamente posta na norma jurídica como o evento apto a desencadear a relação jurídica de proteção. 126 Anota Machado da Rocha que “(...) se proteção social não pode ser total, deve ser orientada pela priorização do enfrentamento dos riscos sociais considerados mais relevantes.” (op. cit., p. 123). Moacyr Velloso Cardoso de Oliveira, citado por José Maercio Pereira (op. cit., p. 92) traz a seguinte classificação dos riscos previstos na CRFB: de origem patológica, a doença e a invalidez; de origem biológica, a maternidade, a idade avançada e a morte; de origem econômica, o desemprego, os encargos familiares e a reclusão. 127 O texto constitucional atual fala em “doença” e “invalidez”, mas preferimos a condensação que propusemos, até porque a doença por si só não tem significado, mas apenas a incapacidade que venha a eventualmente gerar. A PEC 287/2016, que pretende efetuar ampla reforma na Previdência, propõe modificação no texto constitucional nessa parte, pelo que passaria a constar “incapacidade temporária ou permanente para o trabalho”, o que nos parece mais adequado.

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modo, o desemprego involuntário, a maternidade128, a idade avançada129 e a reclusão130. A morte é um

evento certo, incerto apenas quanto à ocasião. Elastecendo, porém, a compreensão do conceito, é

possível englobar os eventos dantes previstos, assim como a exposição prolongada a atividade

prejudicial à saúde ou integridade física (previsto implicitamente pela CRFB), que gera a cobertura da

aposentadoria especial131. Em outro enfoque, risco, em termos previdenciários, seria o evento que

desborda do âmbito dos benefícios programados, o que deixaria de fora as aposentadorias por idade e

especial. O enfoque, aí, centra-se na cobertura devida (resguardo).

Ao correlacionarmos os riscos descritos (em sentido amplo) com a cobertura prevista,

percebemos que: a incapacidade é coberta pelos benefícios de auxílio-doença (temporária, para a

atividade habitual), auxílio-acidente (parcial e permanente) e aposentadoria por invalidez

(omniprofissional e permanente); o desemprego involuntário é coberto pelo seguro-desemprego132; a

maternidade, pelo salário-maternidade; a idade avançada133, pela aposentadoria por idade; a morte,

pela pensão por morte; a reclusão, pelo auxílio-reclusão134; a exposição prolongada a atividade

128 Em minha visão, não seria a maternidade propriamente, ou ao menos precipuamente, o risco a necessitar de proteção. É certo que a parturiente necessitará de período de recuperação, mas tem-se aí contingência que já estaria coberta pelo risco “incapacidade temporária”. O risco, portanto, seria a idade tenra do recém-nascido, a inspirar os cuidados da mãe (ou do pai, no caso de ausência da mãe). Pode-se arguir que a impossibilidade de trabalhar, para cuidar do bebê, atinge a mãe, mas isto não vem ao caso ao se estabelecer qual é o risco e, ademais, poder-se-ia contrarrestar no sentido de que o bebê ficaria desamparado caso a mãe se visse obrigada a trabalhar. É certo que o desenho atual do benefício comporta o pagamento mesmo no caso de adoção de uma criança já não em idade tão tenra, mas aí já não há propriamente risco, trata-se de outro tipo de cobertura, com outro fundamento (que pode ser igualmente nobre, não se está aqui colocando isto em xeque). 129 A idade avançada pode ser considerada como um evento incerto, já que é preciso que o segurado atinja a idade mínima prevista, o que pode ou não ocorrer, o que é suficiente para gerar a imprevisibilidade. A cobertura “contratada”, portanto é para o eventual advento da idade avançada, que é considerada como uma “incapacidade presumida” ou “virtual”. 130 A imprevisibilidade da incapacidade certamente é mais ampla do que a dos demais riscos aqui descritos, mas é certo que: a maternidade, embora dependa de um ato humano e possa até ser planejada, fica também condicionada às incertezas da natureza; a reclusão, embora dependa, em princípio, de um ato criminoso voluntário, a aposição em regime fechado ou semiaberto também não está imune a uma série de variáveis e, afinal, os beneficiários são os dependentes, enquanto o ato é de terceiro (instituidor), pelo que a imprevisão para aqueles se faz presente; o desemprego involuntário poderá depender, e em geral depende mesmo, de um ato de vontade do empregador, pode até haver certa previsibilidade, decorrente inclusive do próprio comportamento do empregado ou de um aviso com larga antecedência ou até, na prática, de um pedido do empregado ou de uma negociação, mas, ainda assim, é possível falar, como regra, em evento futuro e incerto. 131 O risco está indiretamente previsto hoje pela CRFB como “condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física”. Parcela da jurisprudência procura enquadrar aí situações que não geram risco efetivo e aparentemente por isto mesmo é que a PEC 287/16 pretende alterar a descrição para “atividades (...) exercidas sob condições especiais que efetivamente prejudiquem a saúde”, a não deixar margem para dúvidas (ou não). As atividades perigosas, que constam ainda apenas no âmbito do RPPS – foram excluídas do RGPS desde a redação originária da CRFB, embora o STJ insista em seguir ignorando esse fato -, não geram qualquer risco pela exposição prolongada. O risco a elas subjacente, que é o acidente (de trabalho), já se encontra coberto pelo conceito mais amplo da incapacidade, que, inclusive, é atendido já por outros benefícios (auxílio-doença, aposentadoria por invalidez e auxílio-acidente). 132 Tal benefício, na prática, foi colocado pelo legislador infraconstitucional fora do âmbito do RGPS, não sendo pago/administrado pelo INSS, mas diretamente pela União, e não se encontra regulado pela Lei n. 8.213/91 (neste sentido, dispõe o §1º do art. 9º dessa lei). 133 É possível classificar a idade avançada (ou “velhice”, conforme alguma legislação estrangeira, inclusive a nossa pretérita), como fazem alguns, como incapacidade presumida (senilidade), sendo cabível vislumbrar também, por outro lado, mas aí já vinculando a certo tempo de contribuição, a recompensa pelos anos de atividade produtiva (ancianidade). Há quem veja também na aposentadoria especial a incapacidade presumida. 134 Há de se agregar aí também o fato de ser benefício devido apenas aos dependentes do segurado de baixa renda, ou seja, o risco não é apenas a reclusão pura e simples, mas sim a “qualificada”. No ponto, colho lição de Nilo Batista (op. cit., p. 101): “A intranscendência impede que a pena ultrapasse a pessoa do autor do crime (ou, mais analiticamente, dos autores e

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prejudicial à saúde ou integridade física, como acabamos de ver, pela aposentadoria especial. Destarte,

podemos perceber que há benefícios que não cobrem nenhum risco (mesmo em sentido amplo), como

o salário-família (cujo escopo é mais de índole assistencial, até porque não atende a nenhuma situação

de necessidade social gerada pela redução da capacidade de trabalho) e a aposentadoria por tempo de

contribuição (que é um benefício típico de regime de capitalização, a prestigiar poupança, não

atendendo a qualquer tipo de risco135)136.

Há ainda uma última definição de risco, que o vincula apenas a eventos decorrentes do exercício

do trabalho. Para tal concepção, risco é só aquele que se apresenta no ambiente de trabalho, que existe

em função do labor, pois embora a Previdência cubra também outras situações de vida que impedem o

desempenho de atividade laborativa, o enfoque aí já é a necessidade social – pouco importa o evento

causador -, ou seja, não se está cobrindo risco, mas sim a ausência de renda. Durante muito tempo, a

doutrina majoritária procurou diferenciar o Direito Previdenciário propriamente dito da

Infortunística137. Assim, separava os benefícios em acidentários (decorrentes de acidente de trabalho

ou moléstia profissional) e previdenciários. Como a dissociação perdeu muita relevância prática – é

ainda possível que seja feita, mas tem pouca utilidade -, ela caiu em desuso.

Retornando ao que dantes falamos, sobre benefícios programados, podemos perceber que a

incerteza, ainda que relativa, relaciona-se à ideia de carência, ou seja, exige-se um número mínimo de

contribuições para que o “manto” da proteção contra o risco seja “estendido”, sendo que em alguns

casos, tidos como mais graves pelo legislador, ela – a carência - resta até mesmo dispensada. O que se

deve ter em vista, contudo, é que o conceito de carência é justamente esse, de um prazo mínimo,

relativamente curto, de vinculação, apto a despertar a cobertura. É como o “prêmio” que se paga para

adquirir o “seguro”138, ou tal como ocorre também, em geral, na contratação de um plano de saúde. E é

por isso que se diz que é aí que está o seguro social propriamente dito. Destarte, embora a legislação

partícipes do crime). A responsabilidade penal é sempre pessoal. Não há, no direito penal, responsabilidade coletiva, subsidiária, solidária ou sucessiva. Nada pode, hoje, evocar a infâmia do réu que se transmita a seus sucessores. A intranscendência da pena coloca a questão da família do condenado pobre (art. 5º, inc. XLC CR), e fundamenta a existência, no sistema de seguridade social, de um ‘auxílio-reclusão’.”. 135 Isto se dá especialmente quando prescinde de limite etário, o que ocorre segundo a legislação atual. 136 A Convenção n. 102 da OIT, que estabelece as Normas Mínimas da Seguridade Social, prevê os seguintes benefícios previdenciários: auxílio-doença, prestações de desemprego, aposentadoria por velhice, prestações em caso de acidentes de trabalho e doenças profissionais, prestações de família (o evento coberto é a responsabilidade pela manutenção de crianças, ou seja, pode-se vislumbrar daí a derivação do salário-família), prestações de maternidade (o evento coberto é a gravidez, o parto e suas consequências), aposentadoria por invalidez e pensão por morte. Percebe-se, assim, quais são as extravagâncias presentes no direito nacional. 137 Conforme descreve Eros Piceli (Direito Previdenciário e Infortunística. São Paulo: Marcato, 2007, p. 09), “Entendido o acidente ou a doença do trabalho como um acontecimento negativo, a palavra infortúnio serve de sinônimo e daí Infortunística para representar a parte do Direito Previdenciário que estuda os benefícios acidentários”. Na Medicina Legal, Infortunística é a parte que estuda os acidentes do trabalho, as doenças profissionais e as doenças do trabalho. 138 Conforme consta no sítio eletrônico da SUSEP, prêmio é “o valor que o segurado paga à seguradora pelo seguro para transferir a ela o risco previsto nas condições contratuais”. O valor da eventual indenização é muito maior do que o do prêmio pago, ou seja, o segurado não reúne lastro financeiro suficiente para si próprio, mas há sim a ideia de mutualismo que, no âmbito do seguro social, se converte em solidariedade.

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de regência fale também em carência quanto aos benefícios programados – aposentadorias especial,

por idade e por tempo de contribuição -, o que há ali é coisa diversa, é capitalização, é a construção

individual de um fundo apto a arcar com o custo do benefício durante toda a sua duração (o que, como

vimos, não ocorre no seguro, onde não há uma correspondência entre as obrigações) – pelo menos em

princípio. No caso da aposentadoria por tempo de contribuição139, a carência só tem utilidade

transitória, já que se admite a contagem como tempo de contribuição de algumas situações, remotas,

de tempo de serviço em relação de trabalho sem natureza contributiva (isto não ocorre mais quanto a

labor prestado atualmente), mas não como carência, ou seja, há uma dúplice exigência: 15 anos de

tempo de contribuição em sentido estrito, somados com outros 20 anos de tempo de serviço em sentido

lato. No caso da aposentadoria especial, na leitura que faço, a “carência” legal não tem nenhuma

utilidade, mas, como de costume, a criatividade de nossa jurisprudência é capaz de inventar bizarrices

de todas as ordens, pelo que parece que o legislador quis se precaver, nos mesmos moldes do que fez

quanto à aposentadoria por tempo de contribuição. Na prática, portanto, cuida-se de situação

transitória, que visa agregar um regime precedente à CRFB/88, que não tinha a mesma natureza

contributiva do atual. No caso da aposentadoria por idade, como a CRFB a prevê de forma “pura”, ou

seja, independente de tempo de contribuição, este não poderia constar como requisito. Contudo, na

prática, o legislador agregou um tempo de contribuição mínimo de 15 anos, que chamou de “carência”

apenas para fugir da suposta vedação implícita. Trata-se de período de contribuição demasiado longo,

o que já desborda do conceito de carência e que demonstra que não é propriamente o risco de idade

avançada que se cobre, mas sim a reunião de fatores: 15 anos de contribuição e idade mínima.

Destaca-se o fato, inclusive, de que a quantidade de contribuições influencia no próprio cálculo do

valor do benefício, mesmo as utilizadas a título de “carência”, o que não ocorre quanto aos benefícios

não-programados, nos quais a carência serve apenas para ativar a cobertura140. Com efeito, nos

benefícios não-programados, o cumprimento da carência pressupõe recolhimentos sucessivos, sem que

entre eles haja perda da qualidade de segurado, sendo que, mesmo após ter sido cumprida a carência,

ela será descartada se houver perda da qualidade de segurado, devendo ser “resgatada” (o que a

legislação atual – art. 27-A da Lei n. 8.213/91 – permite seja feito com o recolhimento de metade das

contribuições inicialmente exigidas). No caso dos benefícios programados, como a perda da qualidade

de segurado é irrelevante, a dita “carência” pode ser cumprida com contribuições esparsas e, uma vez

139 A bem da verdade, a aposentadoria especial é uma espécie de aposentadoria por tempo de contribuição. 140 A PEC 287/16 pretende acabar com as aposentadorias por idade e por tempo de contribuição e criar uma única, a congregar ambos os requisitos: idade mínima de 65 anos e tempo de contribuição mínimo de 25 anos, sendo que a renda mensal inicial será de 51% mais 1% a cada ano de contribuição, até o máximo de 100%, do salário-de-benefício. Pergunto: qual é a diferença essencial entre esse benefício e a aposentadoria por idade atual, na qual se exigem idade mínima de 65 anos e 15 anos de “carência” e a renda mensal inicial é de 70% mais 1% a cada ano de contribuição? Ocorre que lá o constituinte chama de “contribuição” e aqui o legislador infraconstitucional, como dito, precisou chamar de “carência”, mas trata-se, por óbvio, da mesma coisa.

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018 155

cumprida, persiste definitivamente, não havendo que se falar, assim, em extinção da carência nem

tampouco em seu resgate. Com efeito, conforme bem elucidam Balera e Fernandes (op. cit.), em nosso

livre resumo:

Assinala Almansa Pastor que a exigência de período de cotização prévia objetiva defender o

sistema, a fim de que os gatos gerais do mesmo tenham mínimo de equilíbrio compensatório com os

recursos previamente ingressados. A OIT, recolhendo os dados da legislação comparada, considera

que a carência é indispensável para que o sistema de seguro social seja dotado de lastro financeiro e

para que se evitem inscrições em momentos nos quais os riscos já se avizinham. Traço marcante do

antigo esquema do seguro, tal como fora engendrado pelos fenícios e aprimorado pelos romanos, a

carência implica estabelecimento de lastro financeiro inicial para a sustentação do plano. O

estabelecimento de certo lapso de tempo necessário à aquisição do direito e das prestações é, em si

mesmo, típico ato de previdência. As verbas que integram o Fundo de Seguridade Social se

transformam em propriedade comum da coletividade protegida. Parcelas desse fundo, deixando de

pertencer à comunidade, integrarão o patrimônio jurídico do sujeito de direito no exato instante em

que o mesmo se veja colhido pela situação de necessidade. A carência, no seguro privado, está

preordenada a permitir a constituição do necessário lastro financeiro para que o direito possa ser

exercido. Para Feijó Coimbra: “mais acertado seria ver-se na exigência de período mínimo de

vinculação, para a concessão de certas prestações, a natural cautela contra tentativas de fraude”. O

estabelecimento de certo lapso de tempo para que o beneficiário possa requerer o benefício reduz

possibilidades de fraude e evita que se manipulem falsas situações141.

Destarte, se extrairmos a ideia de carência da teoria do risco, perceberemos que nos benefícios

programados não há carência em sentido estrito, senão apenas tempo de contribuição.

141 Sobre o ponto, anota Rocha que “(...) muitas prestações demandam um tempo mínimo de vinculação ao regime assecuratório, requisito nominado de carência, como imposição decorrente da densificação do princípio do equilíbrio financeiro e atuarial (...). Contudo, (...) determinadas situações de necessidade social, excepcionais, permitem que o requisito de contrapartida seja afastado (...).” (op. cit., p. 149).

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158 7ª edição – Primeiro Semestre I-2018

A REFORMA DA PREVIDÊNCIA DO SETOR PÚBLICO:

PROBLEMAS E PERSPECTIVAS∗

ALFREDO SANT ’ANNA JÚNIOR Atuário, Matemático, Mestre em Economia PUC-SP, Professor de pós-graduação - PUC-SP e

professor em diversas faculdades privadas

ANTONIO CORDEIRO FILHO Atuário, Mestre em Administração, Doutor e Professor da UNIFESP-EPPEN, PUC-SP,

Funenseg e outras Instituições.

RESUMO: O Brasil passa por necessidades de Reformas. Após todo o período pós Real, muitas verdades, mentiras e informações floresceram no mar de novos tempos. Dentre as inúmeras mudanças, uma delas é o que acontece com o setor público. Este trabalho procura fornecer discussões e esclarecimentos ao que se convencionou chamar de Reforma da Previdência do Setor Público. O assunto é bem jovem ainda, ficando adulto e sob algum ponto de vista, está ficando velho demais. O foco, em suas variâncias, são os problemas relacionados aos poucos resultados obtidos, em razão da quantidade de Regimes Próprios de Previdência Social, conhecidos sob a sigla de RPPS, destinados aos servidores efetivos estatutários dos entes estatais. A avaliação aqui realizada aponta que a totalidade das mudanças efetuadas na legislação pertinente, ao longo dos últimos 20 anos, é bem fundamentada, necessária e importante, mas que ainda carece de vários ajustes. Partindo de uma avaliação do que provavelmente pensam os atores mais importantes relacionados aos RPPS, este artigo faz algumas sugestões quanto ao que ainda precisa ser complementado, para se obter Regimes Próprios de Previdência Social mais sólidos e sustentáveis, sem oferecer riscos aos seus instituidores e participantes. Palavras-chave: RPPS, Previdência do Setor Público, Finanças Públicas ABSTRACT : Brazil is in need of reform. After all the post-real period, many truths, lies and information flourished in the sea of the new times. Among the many changes, one of them is what happens with the public sector. This article seeks to provide discussion and clarification on what has become known as Public Sector Pension Reform. The subject is still very young, getting adult and under some point of view, is getting very old.

∗ Artigo recebido em 8/3/2018 - Aprovado em 15/3/2018

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159 7ª edição – Primeiro Semestre I-2018

The focus, in its variances, is the problems related to the few results obtained, due to the amount of Social Security Own Regimes, known as RPPS, destined to the effective statutory servants of the state entities. The evaluation carried out here indicates that all changes made to relevant legislation in the last 20 years are well-founded, necessary and important, but still require a number of adjustments. Based on an assessment of what key stakeholders on RPPS are likely to think, this article makes some suggestions on what still needs to be complemented to achieve stronger and more sustainable Social Security Own Regimes without presenting risks to their institutes and participants.

Introdução

Muito tem sido analisado, avaliado, investigado e produzido tanto por especialistas

como pela academia sobre o tema ‘Previdência’, nos seus mais variados aspectos, seja em

relação ao Regime Geral de Previdência Social – RGPS (administrado pelo INSS), seja em

relação às várias modalidades de Previdência Privada e/ou Complementar.

Entretanto, há uma modalidade previdenciária sobre a qual ainda não tem havido

suficiente investimento intelectual: a Previdência do Setor Público, mais especificamente a

previdência destinada aos servidores públicos estatutários, da União, do Distrito Federal, dos

estados e dos municípios.

Como se sabe, a Constituição Federal de 1988 faculta1 aos entes federados que

instituam, em relação aos seus servidores estatutários efetivos, um regime previdenciário

próprio, denominado Regime Próprio de Previdência Social - RPPS. É o regime de

previdência assegurado exclusivamente aos servidores públicos titulares de cargo efetivo2,

mantido pelos entes públicos da federação, que são a União, Estados, Municípios e Distrito

Federal. As normas básicas estão contidas no artigo 40 da Constituição Federal e na legislação

inicial pertinente, Lei 9.717/98 e Portarias 4882 de 16/12/98 e 4992 de 05/02/99.

Um indício simples e claro desta insuficiência é que nos cursos de Ciências Atuariais3 –

cujo arcabouço técnico, além de outras áreas tais como Seguros em geral e Saúde

1 Não há uma autorização explicita sobre isto, na Constituição Federal. O art. 40, em seu caput, assegura aos

servidores titulares de cargos efetivos o direito a um regime de previdência e o Art. 149, §1º permite aos estados, Distrito Federal e municípios instituir contribuições para custeio de benefícios previdenciários.

2 Os servidores militares e a polícia militar seguem regimes previdenciários específicos. No Estado de São Paulo, por exemplo, o Regime Próprio da Polícia Militar - RPPM foi instituído em 01/06/2007 pela Lei Complementar nº 1.010.

3 E mesmo em outros cursos superiores, como o de Direito ou de Administração ou Contabilidade.

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160 7ª edição – Primeiro Semestre I-2018

suplementar, também está voltado aos aspectos atuariais e de direito previdenciário –

raramente se tem uma disciplina ou mesmo sequer uma parte específica de uma voltada ao

tema. O que existem são alguns poucos trabalhos acadêmicos, usualmente com críticas

parciais que não avaliam a questão ™™

A grande mídia, vez por outra, destaca que esta é uma questão muito séria, com graves

problemas, mas nem por isto se tem notícias da existência de obras acadêmicas mais

aprofundadas sobre os RPPS. Há, sim, uma razoável produção literária, especialmente de

natureza jurídica, que tem sido veiculada a cada passo legal, dado pelo Governo Federal, em

direção à reforma almejada, mas esta não aborda todas as questões essenciais, especialmente

as de viabilidade econômica e atuarial e, sobretudo, de entendimento do complexo contexto

que pode levar os diferentes atores envolvidos a agir da forma como agem em relação aos

problemas estruturais dos RPPS.

É importante notar que a legislação atual, relativa aos RPPS, com o claro intuito de

coibir a gestão negligente e suas prováveis consequências desastrosas para os entes estatais, já

consolidou um conjunto de medidas importantes, tais como: reafirmação do caráter

contributivo (ou seja, são as contribuições do servidor e do ente federado que,

adequadamente acumuladas, deverão ser suficientes para honrar os benefícios previdenciários

atuais e futuros); exigência de que haja apenas um RPPS por ente estatal4, administrado por

uma unidade gestora única, vinculado ao executivo e com participação paritária entre

representantes do governo, servidores ativos e inativos e assistidos, além de uma série de

exigências gerenciais de fiscalização, controle e transparência.

De acordo com a mesma legislação, compete a União, mais especificamente ao MPS –

Ministério da Previdência Social5, de forma ampla, fornecer as orientações, supervisão e

monitoramento dos RPPS, inclusive dos militares6, principalmente quanto a concessão

4 Certamente para se evitar que eventuais setores “privilegiados” do funcionalismo se organizem de forma

independente (o que) e aufiram vantagens indevidas (além de dificultar a fiscalização). 5 Em outubro de 2015, o Ministério da Previdência Social (MPS) foi fundido com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), resultando no MTPS, que englobava todas as funções anteriores de ambos. Atualmente (a partir de 20/07/2016), no Governo Temer, o MTPS foi extinto, ficando a Previdência Social resumida a uma Secretaria do Ministério da Fazenda. Em nossa opinião, trata-se de um equívoco, dado que uma questão com forte conotação social passará a ter um frio e insensível tratamento financista. 6 Leia-se o artigo 9.º da Lei 9717/98.

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161 7ª edição – Primeiro Semestre I-2018

trimestral do CRP7 que deve ser emitido pela SPPS – Secretaria de Políticas de Previdência

Social, por meio do CADPREV8.

Assim, CRP é o instrumento legal que aponta se um RPPS está em situação regular ou

não. Se um ente estatal não possui um CRP atualizado, fica impedido de realizar uma série de

operações junto ao governo federal e aos bancos públicos, tais como receber transferências

voluntárias da União e obter empréstimos, financiamentos e outras sanções, mas nem sob este

risco ameaçador que pode denotar uma improbidade administrativa, os governos conseguem

tomar iniciativas de regularização.

Entretanto, vários RPPS tecnicamente irregulares têm conseguido obter o CRP por via

judicial, o que tem desfeito, em parte, os sérios objetivos da legislação vigente.

Uma pesquisa realizada no antigo site do Ministério do Trabalho e da Previdência

Social (MTPS), em 10 de março de 2016, até então o principal responsável pela normatização

infralegal, fiscalização e orientação dos RPPS, mostrava que mais de 70% deles, em nível

nacional, apresentavam alguma irregularidade, como apresentado na Tabela 01 mais à frente.

Nos dados estatísticos fornecidos pelo então MTPS é feita uma distinção entre os

regimes próprios instituídos e aqueles que estão em extinção9, mas neste trabalho descartou-se

tal separação porque as obrigações legais dos regimes em extinção são praticamente as

mesmas de qualquer outro. A única diferença é que não há entrada de novos segurados,

porque os novos admitidos no serviço público são automaticamente vinculados ao INSS.

Na construção da Tabela 01, extraída de uma planilha disponibilizada no site do

MTPS10 em 10.03.2016, optou-se por apresentar não apenas os dados agregados do país, mas

também os do Estado de São Paulo, como forma de se estabelecer uma comparação.

7 Certificado de Regularidade Previdenciária que foi instituído por Decreto de n.º 3.788 de 11/04/2001 com base

na Lei de 2004 e na Portaria MPS 402/2008 em norma específica. 8 CADPREV é um aplicativo disponibilizado pelo governo federal, pelo qual os RPPS recebem e transmitem

suas informações periódicas. 9 Isso quer dizer que mesmo que o estado ou município venha a extinguir o seu RPPS, terá de arcar com as

despesas previdenciárias proporcionais ao tempo de Contribuição do Segurado ao Regime extinto. O que também pode comprometer suas contas. A Lei de Responsabilidade Fiscal, como ficou conhecida a Lei complementar 101 de 04 de maio de 2000 (instituída no governo FHC), é boa no sentido de que os gestores tornem os caminhos claros com os recursos públicos, mas seu descumprimento ensejará dissabores e penalidades às autoridades. Vale dizer que Contabilidade em ordem e análises e avaliações atuariais de boa qualidade são integrantes imprescindíveis da boa gestão do RPPS conforme determina a Emenda Constitucional nº 20 - EC-20 de 15.12.1998.

10 Como afirmado anteriormente, o MTPS (Ministério do Trabalho e Previdência Social), em 20/07/2017 foi convertido numa Secretaria de Previdência Social do Ministério da Fazenda – SPS-MF.

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O que é possível constatar, nesta comparação, é que o fenômeno focado - de situação

irregular - atinge os entes federados do país todo, uma vez que os municípios do estado mais

desenvolvido da federação também apresentam uma quantidade, embora menor,

proporcionalmente muito próxima da situação nacional e igualmente alarmante, pois quase

dois terços dos RPPS dos municípios paulistas estavam irregulares na data da pesquisa.

Não é por falta de regulação que existem problemas, pois a Portaria MPS nº 403/2008,

em atendimento ao artigo 9º da Lei 9.717/98 decompõe em detalhes os critérios de Avaliação

e Reavaliação Atuarial a cada balanço, além de exigir auditoria por entidade independente,

necessária a estrutura técnica administrativa, e a instituição de conselhos de administração e

conselho fiscal, bem como a segmentação da conta do fundo, e a obrigatoriedade de seguir as

normas do CMN11. A Lei 9.717 também proíbe a utilização dos recursos para empréstimos de

qualquer natureza, a aplicação em títulos apenas do governo Federal e impõe limite máximo

de taxas de administração (2%).

No quadro abaixo, o percentual de municípios com RPPS foi calculado com base no

total de municípios do país e o percentual de municípios com irregularidades foi calculado

com base no total de municípios que instituíram seus RPPS.

Tabela 01 – RPPS municipais em situação irregular em 2015

Municípios No Brasil

No Estado de São Paulo

Quantidade % Quantidade % Quantidade total de municípios 5.566 100% 645 100% Quantidade total de municípios com RPPS 2.154 38,70% 247 38,29% Quantidade de municípios com RPPS irregulares

1.536 71,31% 164 66,40%

Fonte: http://www.previdencia.gov.br/regimes-proprios/estatisticas-2/ (acesso em

março de 2016).

Concretamente, existem muitos motivos possíveis para que um RPPS seja considerado

irregular, dentre os quais é possível citar:

− Não realização de estudos atuariais12;

− Não cumprimento das orientações do estudo atuarial;

− Legislação local desatualizada ou em desacordo com a legislação federal;

− Não recolhimento das contribuições previdenciárias do ente estatal ao seu RPPS; 11 Conselho Monetário Nacional – CMN. 12 A lei nº 9.717 de 27.11.1998 exige que os estudos atuariais os RPPS sejam feitos anualmente. Entretanto, isto

não tem sido cumprido por todos os municípios, talvez em razão dos custos.

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− Taxas de contribuição dos segurados abaixo do mínimo legal estipulado (11%);

− Concessão de benefícios em desacordo com a legislação federal.

− Aplicação dos recursos em desacordo com as normas do Conselho Monetário

Nacional (CMN) e do MTPS (hoje SPS-MF);

− Não encaminhamento de documentos que devem ser obrigatoriamente enviados aos

MTPS (hoje SPS-NF).

Obviamente, num trabalho acadêmico deste porte, não cabe se abarcar e estudar todo

esse elenco de possibilidades, mesmo porque isto demandaria uma ampla pesquisa com uma

amostra adequada do conjunto de municípios, mas é bastante plausível se pensar que parte

significativa dessas irregularidades tem origem em questões ainda não abordadas de forma

efetiva pela legislação vigente.

Daí a opção por uma pesquisa sobre os principais aspectos da Reforma Previdenciária

do Setor Público, com foco nas mudanças realizadas.

I – Contextualização Político-Econômica e Histórica

1.) A seguridade social no Brasil

A “colcha de retalhos” da previdência brasileira vem de longa data e de longas

irresponsabilidades fiscais. As mais recentes e de peso são as Reformas Constitucionais de

1998, 2003 e de 2005 (IBRAHIM e VIEIRA, 2004).

A Previdência Social no Brasil é um dos três grandes sistemas que compõem a

Seguridade Social, juntamente com a Saúde e Assistência Social. Esta, por sua vez, divide-se

em três grandes regimes, todos de caráter obrigatório:

− O Regime Geral de Previdência Social (RGPS), administrado pelo Instituto Nacional do

Seguro Social (INSS), destinado a todos os trabalhadores do setor privado e aos

servidores públicos civis contratados pelo regime da Consolidação das Leis do Trabalho

(CLT) e mesmo aos funcionários públicos estatutários, caso o ente federado tenha

optado por não possuir ou manter um RPPS.

− Os Regimes Próprios de Previdência para Servidores (RPPS), destinado aos

funcionários públicos civis estatutários, administrados pelos respectivos governos

federal, estaduais e municipais, estes últimos, foco deste texto;

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− O Regime de Previdência para os Militares Federais13, administrado pela

União.Também é facultado aos estados criar regimes específicos para as polícias

militares, em razão das peculiaridades profissionais, usualmente denominados de

Regime Próprio da Polícia Militar - RPPM.

− Finaliza este quadro a previdência complementar fechada ou aberta, que não é

considerada ‘social’ em razão de seu caráter facultativo.

− A Previdência Complementar propriamente dita, destinada aos trabalhadores vinculados

a uma instituição ou empresa pública ou privada, ou ainda a uma categoria profissional,

administrada por fundos de pensão fechados.

− A Previdência Privada Aberta, individualizada e acessível a qualquer cidadão,

administrada por seguradoras, em geral associadas a bancos comerciais e que acabam

sendo simples aplicações financeiras equivocadamente denominadas de ‘previdência’13.

A legislação vigente faculta aos entes estatais que constituíram seus RPPS, em seu

âmbito, a administração de um fundo de previdência complementar para os servidores

estatutários, mas é necessário que haja um projeto de lei,em consonância com a legislação

federal, aprovado pelo legislativo pertinente que são as Câmaras Municipais ou Assembleias

Legislativas ou, ainda, a Câmara Federal (no caso da União). O órgão federal que os autoriza

e fiscaliza é a Superintendência Nacional de Previdência Complementar (conhecida pela sigla

PREVIC).

A previdência complementar para o setor público pode ser vantajosa aos governos, por

representar significativa economia com recursos previdenciários. Entretanto, são poucos os

entes estatais que até agora optaram por ela. Em geral isto tem ocorrido apenas com os entes

de maior porte, como o Governo Federal, que criou não uma, mas três Fundações de

Previdência Complementar do Servidor Público Federal (Funpresp), uma para cada poder: a

do Poder Executivo (FUNPRESP EXE), a do Legislativo (FUNPRESP LEG) e a do Judiciário

(FUNPRESP JUD), além do Governo do Estado de São Paulo, com a Fundação de

Previdência Complementar do Estado de São Paulo(SPPREVCOM).

O fluxo a seguir resume o assunto.

13Vale ressaltar, en passant, que por serem aplicações regulares de longo prazo, nas quais o risco pela aplicação e

rentabilidade dos recursos é assumido pelos próprios correntistas (já que não há qualquer garantia legal de retorno), acabam sendo muito atrativas para os bancos.

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Fluxo 01 – A Seguridade Social no Brasil

Uma última delimitação se faz necessária: Os RPPS da União e dos Estados são

atípicos, em razão do porte e do arcabouço técnico disponível. Portanto, o foco deste trabalho

está nos RPPS destinados aos servidores estatutários dos municípios, mais especificamente

em relação aos problemas, aqui apontados, considerados como ainda não plenamente

solucionados pela reforma promovida pelo Governo Federal desde 1998.

2.) Breve histórico dos RPPS

Não há, entre os vários autores de obras sobre o assunto, um perfeito consenso sobre as

origens dos RPPS, mesmo porque é muito difícil se determinar um marco inicial, dado que o

que sempre existiu foi um processo evolutivo já antigo advindo das reivindicações de grupos

específicos de servidores e/ou das concessões do poder.

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Algumas categorias mais organizadas, no caso de pleitos reivindicatórios, ou mais

poderosas por ocuparem posições estratégicas junto ao poder, acabaram por receber, ao longo

do tempo, benefícios diferenciados dos demais servidores públicos.

É importante destacar que, em alguns momentos históricos, estas reivindicações

previdenciárias dos servidores se confundem com as próprias lutas dos demais trabalhadores,

o que é um complicador na compreensão da dimensão histórica.

Para se compreender melhor as diferenças e semelhanças históricas entre os RPPS e o

RGPS, é preciso observar que enquanto no setor privado as relações empregado e empregador

são regidas por contratos bilaterais e protegidas pela legislação, o servidor público “possui

contrato unilateral com a Administração Pública onde o governo estabelece e altera as regras

do vínculo de trabalho, remove servidor, estabelece unilateralmente seus salários, concede e

retira vantagens financeiras sem a obrigação de mantê-las permanentemente” (ALVARES,

2007, p. 13).

Aliás, é pertinente relembrar a origem da expressão: “o termo servidor vem da relação

entre o servo e o soberano feudal, caracterizada pela dependência, em troca de proteção”

(CAMPOS, 2004, p. 42).

Do ponto de vista jurídico, do direito trabalhista, o vínculo dos servidores públicos se

relaciona ao conceito de pro-labore facto, no qual “o direito à aposentadoria não decorre da

contribuição aportada ao regime, mas sim da vinculação do servidor ao ente público”

(SILVA, 2003, p. 15). O mesmo autor, na mesma página e na seguinte afirma:

Quando da formação do Estado brasileiro, existia uma concepção de Estado altamente

patrimonialista, justificada pela nossa herança de colonização portuguesa. Assim, o servidor

era considerado um bem do Estado: como tal deveria ser protegido pelo mesmo. Em razão

disto, os mecanismos de proteção previdenciária para servidores públicos e militares surgiram

anteriormente aos destinados para trabalhadores brasileiros em geral. Como exemplo, já

em1795, um século antes de Otto Von Bismark instituir o primeiro sistema previdenciário

para os trabalhadores alemães, em 1883, foi instituído, no Brasil, o “Plano de Benefícios dos

Órfãos e Viúvas dos Oficiais da Marinha” (SILVA, 2003, pp. 15 e 16). [grifos nossos].

Em 1815, Dom João VI instituiu a aposentadoria, paga pelos cofres públicos como

despesas correntes, para os professores do Reino Unido do Brasil, Portugal e Algarves que

tivessem completado 30 anos de serviço (SOUZA; 2009).

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A principal característica dos benefícios previdenciários concedidos no passado é que se

destinavam a categorias específicas de servidores e não ao todo, como hoje. Tanto assim, que

“as primeiras categorias de servidores públicos contempladas com a proteção previdenciária

foram as categorias até hoje denominadas carreiras típicas de Estado, tais como: magistratura,

polícia, diplomacia e tributária” (SILVA, 2003, p.16).

Desta forma, a partir de 1890 começam a ser criadas Caixas de Aposentadorias e

Pensões, Montepios e outras instituições (sempre para conjuntos específicos de servidores).

Antecipando, de certa forma, aquilo que viria a se iniciar em 1946 – a unificação da

previdência nacional14– o processo de unificação da previdência dos servidores começou em

1938, com a fusão de diversos montepios de categorias distintas de servidores públicos

federais, tendo sido consolidada em1941, com a criação do Instituto de Previdência e

Assistência dos Servidores do Estado – IPASE.15

A criação de IPASE motivou outros entes estatais a fazerem o mesmo, para seus

servidores. Um possível exemplo disso pode ser o que foi detectado por uma pesquisa

realizada em 1998 pela extinta Fundação Prefeito Faria Lima – Centro de Estudos e Pesquisas

de Administração Municipal (FPFL –Cepam) que apontou que o RPPS municipal mais antigo

do Estado de São Paulo datava de 1954 (FPFL – CEPAM, 2000).

Neste cenário, os proventos de aposentadoria, sem dúvida, o mais oneroso dos

benefícios previdenciários era pago diretamente pelos cofres públicos, havendo, em geral,

uma pequena contribuição para pagamento das pensões (SANT’ANNA, 2000).

Em 1967, com a Reforma Administrativa imposta pelo Governo com o objetivo de

proporcionar maior agilidade e adaptabilidade ao gerenciamento das necessidades de pessoal

no serviço público, a figura do servidor estatutário praticamente foi esquecida, ou congelada,

e os entes estatais passaram a contratar servidores (com ou sem concurso público) pela CLT,

vinculando-os ao então INPS. Com isto, muitos dos antigos institutos ou fundos de pensão

foram se esvaziando ou mesmos se extinguiram (SANT’ANNA, 2000).

14 O Decreto-Lei nº 8.742 de 19/01/1946 criou o Departamento Nacional de Previdência Social, mas a unificação

de fato só ocorreu a partir de 21/11/1966 - vinte anos depois - quando o Governo da época, por meio do Decreto-Lei nº 72 unificou os diversos Institutos de Aposentadorias e Pensões, criando o então Instituto Nacional de Previdência Social (INPS).

15 Sabe-se que o IPASE sob a ótica de gestão dos fundos não seguiu as normas prescritas. Valores de saldos aplicados foram utilizados no atendimento de despesas, estranhas às previdenciárias. O Estado tinha extremada ingerência nos fundos.

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Os RPPS só voltaram a adquirir maior importância a partir da Constituição Federal de

1988, que implicitamente manteve a permissão aos Estados e Municípios de criarem sistemas

próprios de previdência para seus servidores (Artigo 202, segundo parágrafo, posteriormente

transportado, pela Emenda Constitucional nº 20, de 15.12.1998, para o parágrafo nono do

Artigo 201) e os autorizou a instituir contribuições (Artigo 149, parágrafo único) o que

resultou, especialmente pela ausência de lei complementar reguladora, numa significativa

autonomia municipal para definir os valores dessas taxas de contribuição e mesmo incluir

benefícios suplementares aos garantidos pela Constituição (SANT’ANNA, 2000).

Entretanto, a opção pelos RPPS não ocorreu de imediato, mas somente a partir de 1992,

ainda no Governo Collor. Eram tempos difíceis, em razão da forte crise econômica e da

inflação acelerada, e uma forma de os entes estatais, especialmente os municípios, se

financiarem era deixar de recolher as contribuições previdenciárias devidas ao Regime Geral16

(INSS), destinando-as a outro fim, dentro das prioridades municipais.

Com o advento da Emenda Constitucional nº 3 (aprovada em 17.03.1993, mas em vigor

desde 09.11.1991, como Medida Provisória, enquanto tramitava o Projeto de Emenda

Constitucional – PEC 48), o Governo Collor instituiu a possibilidade de retenção17 do Fundo

de Participação dos Municípios– FPM (principal receita da quase totalidade dos municípios

pequenos) e de outras transferências, como garantia de pagamento das dívidas para com a

União, em especial as dívidas previdenciárias.

Isto colocou em pânico a maioria dos prefeitos, que acabaram encontrando, como saída,

a criação ou recriação de seus RPPS, assumindo para si os pagamentos dos futuros benefícios

previdenciários de seus servidores, conseguindo, desta forma:

a) Fugir dos altos custos da Previdência Nacional; b) Gastar menos com a previdência

de seus servidores; c) Agradar seus funcionários, ampliando benefícios e melhorando o

atendimento e d) Ao menos teoricamente, passar de devedor a credor do INSS, em razão da

compensação financeira prevista na Constituição (ARAÚJO & SANT’ANNA, 1999, P. 157).

Entretanto, na ausência de normas, grande parte dos RPPS, criados quase sempre sem a

realização de estudos atuariais, exorbitou na concessão de benefícios e se descuidou

16 O INSS foi criado em 27.06.1990 pelo Decreto nº 99.350, mediante a fusão do Instituto de Administração

Financeira da Previdência e Assistência Social (IAPAS) e o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). 17 O parágrafo 4º da EC 3 afirma: “É permitida a vinculação de receitas próprias geradas pelos impostos a que se

referem os arts. 155 e 156, e dos recursos de que tratam os arts. 157, 158 e 159, I, a e b, e II, para a prestação de garantia ou contra-garantia à União e para pagamento de débitos para com esta."

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bastante da geração de provisões que pudessem fazer frente aos encargos previdenciários

futuros.

Em 1998, preocupado com a situação dos RPPS, o Governo Federal, já na gestão de

Fernando Henrique Cardoso, começou a promover, paulatinamente, um conjunto de

exigências legais aparentemente com dois objetivos:

a) Coibir os abusos que já ameaçavam as finanças dos entes estatais e também:

b) Aproximar os RPPS do Regime Geral de Previdência Social, no que se refere aos

benefícios previdenciários ofertados e seus respectivos critérios de concessão. Para isso foi

necessário modificar, várias vezes, a Constituição Federal, por meio de Emendas

Constitucionais. A este processo convencionou-se chamar de Reforma da Previdência do

Setor Público.

II –A Reforma da Previdência do Setor Público

Como afirmado, nos últimos quase vinte anos (desde a Lei nº 9.717, de 27.11.1998 e a

Emenda Constitucional nº 20, de 15.12.1998), o Governo Federal, com os objetivos já

comentados, realizou inúmeras mudanças no sentido de coibir os privilégios, os abusos e a

desorganização estrutural e financeira que havia tomado conta dos RPPS e, ao mesmo tempo,

fazer convergir os regimes previdenciários quanto à oferta dos mesmos benefícios, tendo

como referência o próprio RGPS.

Dada a existência de significativa bibliografia jurídica sobre este tema, não há

preocupação de alongá-lo, apresentando apenas alguns de seus aspectos que foram

considerados relevantes.

1.) Síntese das principais mudanças realizadas pelo Governo Federal

Dentro do objetivo de análise acadêmica, as alterações mais importantes são

simplificadas nos dois quadros a seguir.

Quadro 01 – Principais Modificações em relação aos servidores e seus dependentes

Modificações Observações 1. Os RPPS só podem ter como segurados os servidores estatutários

Antes os RPPS podiam admitir todo tipo de servidor, que, muitas vezes, pela contagem

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(efetivos e concursados). Os demais servidores (cargos em comissão, celetistas, temporários e detentores de cargos eletivos) são obrigados a se filiar ao INSS.

recíproca, se aposentavam pelo RPPS, com proventos integrais, tendo contribuído muito pouco. Alguns RPPS municipais chegaram a aceitar vereadores como segurados.

2. Fim da paridade entre servidores ativos e aposentados.

Antes os aposentados recebiam todos os benefícios salariais do cargo em que se aposentou (reajustes, reclassificação, abonos, outros).

3. Contribuição mínima de 11% do salário integral.

Não havia definição e alguns RPPS praticavam taxas irrisórias. Este percentual é superior ao do INSS.

4.Contribuição de aposentados e pensionistas.

Não existia anteriormente. Isto não ocorre com o INSS. Na verdade é um redutor de proventos.

5.Limite mínimo de idade para aposentadoria: Homens, 60 anos e Mulheres, 55 anos.

Não existia. Foram criadas regras de transição para preservar direitos adquiridos.

6. Fim da integralidade dos proventos de aposentadoria para os novos ingressantes (a partir de 20.02.2004).

Os proventos passaram a ser calculados pela média dos salários de contribuição corrigidos, como no INSS (mas sem aplicação do fator previdenciário nem da regra 85/95).

7. Impedimento de contagem de tempo fictício para a aposentadoria.

Antigamente alguns estatutos do funcionalismo permitiam a contagem em dobro, para aposentadoria, de férias ou licenças-prêmio não gozadas, tempo este considerado pela EC nº 20/98 como “tempo fictício”.

8. Fim da integralidade das pensões.

Os pensionistas de servidores falecidos receberão proventos integrais só até o teto do INSS. Acima disto, recebem apenas 70%, sobre os quais ainda incide uma taxa de contribuição igual à dos ativos (mínimo 11%).

9. Instituição do caráter contributivo e solidário.

No passado, as contribuições irrisórias destinavam-se apenas ao pagamento de pensões.

10. Impedimento de os RPPS concederem benefícios de saúde.

Alguns RPPS mantinham planos de saúde - bastante dispendiosos - dos servidores e dependentes.

Quadro 02 – Principais Modificações em relação à gestão dos RPPS

Modificações Observações

1. Exigência de estudos atuariais anuais. Anteriormente à Lei nº 9.717/98 não havia tal exigência.

2. Contas distintas das do tesouro. Aspecto organizacional fundamental. 3. Proibição de empréstimos aos entes e segurados.

Esta era uma prática usual, antes da Lei nº 9.717/98.

4. APLICAÇÃO DOS RECURSOS CONFORME Anteriormente as aplicações dos recursos

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NORMAS DO CMN E DO MTPS (HOJE SPS-MF).

eram realizadas de maneira empírica e, por vezes, até duvidosa.

5. Exigência de Certificação para os responsáveis pela aplicação das reservas do RPPS.

Gestão mais profissionalizada dos recursos. Foi instituída pela Resolução 3.506 do CMN (23.10.07) e pela Portaria MPS–155 (15.05.08) do então MPS.

6. UTILIZAÇÃO DOS RECURSOS APENAS PARA

PAGAMENTO DE BENEFÍCIOS.

A única exceção refere-se aos gastos administrativos, limitados a 2% da arrecadação.

7. Auditoria e fiscalização feitas pelo MTPS (hoje SPS-MF).

Exigência de uma grande quantidade de relatórios que os RPPS precisam enviar ao MTPS (hoje SPS-MF).

8. Exigência de banco de dados de servidores fidedigno e atualizado.

Aspecto fundamental para a realização de estudos atuariais fidedignos e para planejamento da concessão de benefícios. Anteriormente não se dava tanta importância a isto...

9. Instituição do abono de permanência (igual ao valor da contribuição previdenciária).

Os servidores que já detém as condições para a aposentação e não o fazem, ficam isentos da contribuição. Isto representa uma economia de recursos para o RPPS e para o ente estatal.

10. Instituição da Previdência Complementar.

Isto representaria uma grande economia aos RPPS, mas apenas a União e alguns estados a adotaram.

11. Adoção do Certificado de Regularidade Previdenciária (CRP) para os RPPS. O CRP é renovado a cada três meses.

Houve um recrudescimento dos aspectos de fiscalização, tendo sido instituído o CRP, também para os RPPS.

2.) Os benefícios previdenciários do RGPS

Os benefícios previdenciários do Regime Geral também passaram por importantes

modificações, especialmente quanto aos critérios de concessão e têm servido de base para a

reforma dos RPPS, no entanto, ainda persistem algumas pequenas diferenças nos critérios e

no cálculo dos valores dos benefícios e dos proventos.

Os benefícios previdenciários hoje ofertados pelo RGPS são apresentados no Quadro 03

a seguir.

Quadro 03 - Benefícios prestados pelo INSS

Ao segurado

Auxílio-doença Auxílio-acidente Aposentadoria por invalidez Aposentadoria por idade Aposentadoria por tempo de contribuição Aposentadoria Especial

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Salário-família Salário-maternidade

Ao dependente Auxílio-reclusão Pensão por morte

Além destes benefícios, o INSS também presta, aos segurados e/ou dependentes, os

serviços de Reabilitação Profissional e de Serviço Social, mas os RPPS não estão obrigados a

ofertá-los. Por outro lado, alguns RPPS promovem cursos de preparação dos servidores para a

aposentadoria e oferecem atividades de lazer para seus aposentados.

Os benefícios: Auxílio-doença; Auxílio-acidente; Salário-família; Salário-maternidade e

Auxílio-reclusão são chamados de Benefícios Descontinuados, em razão do caráter

transitório, ou seja, cessados os condicionantes que o geraram, seu pagamento é interrompido.

Esta denominação ocorre por contraposição aos Benefícios Continuados, em geral

vitalícios, os quais basicamente se resumem às aposentadorias e pensões.

Cabe destacar que, por iniciativa do Executivo Federal, está em curso uma nova reforma

previdenciária, ainda bastante indefinida, em razão de fatores conjunturais.

3.) Os benefícios previdenciários dos RPPS

Os RPPS são regimes de previdência hoje definidos exclusivamente para os servidores

estatutários concursados dos entes estatais e precisam ser criados por lei do respectivo ente

federado. Caso o ente estatal opte pela não criação de um RPPS, tais servidores deverão se

vincular ao RGPS, que é gerido pelo INSS.

Este tema é mais complexo porque ainda há alguma liberdade de os entes estatais

definirem as formas de concessão de alguns benefícios.

A Portaria 402, de 10.12.2008, que regulamenta as leis nº 9.717, de 1998 e nº 10.887, de

2004, reconhece, no artigo segundo, que são RPPS os regimes voltados exclusivamente aos

servidores titulares de cargos efetivos, criados por lei, e que ofereçam, no mínimo, os

proventos de aposentadoria e pensão, ou seja, os benefícios continuados.

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173 7ª edição – Primeiro Semestre I-2018

Nestas condições, os demais benefícios previdenciários definidos no Estatuto de

Servidor Público18, que não forem concedidos pelo RPPS, devem ser assumidos diretamente

pelos cofres dos respectivos entes estatais.

Os benefícios previdenciários que usualmente são concedidos aos servidores

estatutários pelo RPPS, ou pelo ente estatal ao qual estão vinculados, em nomenclatura são os

mesmos do INSS, sendo que, o que varia, como afirmado anteriormente, são alguns critérios

de concessão e de cálculo dos proventos, especialmente em relação às aposentadorias e

pensões.

O Quadro 03, a seguir, sistematiza estas informações.

Quadro 03 - Benefícios que podem ser prestados pelos RPPS

Aos segurados

Benefícios Descontinuados

Auxílio-doença. Auxílio-acidente. Salário-família. Salário-maternidade.

Benefícios Continuados

Aposentadoria por invalidez. Aposentadoria por idade. Aposentadoria por tempo de contribuição. Aposentadoria Especial.

Aos dependentes

Benefício Descontinuado

Auxílio-reclusão.

Benefício Continuado Pensão por morte.

4.) Esforço importante, mas algumas dificuldades persistem

Foi notável o esforço do Governo Federal, desde 1998, no sentido de buscar o

disciplinamento e o saneamento dos vazamentos de recursos dos Regimes Próprios.

Entretanto, depois de quase 20anos de estudos, ações e mudanças, os resultados ainda não são

muito auspiciosos: mais de dois terços dos RPPS municipais estão classificados como

irregulares e continuam representando uma ameaça às finanças locais. Algo ainda não anda

bem, mas o que falta?

É claro que qualquer resposta a esta questão só pode ser obtida por meio de pesquisas e

investigações mais rigorosas e profundas, mas talvez seja possível, no âmbito deste artigo,

formular algumas hipóteses e sugestões.

18 E que não podem, por lei, ser diferentes dos definidos para o Regime Geral.

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174 7ª edição – Primeiro Semestre I-2018

Problemas complexos exigem soluções complexas e o primeiro passo é tentar

compreender o pensamento de cada ator importante do processo. Se a solução almejada não

resolver, minimamente, as dificuldades de cada grupo significativo envolvido, será difícil

obter bons resultados e a decepção é quase certa. Portanto, o caminho democrático é

inevitável.

Democracia é liberdade em política, em composição e harmonização de interesses de

grupamentos e, se o legislador não consegue compreender bem esta variável, tudo que

produzir, por mais lógicos e nobres que sejam seus objetivos, pode fracassar19. Assim, neste

contexto, é essencial saber quem são os atores mais importantes dos RPPS.

Esta resposta não é tão simples porque, de certa forma, todos são importantes, mas

alguns são mais estratégicos. Por exemplo: a atuação de todas as instâncias fiscalizadoras de

um RPPS– e que não são poucas20 - são fundamentais, mas o ideal seria não deixar que os

desvios acontecessem.

Punir instituições e seus responsáveis por irregularidades, a posteriori21, pode ser justo

e intimidar, mas não é eficaz: a perda ocorrida, dependendo da amplitude, é muito difícil

recuperar.

Um primeiro e principal ator, sem dúvida, é o próprio Governo Federal. Mas qual é sua

motivação principal? Sabe-se que um RPPS mal gerido pode “quebrar” seu ente estatal.

Todavia, entes federados não vão à falência e são dissolvidos como as empresas do mercado.

Acabam sendo recuperados no tempo, com o trabalho suado dos que pagam impostos e pelo

sacrifício de todos os que, de alguma forma, necessitam da atenção do poder público.

Com certeza, parte desse processo de recuperação passa, pelo menos no início, pelo

socorro da União que é o único ente estatal que tem condições de intervir e ajudar, mas

atualmente está se tornando mais difícil. E sabe-se o quanto isto é dramático. Portanto, o

principal interesse federal, provavelmente, é não deixar que a situação evolua para o caos

administrativo-financeiro.

19 Lamentavelmente, o Brasil talvez seja o único país do mundo no qual existem leis que “pegam” ou “não

pegam”... 20 Auditorias internas e externas (quando há), Câmaras Municipais, Ministério Público, Tribunais de Contas

Estaduais, Governo Federal / MTPS (hoje SPS-MF). 21 E, por vezes, depois de muito tempo, dada a morosidade da nossa Justiça.

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Mas a principal arma de que dispõe o poder federal – a legislação – é importante e

necessária, mas já mostrou, pelo menos neste caso, que não é suficiente, como apontam os

dados apresentados na Introdução, quanto à quantidade de RPPS irregulares.

Além disso, o governo federal não tem condições de manter uma grande quantidade de

servidores, só para fiscalizar os RPPS de outros entes estatais. E, embora seja o principal

agente fiscalizador, a legislação divide tal tarefa com outros organismos já citados.

Em vista disso, quando toda documentação enviada por um RPPS está em acordo com o

previsto, o Município, ou Estado, recebe seu CRP (como apontado anteriormente), mas não é

feita qualquer crítica às informações repassadas, particularmente quanto ao estudo atuarial

apresentado. E não o faz, não só pelo que foi apontado acima, mas principalmente porque isto

precisaria ser feito por outro Atuário que, além de não ter acesso a todos os dados que

geraram o estudo atuarial apresentado, se sentirá constrangido a fazê-lo, por razões de ética

profissional.

Um segundo ator importante é o próprio segurado do RPPS, porque numa eventual

circunstância econômica difícil, é ele quem será o primeiro a sofrer as consequências. Mas,

em geral, ressalvadas as honrosas exceções, o que se vê é uma situação de acomodação e até

mesmo de resistência à reforma da previdência do setor público, pelo aumento significativo

da contribuição previdenciária22 e pela retirada ou diminuição de concessões anteriores.

Aliás, é bom destacar que este tem sido o tom de muitos sindicatos de servidores, que,

embora estejam cumprindo seus papéis, talvez não tenham conseguido compreender o

problema todo. Mas, são poucos os servidores públicos que se preocupam com um possível

comprometimento das finanças do seu RPPS, e por uma razão simples: se este (RPPS) ficar

sem recursos, o responsável final pelo pagamento dos benefícios previdenciários (Lei

9.717/1998, art. 2º, § 1º) é o próprio ente federado. E como os entes estatais nunca abrem

falência, em tese, não há com que se preocupar.

Um terceiro ator fundamental é o chefe do executivo e seu staff, ou seja, o Prefeito e sua

assessoria, dado que o foco deste trabalho são os RPPS municipais23, uma vez que são eles

que decidem pela criação, manutenção ou extinção de seu regime próprio.

22 Conforme o Art. 3º da Portaria 402 de 10.12.2009, do MPAS, a alíquota de contribuição dos segurados ativos

ao RPPS não poderá ser inferior à dos servidores titulares de cargo efetivo da União, atualmente fixada em 11 % (onze por cento) pela Lei nº 10.887 de 18.06.2004. Se um ente estatal qualquer não instituiu sua previdência complementar (como o governo federal), esta alíquota incidirá sobre a remuneração total do servidor e não apenas até o teto do INSS, como ocorre com os demais trabalhadores.

23 Embora muito do que aqui se afirma também seja aplicável aos estados e à União.

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Mas o que pensam os prefeitos? Para responder esta questão, é preciso entrar no espírito

que predomina no meio político.

Assim, a primeira questão a ponderar é que os políticos procuram trabalhar

objetivamente dentro de seus universos de possibilidades, ou seja, costumam ser muito

pragmáticos. Isso os leva a sempre priorizar o curto prazo, e a olhar os problemas econômicos

que precisam resolver, com uma visão contábil, imediatista.

A segunda questão a ponderar é que os recursos públicos são sempre insuficientes frente

às demandas e, portanto, governar é fazer escolhas. Os compromissos públicos de campanha

para com seus apoiadores e financiadores precisam ser honrados. Ora, se um Prefeito

descobre que recebeu de herança um RPPS com sérios problemas econômico-financeiro-

atuariais, certamente relutará muito em despender os recursos necessários para consertá-lo e

tentará contemporizar isto o máximo possível, com as armas que tiver24.

Em outras palavras, a argumentação dos prefeitos provavelmente é a seguinte:

1.) Se a crise é antiga, por qual razão ela precisa ser resolvida justamente no meu

mandato? Terei que despender um grande volume de recursos preciosos, sendo que eles

ficarão inertes nas contas de fundos de investimentos?

2.) O que é mais importante: investir na melhoria dos serviços de saúde, educação,

transporte e outros ou despender um precioso volume de recursos para atender as

necessidades futuras de uma parcela muito pequena da população (cerca de 2%, em média),

que são os servidores públicos?”

3.) Afinal, a legislação afirma que, se um RPPS ficar sem recursos, é a prefeitura

que será a responsável, em última instância, pelos pagamentos dos benefícios previdenciários

aos seus servidores. Logo, que os futuros prefeitos se preocupem em consertar isto...

No entanto, é preciso considerar que é a recorrência deste tipo de visão de curto prazo,

embora compreensível, que faz com que o déficit previdenciário continue aumentando...

Além disso, em relação aos prefeitos, há outro argumento significativo: “como posso

confiar no relatório de um atuário, que não convive com os problemas do município, se não

consigo entender que tipo de estudos e cálculos foram realizados?”.Ou seja, a desconfiança no

trabalho do atuário, sincera ou conveniente, é quase inevitável...

24 Os políticos costumam usar uma expressão pouco elegante: “Empurrar com a barriga...”

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Por outro lado, se as reservas ou provisões do RPPS são significativas25, o chefe do

executivo, pelos mesmos argumentos anteriores (escassez de recursos), certamente ficará

tentado a usá-los de outra forma, embora quase sempre sejam alertados que não são da

prefeitura, mas sim dos servidores.

Isto acontecia muito no passado, mas foi bem resolvido logo no início da Reforma, pela

lei nº 9.717 de 27.22.1998, que no Art. 1º, inciso III, impediu qualquer tipo de uso dos

recursos dos RPPS pelo executivo, deixando evidente que precisam ser preservados para

exclusivo pagamento de benefícios previdenciários.

Este enfoque nos conduz a um quarto ator muito importante, mas que aparece muito

pouco, que é o profissional que faz os estudos atuariais para os RPPS: o Atuário.

Os estudos atuariais são vitais para se definir as reais condições de equilíbrio

econômico-financeiro e atuarial dos RPPS no longo prazo. É o único instrumento que pode se

contrapor à opinião gratuita de quem não conhece o assunto.

Uma coisa é a visão simplista e infundada do tipo: “Um sistema com este volume de

recursos não parece estar desequilibrado” . Outra coisa é a explicitação material, concreta, em

bases matemáticas, financeiras e atuariais, de uma situação.

Acertadamente, esta também foi uma das primeiras exigências da Reforma, ainda em

1998: a obrigatoriedade de realização de estudos e reavaliações atuariais anualmente, pela

Portaria MPS 403 de 11.12.2008 (revista pela Portaria MPS nº 21 de 16.01.2013) com base no

disposto no artigo 9º da Lei nº 9.717, como já comentado.

Entretanto, em prol da transparência, é preciso ponderar que há fortes indícios de que

quase todos os estudos atuariais dos RPPS municipais (especialmente para municípios

pequenos) são frágeis e deixam a desejar. Na extinta FPFL – Cepam o grupo de previdência

municipal, há alguns anos passados, à luz das exigências legais e da lógica, chegou a analisar,

sob orientação de um atuário consultor, mais de 20 estudos atuariais municipais, coletados ao

acaso, concluindo que apenas dois (10%) deles apresentavam razoável consistência.

Lamentavelmente, por razões internas, isto não foi publicado, mas um dos signatários deste

texto participou desse trabalho.

O que pensam os atuários sobre isto?

25 Estimativas realizadas pelo grupo de previdência municipal da extinta FPFL – Cepam apontam que um RPPS

bem equilibrado pode acumular em pouco mais de dez anos, o equivalente a um orçamento do ente estatal a que se vincula.

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178 7ª edição – Primeiro Semestre I-2018

Bem, obviamente não dá para saber o que pensa cada atuário, mesmo porque podem

existir divergências, mas é possível inferir as razões de suas prováveis atitudes, com base em

algumas constatações, como segue.

Sobre os estudos atuariais:

Estudos atuariais para RPPS são sistemas complexos, particularmente pela grande

quantidade de regras de transição e na quantidade de momentos que um servidor pode ter para

requerer sua aposentadoria, ao longo de sua vida laboral.

Uma segunda questão importante em relação aos RPPS é que tal complexidade

praticamente independe do número de segurados, porque a questão fundamental está na

quantidade de variáveis a serem analisadas e confrontadas. É claro que sempre se pode

elaborar um sistema mais simples, baseado em grandes médias, mas a margem de erro pode

ser expressiva.

Um terceiro aspecto relativo a esta complexidade refere-se, de forma mais geral, à

grande sensibilidade dos estudos previdenciários em relação às premissas atuariais assumidas.

Um mesmo atuário, trabalhando com a mesma base de dados, pode obter resultados

significativamente diferentes pela simples mudança de uma ou outra premissa. Exemplos

simples e claros disso são: a taxa de juros e a tábua de mortalidade adotadas, mas há outras26.

Isto implica que um estudo atuarial sério deve realizar várias simulações, procurando avaliar

o impacto da variabilidade de algumas premissas relevantes.

Outro aspecto fundamental é que estudos atuariais confiáveis exigem bancos de dados27

fidedignos, o que, apesar das exigências legais, geralmente não acontece, tornando-se mais

um complicador para o trabalho do atuário: se opera com os frágeis dados disponíveis, pode

obter resultados pouco confiáveis e se realiza, antes dos cálculos, uma crítica desses dados,

despenderá muito mais tempo, o que pode tornar o trabalho economicamente inviável, do

ponto de vista do retorno financeiro.

26 A legislação pertinente tentou corrigir algumas distorções definindo alguns parâmetros para a realização dos

estudos atuariais, como a taxa de juros e a tábua de mortalidade. 27 Este banco de dados deve conter nome, sexo, data de nascimento, tempo de contribuição anterior,

remuneração, estado civil, nomes e idades de cônjuge e filhos ou outros dependentes econômicos, tempo de serviço público, tipo de atividade (por ter direito a aposentadorias especiais), entre outras. Se este banco de dados, que deve ser fornecido pelo RPPS, ou pelo ente federado, possuir muitos dados não confiáveis ou desatualizados, isto certamente poderá ter significativo impacto nos cálculos atuariais a serem realizados.

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Sobre a contratação de Atuários pelos RPPS:

a) Estudos atuariais sérios demandam muito tempo e, portanto, são caros,

exigindo programas e softwares específicos. Grande parte dos municípios brasileiros é de

pequeno porte e dispõe de poucos recursos. Logo, eles não têm condições para pagar um

estudo atuarial mais complexo e realista.

No caso de municípios pequenos e médios, vários atuários acabam cobrando um valor

próximo ao limite de isenção de licitação, o que reduz a burocracia. Além disso, os atuários

podem ser contratados por notória especialização28, o que permite aos prefeitos ou

responsáveis pelos RPPS contratar o atuário de sua livre escolha, dispensando o processo

licitatório.

b) Por outro lado, por razões já expostas, sabe-se que os prefeitos têm grande

resistência à realização de estudos atuariais, porque temem que evidenciem situações não

muito cômodas, que os obriguem a despender recursos que não dispõem.

c) Em decorrência disso, se um RPPS está em dificuldades, com um grande

“passivo atuarial”29 descoberto e se isto é apontado claramente pelo estudo atuarial,

provavelmente aquele atuário não mais será contratado, no futuro.

d) Em passado recente, algumas instituições financeiras assumiam os custos

anuais de contratação de estudos atuariais em troca de exclusividade nos investimentos

financeiros dos RPPS, o que, evidentemente, não é uma atitude compliance...

III – Conclusão

Apresentado todo esse roteiro geral realizado pela Reforma da Previdência do Setor

Público, mais precisamente para os Regimes Próprios (RPPS), constata-se que inúmeros

aspectos são mais do que importantes e justificados. O esforço dos sucessivos ajustes legais

feitos após a Emenda Constitucional nº 20/1998 e da Lei nº 9.717/1998 tiveram o claro

objetivo de impedir a evasão de recursos dos RPPS com gastos indevidos e para melhorar sua

28 O art. 25, inciso II, da Lei nº 8666 de 1993 afirma em seu caput: “É inexigível a licitação quando houver

inviabilidade de competição, em especial:” e no inciso II : “II - para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta Lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação”.

29 Alguns atuários acham incorreto usar esta expressão para significar insuficiência de recursos para fazer frente às demandas futuras. Daí as aspas.

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gestão. Mas isto ainda tem se mostrado insuficiente, como apontaram os dados apresentados

no início.

O primeiro aspecto importante a observar é que a realidade está evidenciando que,

embora existam inúmeras instâncias fiscalizadoras dos RPPS, isto não tem mostrado eficácia,

dado que, hoje, cerca de dois terços dos RPPS municipais, continuam irregulares.

Considerando-se que o melhor fiscal do poder público é o próprio povo consciente, isto

sugere que seria fundamental que o Governo Federal lançasse uma campanha publicitária,

direcionada à sociedade, mas especialmente focada nos servidores públicos, mostrando os

riscos que um RPPS mal gerido pode representar para as finanças públicas e aos próprios

participantes, no futuro.

O segundo aspecto importante é que é preciso prestar atenção aos argumentos dos

prefeitos, ou chefes de executivo. Afinal, são estes dirigentes que acabam decidindo sobre a

criação, revitalização ou extinção dos RPPS e, além disso, podem influir significativamente

na condução da gestão administrativa e financeira dos RPPS30.

O foco central da argumentação dos prefeitos está na forma de aplicação das reservas

dos RPPS. A correta visão financeira, focada na transparência e rentabilidade, certamente

protege estes recursos, mas isto é pouco.

Focando a questão nos municípios pequenos e médios, os prefeitos sabem ou intuem

que o problema central é o desenvolvimento econômico, porque significa mais empregos e

maior arrecadação. Tanto assim que muitos acabam oferecendo subsídios, por vezes

generosos, às empresas que decidem se instalar no município, seja por isenção de impostos

por algum tempo, seja pela cessão ou doação de grandes áreas, ou outra.

Por outro lado, sabe-se, da teoria, que a alavancagem de desenvolvimento econômico

depende de investimentos. Ora, se o município tem um RPPS, que precisa guardar e aplicar

suas provisões, o pensamento imediato de qualquer prefeito é: por que não utilizá-las?

Uma conta simples mostra que estes recursos podem ter um volume expressivo,

comparativamente ao porte do município: Imagine-se que uma prefeitura gaste 40% de seu

orçamento com a folha de pagamentos de seus servidores (geralmente é mais).

30Apesar de a legislação propugnar por maior independência, na contratação de atuários e, talvez, até, na indução

de alguns resultados dos estudos atuariais.

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181 7ª edição – Primeiro Semestre I-2018

Imagine-se que destes 40%, 30% são para os servidores estatutários. A prefeitura deve

recolher, anualmente, no mínimo 22% da folha dos estatutários ao RPPS, o que pode

significar cerca de 7% do orçamento, por ano. Se a este valor for acrescentada a contribuição

dos servidores de cerca de 1/2 do valor aplicado pela prefeitura, chega-se facilmente aos 9 ou

10% do orçamento municipal, anualmente, ou seja, em aproximadamente dez anos, grosso

modo, o RPPS pode acumular algo em torno de um orçamento do município! Talvez mais,

porque estes cálculos foram minimizados.

No pensamento do dirigente municipal aparece mais uma questão: Para onde vão os

recursos aplicados pelos RPPS? Para as instituições financeiras que certamente os aplicarão

onde puderem obter maior retorno e este lugar não é o município pequeno. Em outras

palavras, pode-se afirmar que os pequenos estão contribuindo para a alavancagem do

desenvolvimento dos municípios mais desenvolvidos.

Sant’Anna (2000) afirma que o grupo de Previdência Municipal da extinta FPFL –

Cepam, já antevia esta questão. Argumentavam que a grande dificuldade pela busca do

desenvolvimento econômico está na alavancagem de recursos. Então, porque não usar, de

forma hábil, e sem comprometer a segurança, os recursos dos RPPS para tal?

Uma solução imaginada por este grupo da Cepam seria uma operação de triangulação:

Estes recursos seriam investidos num banco público (talvez, num primeiro momento, os

bancos privados não aceitem participar disto), que garantiria uma rentabilidade mínima e se

comprometeria a reinvesti-los no próprio município, com o risco das operações sendo

assumido pelo próprio banco, dado que correr riscos em empréstimos financeiros é inerente às

atividades bancárias.

Além disso, para se evitar a centralização das decisões no executivo, poderia ser

formada uma Comissão Municipal de Desenvolvimento, tripartite, com a participação do

poder público local, como avalista, da sociedade civil organizada e a própria instituição

financeira, como orientadora, em relação aos riscos. Tal comissão municipal decidiria sobre

onde e como investir tais recursos na própria localidade.

Por outro lado, se o poder local vir estes recursos serem aplicados localmente, haverá

uma mudança na imagem dos regimes próprios e, consequentemente, menor resistência dos

prefeitos quanto a cumprir fielmente suas obrigações previdenciárias para com o RPPS.

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É claro que algo desta envergadura precisa ser mais bem estudado, mas certamente

garantiria proteção às reservas dos RPPS, não impediria que os bancos também lucrassem31

com eles e, sobretudo, seria um significativo incremento ao desenvolvimento municipal, além

de angariar a simpatia do poder local.

Por fim, há um terceiro e importante aspecto, que é a qualidade dos estudos atuariais. E

aqui cabe rememorar os fatos.

No início da Reforma da Previdência do Setor Público, por volta de 1998/2000 o então

Ministério da Previdência Social - MPS decidiu pela implementação de um software de gestão

dos RPPS, o Siprev, com vários módulos específicos, entre os quais um Módulo de Cálculos

Atuariais.

Hoje, mantido pelo DATAPREV, o Siprev existe e é disponibilizado gratuitamente aos

RPPS, com código aberto, assistência técnica e treinamento, mas está focado apenas na

gestão de informações, mantendo um banco de dados sobre o funcionalismo público, sobre

folhas de pagamento, emissão de relatórios diversos e outros elementos afins.

Este sistema é fundamental para a realização de estudos atuariais, mas a adesão do

RPPS ao ‘Siprev-gestão’ ainda é bem baixa. E, infelizmente, o módulo atuarial foi

definitivamente abandonado.

Um software de cálculos atuariais para RPPS, com base no banco de dados do Siprev-

gestão que forneça, quase automaticamente, os cálculos atuariais, poderia ser extremamente

vantajoso, não só em relação aos objetivos do Governo Federal e do próprio RPPS, como

também para os atuários, como mostrado a seguir.

Principais vantagens que um software de cálculos atuariais traria:

Padronização dos procedimentos de realização dos cálculos atuariais

Hoje cada atuário desenvolve sua própria metodologia e por vezes, constrói seus

softwares, da forma que julga ser a mais adequada, mas cada um tem a sua, o que impede

comparações de resultados tanto para o mesmo ente federado, ao longo do tempo, se houver

mudança do profissional, como entre RPPS.

Realização dos estudos com bases de dados mais fidedignos

31 É provável que o retorno financeiro não seja tão atraente, em comparação com aqueles que bancos têm obtido

no mercado, mas haveria, também, um ganho expressivo em merchandising.

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183 7ª edição – Primeiro Semestre I-2018

Hoje os atuários dependem das bases de dados fornecidas pelos próprios RPPS e que,

quase sempre, carecem de consistência e rigor.

Poder usar as bases do Siprev garantiria maior fidedignidade, na medida em que o

Siprev-gestão se responsabilizaria pela crítica e consistência desses dados.

Possibilidade de executar simulações, com a variação de algumas premissas

Como se sabe, os estudos atuariais são muito sensíveis a algumas premissas assumidas.

O software poderia incluir a possibilidade de se realizar várias simulações, o que daria maior

segurança e consistência aos resultados.

Possibilidade de realização de estudos a qualquer momento

Existindo um software bem estruturado, os estudos atuariais não precisariam ser feitos

apenas anualmente, mas sim a qualquer momento que fosse necessário.

Por exemplo: o município faz um concurso público e admite uma grande quantidade de

servidores. Não seria preciso esperar muito tempo para se avaliar o impacto atuarial desses

novos entrados: bastaria acrescentar os dados destes novos integrantes e “rodar” o sistema.

Não eliminaria o papel do atuário, porque os estudos precisariam ser validados

Embora gerado quase automaticamente, os cálculos atuariais precisariam ser avalizados

por um atuário, não só para atestar a adequação das premissas utilizadas, como sugerir as

ações e cuidados necessários. Isto enobreceria o trabalho do atuário que se livraria das tarefas

e riscos enfadonhos de cálculo.

Os estudos atuariais ficariam muito mais acessíveis financeiramente

Retirada a maior parte da carga de trabalho do atuário, estes poderiam emitir suas notas

ou pareceres, em um tempo muito menor, o que reduziria significativamente o custo. E isto

também seria bom para os RPPS.

O maior problema, que impede que alguns RPPS (ou atuários) construam, por conta

própria, tais softwares é o seu alto custo, inclusive de manutenção. Mas estes custos poderiam

ser facilmente assimilados pelo governo federal, que, além disso, teria como vantagem a

certeza de que todos os estudos atuariais dos RPPS seriam mais confiáveis e seguros e que

foram realizados com os mesmos procedimentos de cálculo.

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184 7ª edição – Primeiro Semestre I-2018

E não precisaria entrar em “confronto” com um provável “lobby de atuários”, porque

estes não seriam excluídos do processo. Muito ao contrário, seriam profissionalmente

valorizados.

Finalizando, a expectativa dos autores deste artigo é ter podido dar algumas

contribuições para reflexão sobre um assunto de tão grande relevância, mas nem sempre

perceptível, para as finanças públicas.

Referências Bibliográficas AKASHI, Diogo Telles. Regime e Reforma da Previdência Social do Setor Público. São Paulo: Ed. Letras Jurídicas, 2005. ALVARES, Maria Lúcia Miranda. Regime Próprio de Previdência Social. São Paulo: Ed. NDJ, 2007. ARAÚJO, Fátima Fernandes; SANT’ANNA Junior, Alfredo. Sistemas Municipais de Previdência para Servidores: Um Bom Negócio para os Municípios, mas... In O Município no Século XXI: Cenários e Perspectivas. São Paulo: FPFL – Cepam, 1999. ARRUDA, Maurílio Neris de Andrade. Previdência Social dentro da Autonomia Municipal. 2ª Ed. Leme-SP: 1999. _________. Previdência Social do Servidor Público. Belo Horizonte: Del Rey Ed., 2001. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 05 out 1988. Diário Oficial, Brasília, 06.10.1988. Atualizada até a Emenda Constitucional nº 91, de 18.02.2016. BRASIL. Emenda Constitucional nº20, 15.12.1998. Modifica o sistema de previdência social, estabelece normas de transição, e dá outras providências. Diário Oficial, Brasília, 16.12.1998. BRASIL. Emenda Constitucional nº 41, 19 dez. 2003. Modifica os arts. 37, 40, 42, 48, 96, 149 e 201 da Constituição Federal, revoga o inciso IX do § 3º do art. 142 da Constituição Federal e dispositivos da Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, e dá outras providências. Diário Oficial, Brasília, 31.12.2003. BRASIL. Emenda Constitucional nº 47, 05 jul. 2005. Altera os arts. 37, 40, 195 e 201 da Constituição Federal, para dispor sobre a previdência social, e dá outras providências. Diário Oficial, Brasília, 06.07.2005. BRASIL. Emenda Constitucional nº 88, 07 maio de 2015. Altera o art. 40 da Constituição Federal, relativamente ao limite de idade para a aposentadoria compulsória do servidor público em geral, e acrescenta dispositivo ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Diário Oficial, Brasília, 08.05.2015.

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Revista Brasileira de Previdência

185 7ª edição – Primeiro Semestre I-2018

BRASIL. Lei nº 9.717, 27 nov. 1998. Dispõe sobre regras gerais para a organização e o funcionamento dos regimes próprios de previdência social dos servidores públicos da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, dos militares dos estados e do Distrito Federal, e dá outras providências. Diário Oficial, Brasília, 28.11.1998. BRASIL. Lei nº 9.796, 05 de maio de 1999. Dispões sobre a compensação financeira entre o Regime Geral da Previdência e os RPPS, nos caso de contagem recíproca de tempo de contribuição para efeito de aposentadoria, e dá outras providências. Diário Oficial, Brasília, 06.05.1999. BRASIL. Lei nº 10.887, 18 jun. 2004. Dispõe sobre a aplicação de disposições da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003, altera dispositivos das Leis nos 9.717, de 27 de novembro de 1998, 8.213, de 24 de julho de 1991, 9.532, de 10 de dezembro de 1997, e dá outras providências. Diário Oficial, Brasília, 21.06.2004. BRASIL. Decreto nº 3.048, 06 maio 1999. Aprova o regulamento da Previdência Social, e dá outras providências. Diário Oficial, Brasília, 07.05.1999. Dispõe sobre a aplicação de disposições da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003, altera dispositivos das Leis nos 9.717, de 27 de novembro de 1998, 9.783, de 28 de janeiro de 1999, 8.213, de 24 de julho de 1991, 9.532, de 10 de dezembro de 1997, e dá outras providências. Diário Oficial, Brasília, 07.07.1999. BRASIL. Decreto n º 3.112. 06 jul. 1999. Dispõe sobre a regulamentação da Lei nº 9.796, de 05.05.1999, que versa sobre compensação financeira entre o Regime Geral da Previdência e os RPPS, nos caso de contagem recíproca de tempo de contribuição para efeito de aposentadoria, e dá outras providências. Diário Oficial, Brasília, 07.07.1999. BRASIL. Portaria nº 204, 10 jul.2008. Dispõe sobre a emissão do Certificado de Regularidade Previdenciária – CRP e dá outras providências. Diário Oficial, Brasília, 11.07.2008. BRASIL. Portaria nº 403, 10 dez 2008. Disciplina os parâmetros e as diretrizes gerais para organização e funcionamento dos regimes próprios de previdência social dos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, em cumprimento das Leis no 9.717, de 1998 e no 10.887, de 2004. Diário Oficial, Brasília, 12.12.2008. BRIGUET, Magadar Rosália Costa; VICTORINO, Maria Cristina Lopes; HORVATH Júnior, Miguel. Previdência Social: Aspectos Práticos e Doutrinários dos Regimes Jurídicos Próprios. São Paulo: Atlas, 2007. CAMPOS, Marcelo Barroso Lima Brito de. Regime Próprio de Previdência Social dos Servidores Públicos. Belo Horizonte: Ed. Líder, 2004. CARVALHO, Sonia Maria Gonçalves de. O Servidor Público e as Reformas da Previdência. Rio de Janeiro: Lumen Juris Ed., 2005. CORDEIRO, Antonio Filho.Cálculo Atuarial Aplicado. São Paulo: Editora Atlas – 2ª Ed. CORDEIRO, Antonio Filho e SILVA, Anderson Soares. Previdência: Estratégia e Perseverança - Uma Visão Diferente. In Revista Brasileira de Previdência, 4ª ed. Nov/2015. São Paulo: Unifesp - EPPN. DAL BIANCO, Dânae et al. Previdência de Servidores Públicos. São Paulo: Atlas, 2009. DIAS, Eduardo Rocha; Macêdo, José Leandro Monteiro de. Nova Previdência Social do Servidor Público. 2ª Ed. São Paulo: Ed. Método, 2006. DINIZ, Paulo de Matos Ferreira, Previdência Social do Servidor Público. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris Ed., 2008. DRUCKER, Cesar. A Nova Previdência Funcional para os Servidores do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FASP-RJ, 2002. FERRARO, Suzani Andrade. O Equilíbrio Financeiro e Atuarial nos Regimes de Previdência Social. Rio de Janeiro: Lumen Juris Ed., 2010.

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186 7ª edição – Primeiro Semestre I-2018

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NEW ITALIAN EFFORTS AGAINST FALSE INDEPENDENT WORK ∗

MATTEO AVOGARO

Graduated in Law at the University of Trento, Italy Master in Labour Law at the University of Venice

Ph.D. Candidate in Labour Law at University of Milan

SUMMARY 1. Introduction; 2. From employer-coordinated freelance work agreements to the crisis of

project-based work: the evolution of remedies against false independent work; 2.1. Article 409.3 c.p.c. and the first period of employer-coordinated freelance work agreements; 2.2. The project-based work; 2.3. Efforts to reform project-based work; 3. The innovations provided by Legislative Decree n. 81/2015; 4. In particular: the heter-organized work and the reallocation of risk; 5. The effects of introduction of heter-organized work on Italian occupational levels; 6. Implications of heter-organized work with reference to new issues concerning sharing economy; 7. Conclusions.

*

1. Introduction

The abuse of false independent work is a long standing problem of the Italian labour market, that

the legislator attempted to resolve, without success, from the beginning of 1990s. In 2014-2015, the

Italian Government has posed the struggle against false independent work, and a better protection of

autonomous workers treated as dependants, on the top of its labour agenda. In particular, the most

relevant reform was the introduction of the new legal institute of heter-organized work, with the aim to

reduce spaces for an abusive utilization of “apparent” independent workers. The reform has been

followed by a relevant debate in Italy, concerning the real effects of this intervention and its concrete

impact in the condition of the Italian labour market.

Aim of this article is, after a brief historical review about false independent work in Italy, to

analyse the main characteristic of heter-organized work, and try to identify its real impact on the

condition of collaborators and autonomous workers, through the observation of official statistics

concerning Italian labour market in 2015 and in the first middle of 2016.

Finally, another important issue will be to evaluate whether heter-organized work could be also a

mean useful to assure a better protection to the new workers of the on-demand economy.

∗ Artigo recebido em 13/09/2017 - Aprovado em 20/09/2017

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2. From employer-coordinated freelance work agreements to the crisis of project-

based work: the evolution of remedies against false independent work

2.1. Article 409.3 c.p.c. and the first period of employer-coordinated freelance work

agreements

The matter of abuse of false independent work in Italy is strictly connected with the rules

regarding employer-coordinated freelance work agreements.

During the 1990s local employers, facing the necessity to reduce costs, begun to utilize the

aforementioned kind of labour agreements instead of the standard dependent labour contracts. In fact,

the employer-coordinated freelance work agreements allow the employer to exercise, on the worker,

powers of control and direction very similar to ones provided by standard dependent labour

agreements, but reducing rights and costs (1).

The definition of an employer-coordinated freelance work agreement was introduced in Italy in

1973, with the Law n. 533, that amended article 409.3 of the Italian Code of Civil Procedure

(hereinafter, “c.p.c.”), extending the field of application of the legislation concerning labour judicial

proceedings to «other cooperation agreements corresponding to a continuous and coordinated

performance, mainly personal, even if not classifiable as a dependent labour agreement (2)».

An employer-coordinated freelance work agreement, therefore, may be identified on the base of

three elements: a) the continuous performance; b) the coordinated performance; c) the worker realizes

the performance mainly by himself.

A performance may be qualified as continuous, in the light of article 409.3 c.p.c., either with

reference to a specific activity of a worker, or to a repetition of results connected by a nexus of

continuation (3). The parties may formally agree for a continuous performance, or realize it as a matter

of fact (4). The element of continuation allows to distinguish the employer-coordinated freelance work

agreement from “genuine” independent work. The latter, according to Italian Civil Code (hereinafter,

also the “c.c.”), is qualified as an immediate or prolonged performance, and so, different from the

aforementioned continuous activity (5).

(1) See G. SANTORO PASSARELLI, I rapporti di collaborazione organizzati dal committente e le collaborazioni continuative e coordinate ex art. 409 n. 3 c.p.c., in W.P. C.S.D.L.E. «M. D'Antona», Italian section, n. 278/2015, p. 7-8. (2) See L. NOGLER, La doppia nozione giuslavoristica di parasubordinazione, in Massimario di giurisprudenza del lavoro, 10, 2000, p. 1028-1029 and M.V. BALLESTRERO, L’ambigua nozione di lavoro subordinato, in Lavoro e diritto, 1987, p. 42 ff. (3) In particular, as to the case law, a performance is continuous when persists in the time and entails a dedicated activity of the worker in favour of the customer, see Cass. 19 April 2002, n. 5698, in Notiziario di giurisprudenza del lavoro., 2002, p. 620. (4) See Cass. 23 December 2004, n. 23897, in Massimario di Giustizia civile, 2004, p. 12. (5) See, inter alia, A. PERULLI, Il lavoro autonomo tradito e il perdurante equivoco del “lavoro a progetto”, in Diritto delle relazioni industriali, 2013, p. 18 ff.

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The element of coordination is referred to the organizational side of work and underlines the

functional link existing between the activity performed by the worker and by the customer (6).

Coordination implies a strict connection between the parties of an employer-coordinated freelance

work agreement, in order to reach the goals of the customer (7).

The power of coordination of a customer in an employer-coordinated freelance work agreement

shows some differences from the corresponding power exercised by the employer on the employee.

The customer, in fact, is bestowed only with the power to conform the work performance of the

worker to its organizational needs, i.e. including, in the agreement, clauses about the place and the

time of the performance, while the employer has also the possibility, according to Italian law, to

determine in detail the way of execution of the performance (8). On the other side, an independent

worker is supposed only to realize the performance deducted in the agreement with the client, while is

not required to respect the power of direction of the counterparty (9). Therefore, coordination may be

considered as a peculiar element of employer-coordinated freelance work agreements, that allows to

distinguish them from dependent and independent work, in the light of a qualitative point of view.

In addition, the work performance of an employer-coordinated freelance worker, according to L.

533 of 1973, has to be mainly personal. Case law has defined the abovementioned element indicating

that the worker is allowed to utilize collaborators, but the contribution of collaborators to the whole

performance has not to be predominant if compared with the contribution of the employer-coordinated

freelance worker (10).

As indicated above, Law n. 533 of 1973 extended to the employer-coordinated freelance work

agreements the application of the procedural rules of Italian labour judicial proceedings. In addition,

the same law provided for the application to these agreements of the rules protecting employees from

risks of settlements, concerning their rights deriving from mandatory rules of collective bargaining,

according to article 2113 c.c.

At the beginning of 1990s, with the expansion of the utilization of employer-coordinated

freelance work agreements by companies operating in Italy, the legislator partially improved the range

of protections for these workers, introducing, through Law n. 335 of 1995, an obligation for them to

contribute to the social security system, gradually increased in the following years, and extending to

(6) See Cass. 16 February 2002, n. 5698, in Il lavoro nella giurisprudenza, 2002, 1164, nt. GIRARDI. (7) See Cass. 6 May 2004, n. 8598, in Massimario di Giustizia civile, 2004, p. 5. (8) See A. PERULLI, Lavoro autonomo e dipendenza economica, oggi, in Rivista giuridica del lavoro e della previdenza sociale, 2003, I, p. 236. (9) See G. SANTORO PASSARELLI, Il lavoro “parasubordinato”, Milano, 1979, p. 66 ff. (10) See Cass. 19 April 2002, n. 5698, op. cit.; according to Cass. 13 July 2001, n. 9547, in Foro Italiano, 2002, I, p. 466, Courts, to qualify a performance as mainly personal, have to evaluate the number of collaborators and also the executive or auxiliary character of the activity of collaborators.

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this category of workers the rules about safety of work places, with the Legislative Decree n. 38 of

2000.

Despite the abovementioned reforms, the rules protecting an employer-coordinated freelance

worker at the end of 1990s were fragmented and incomplete. The most important omissions were

concerning the rules that would have to bestow an employer-coordinated freelance worker, in

concrete, of the constitutional right to a sufficient retribution, to vacations, to weekly rest and to a

maximum limitation of daily working time (11).

In addition, most of experts considered insufficient the discipline about dismissals of employer-

coordinated freelance workers, that recognized, substantially, to the customer the right to terminate the

work agreement for any reason, while bestowed the collaborator, if qualified as an intellectual worker,

the right to interrupt the relationship only if a just cause was present, according to article 2237 (12) c.c.

Finally, employer-coordinated freelance workers were not in condition to strike or to organize

them in trade unions: these rights, even if officially admitted by law, were de facto not available, in

reason of the very fragmented condition of employer-coordinated freelance work.

The abovementioned situation encouraged some employers to abuse of employer-coordinated

freelance work agreements, utilizing them instead of standard dependent labour agreements, to obtain

a reduction of costs. To contrast this phenomenon, the Italian legislator introduced a deep reform of

this matter in 2003, through the Legislative Decree n. 276.

2.2. The project-based work

Articles 61 ff. of the Legislative Decree n. 276 of 2003 introduced a new kind of labour

agreement, identified as project-based work.

The definition of project-based work has been provided by article 61 of Legislative Decree n.

276/2003. As to this point, the legislator expressly recalled article 409.3 c.p.c. and, in particular, the

elements of continuous and coordinated performance, and of prevalence of the personal activity of the

worker (13). In addition, the reform of 2003 introduced the element of the project, program or phase,

that had to be expressly indicated in the agreement between the customer and the worker.

The element of program, project or phase was mandatory according to article 69 of Legislative

Decree n. 276/2003. In case of its absence, the agreement was immediately transformed in a standard

employment contract.

(11) See S. LEONARDI, Il lavoro coordinato e continuativo: profili giuridici e aspetti problematici, in Rivista giuridica del lavoro e della previdenza sociale, 1999, 1, p. 532-533. (12) This problem was concerning, in particular, workers providing their services for only one customer, as indicated by S. LEONARDI, Il lavoro coordinato e continuativo: profili giuridici e aspetti problematici, op. cit., p. 533 ff. (13) See, inter alia, E. GHERA, Sul lavoro a progetto, in Rivista italiana di diritto del lavoro, 2005, 1, p. 196-197.

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Notwithstanding, after the introduction of project-based work, different problems in

interpretation and application of the rules provided by articles 61 ff. of Legislative Decree n. 276/2003

arose. The main issue was referred to the definition of project, program or phase, that was not

sufficiently detailed to avoid an abusive utilization of the new agreement and an increase of judicial

proceedings referred to the correct interpretation of the rules set forth by articles 61 ff. of Legislative

Decree n. 276/2003.

In addition, the requirement of a coordinated performance, indicated also by article 61 of

Legislative Decree n. 276/2003, needs to be analysed in the light of the element of project, program or

phase (14). Coordination, in fact, implies that the activity indicated as the program is determined by the

customer, but has to be realized only by the worker and granting him with the possibility to

autonomously decide the time to be devoted to work.

Article 61, paragraphs 2 and 3, concerned a list of work relationships expressly exempted to the

application of project-based work. The exempted relationships were, inter alia, agency and

distribution, occasional performances and activities carried on by workers inscribed to a professional

association (15).

Article 62 regulated the form of the analysed agreement. In particular, the legislator indicated the

written form as mandatory. Notwithstanding, article 62 did not specified whether the form was

required ad substantiam or ad probationem. This issue lead to a wide debate between scholars,

concluded with a preponderance of the opinion in favour of the written form ad probationem. This

opinion has been confirmed, afterwards, also by the Government (16) and by case law (17).

Another relevant rule introduced by the Legislative Decree n. 276/2003 with reference to

project-based work was article 69. This norm indicated as its object «prohibition of atypical employer-

coordinated freelance work agreements and conversion of the agreement». Article 69.1 sets forth the

sanction applicable whether the project, program or phase would not be expressly indicated in the

(14) About the distinction between the elements of project, program of phase, see G. SANTORO PASSARELLI, La nuova figura del lavoro a progetto, in Argomenti di diritto del lavoro, 2005, p. 103-105; for a different point of view, E. GHERA, Sul lavoro a progetto, op. cit., p. 203 and V. NUZZO, Le collaborazioni coordinate e continuative. Una lunga storia, in Giornale di diritto del lavoro e di relazioni industriali , 106, 2005, p. 270. In particular, as to the distinction between project and phase, see M. MAGNANI, Autonomia, subordinazione, coordinazione nel gioco delle presunzioni, in Argomenti di diritto del lavoro, 2013, 4-5, I, p. 804 and, with reference to the case law, see Trib. Piacenza, 15 February 2005, in Il lavoro nella giurisprudenza, 2006, p. 885 ff.; Trib. Torino, 10 May 2006, in Orientamenti della giurisprudenza del lavoro, 2006, p. 344 ff.; Trib. Milano, 18 January 2007, in Orientamenti della giurisprudenza del lavoro, 2007, p. 246 ff.; Trib. Milano, 5 February 2007, in Rivista italiana di diritto del lavoro, 2, 2007, p. 809 ff. and App. Firenze, 29 January 2008, in Massimario di giurisprudenza del lavoro, 2008, p. 758 ff. (15) With reference to a critical approach to numerous exemptions to the application of project-based work, see V. NUZZO, Le collaborazioni coordinate continuative. Una lunga storia, op. cit. p. 280-281. (16) See MINISTERO DEL LAVORO E DELLE POLITICHE SOCIALI, Circolare n. 1/2014, issued on 14 January 2014, prot. n. 5/25011/M/LAV.PR, p. 4. (17) See, inter alia, Trib. Torino 17 May 2006, in Rivista giuridica del lavoro e della previdenza sociale, 2007, 1, II, p. 52 ff., nt. FONTANA, Trib. Ravenna 25 October 2005, in Giustizia civile, 2006, 7-8, I, 1605 ff., nt. EMANUELE and Trib. Torino 5 April 2005, in Il lavoro nella giurisprudenza, 2005, p. 651 ff, nt. FILÌ .

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agreement between customer and worker. In this case, the agreement was converted in a standard

employment agreement regulated by article 2094 c.c.

According to Article 69.2, in addition, the Court which ascertained that the working relationship,

formally qualified as a project-based work, was instead carried on as a standard dependent labour

agreement, would have to convert the agreement in the relationship in concreto present between the

parties, selecting the correct kind of discipline set forth by Italian legal framework. Article 69.3,

finally, was intended to prevent the Courts to put in discussion, while verifying the eventual abuse in

using of project-based work, the technical and organizational decisions taken by the customer (18).

In the light of above, is possible to affirm that, in general, the project-based work introduced by

the Italian legislator in 2003 was an attempt to increase the protection of this kind of autonomous

workers, even if some critical aspects remained. As to this point, is possible to make reference to

article 67.2, which allowed the parties to individuate new conditions for dismissal, without just cause,

only expressly indicating them in the agreement (19); another element could be, also, the persisting

absence, in the Italian legal framework, of a legislation providing sufficient rights and guarantees to

collaborators, in order to allow them to exercise rights of freedom of thought, freedom of speech, of

protection of privacy and preventing hidden controls on the worker (20).

The regulation of project-based work of 2003 lead, in any case, to a relevant number of

interpretative problems. In addition, the definition of program, process of phase appeared too wide,

and allowed some distortions and abusive utilisation of the project-based work (21). Therefore, the

legislator attempted to reform the project-based work, fort the first time, in 2012.

2.3. Efforts to reform project-based work

Law n. 92/2012 amended the definition of project-based work, its discipline and the system of

sanctions connected to an illegal utilisation of this work agreement, in order to reinforce its function of

contrast against abuse of precarious working relationships (22).

Article 1.23 of Law n. 92/2012 removed from article 61.1 of Legislative Decree n. 276/2003 the

wording «one or more programs or phases of them». This element was substituted by the requirement

to indicate, in the regulation of the working relationship, one or more specific projects, functionally

(18) With reference to the possibility, in any case, for the Courts, to evaluate the behaviour of the parties after the execution of the agreement, see G. SANTORO PASSARELLI, La nuova figura del lavoro a progetto, op. cit., p. 109-110. (19) See V. NUZZO, Le collaborazioni coordinate continuative. Una lunga storia, op. cit., p. 276 ff. (20) Ibidem. (21) See M. MAGNANI, Autonomia, subordinazione, coordinazione nel gioco delle presunzioni, op. cit., p. 803-804, and A. PERULLI, Lavori atipici e parasubordinazione tra diritto europeo e situazione italiana, in Rivista giuridica del lavoro e della previdenza sociale, 2006, file 4, p. 739. (22) See E. GHERA, Il contratto di lavoro oggi: flessibilità e crisi economica, in Giornale di diritto del lavoro e di relazioni industriali, 2013, 4, 140, p. 693-695.

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linked to a final result to be evaluated without considering the time spent, by the collaborator, to

realize the required activity. However, this amendment seemed to be directed, again, to modify the

description of the element of project, and appeared as not sufficient to simplify the distinction of this

kind of working relationship from standard dependent work.

Furthermore, Law n. 92/2012 attempted to reinforce the instruments to allow the worker to be

protected against abuses in utilisation of project-based work.

Article 61 of Legislative Decree n. 276/2003 was modified by the introduction of a list of

elements that excluded the correct utilisation of a project-based work agreement. These elements were

in particular: the correspondence between the project and the business purpose of the customer’s

company and the indication, as the object of the agreement, only of repetitive and executive tasks (23).

Article 69 of Legislative Decree n. 276/2003 was amended with the aim to reinforce the

presumption of dependent work in case the employer-coordinated freelance work agreement is

«executed without indicating a specific project». The project was also defined, by law, as an «essential

element in relation to the validity of the agreement». This amendment produced, as an effect, that in

case the parties did not indicated, executing the aforementioned agreement, a project, or they did not

describe it in a sufficiently detailed way, the worker would have been considered as an employee from

the beginning of the relationship.

In addition, article 69 bis of Legislative Decree n. 276/2003, introduced by Law n. 92/2012,

regulated for the first time in Italy the matter referred to the economic dependence of an autonomous

worker. In particular, the abovementioned reform set forth that a formally autonomous worker would

have been considered an employer-coordinated freelance worker, save contrary evidence, whether in

concreto would be present at least two of the following elements: a) a length of the cooperation

agreement with the same customer exceeding eight months per year, for at least two consecutive years;

b) a total revenue deriving from the collaboration sub a) corresponding to an amount exceeding 80%

of the total income of the worker per year, for two consecutive years (24); c) the possibility, for the

worker, to dispose of a stable workstation at the premises of the customer.

In case at least two of the conditions sub a)-c) were present in an autonomous work relationship,

according to article 69 bis of Legislative Decree n. 276/2003 the whole system of rules regulating the

project-based work was applicable. Therefore, in reason of the provisions examined above, whether an

independent work agreement, subject to the legal framework of the project-based work agreement

according to article 69 bis of Legislative Decree n. 276/2003, did not expressly indicate in the text of

the agreement the project or its details, article 69 of Legislative Decree n. 276/2003 would have

(23) Ibidem. (24) As prescribed by article 69 bis of Legislative Decree n. 276/2003, the rule sub b) is applicable even if the income of the worker is paid by different subjects, corresponding to the same centre of imputation.

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determined the conversion of the work relationship in a dependent work agreement regulated by article

2094 c.c. (25).

With reference to the aforementioned article 69 bis, is important to focus on the particular

technique employed by the legislator: in case two or three of the elements listed by the article were

materially present in the relation between the independent worker and the customer, the working

relationship would not be converted in a project-based work, but only the system of rules of the

project-based work would be applied to the agreement. The reason to recur to this technique is likely

connected with the need not to violate the constitutional principle of “indisponibilità del tipo”, that

does not allow, in Italian legal framework, the legislator to affirm that a particular kind of agreement

has to be regulated as a different one only because this is the prescription of law (26).

In 2013, with the Law Decree n. 76, the legislator modified again the rules regulating project-

based work, mainly with reference to the proceeding to validate resignations of the worker and to the

solidarity between contractor and subcontractor when project-based workers are utilized in the

framework of a tender.

The balance of the amendment to the discipline of project-based work dated 2012-2013,

however, has not been positive. The reforms increased the rigidity of the system of rules referred to

this kind of agreement, with the aim to prevent abuses, but the rates of unemployment, and in

particular of young unemployment, remained high until 2014-2015 and, therefore, the legislator

determined itself to enact a more radical reform of the whole matter.

3. The innovations provided by Legislative Decree n. 81/2015

During the years 2014-2015, Italian Government proposed a wide and radical reform to increase

flexibility of Italian labour legislation and of the local labour market (27).

With reference to the efforts against abuse of precarious work, and, in particular, of employer-

coordinated freelance work agreements, the most important innovations are contained in the

Legislative Decree n. 81/2015, enacted on the base of the provisions of Law n. 183/2014.

First of all, article 2 of Legislative Decree n. 81/2015 identifies a new kind of precarious work,

the heter-organized collaboration agreements. To these relationships, that are qualified by the

aforementioned article 2 as «relationships of collaboration corresponding to work activities,

(25) See MINISTERO DEL LAVORO E DELLE POLITICHE SOCIALI , Circolare n. 29/2012, issued on 11 December 2012, prot. n. 37/0223530/MA007.A001, p. 6 ff. (26) See, inter alia, C. Cost., 29 March 1993, n. 121, in Foro Italiano, 1993, I, p. 2432 and Cass., 16 October 2006, n. 22129, in Rivista italiana di diritto del lavoro, 2007, 2, II, p. 283, nt. CATAUDELLA . (27) For a general overview on the Jobs Act, see, inter alia, M.T. CARINCI – A. TURSI, Jobs Act. Il contratto a tutele crescenti, Giappichelli, 2015; M. TIRABOSCHI, Le nuove regole del lavoro dopo il Jobs Act, Giuffré, 2016 and G. ZILIO

GRANDI – M. BIASI, Commentario breve alla riforma «Jobs Act», CEDAM, 2015.

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exclusively personal, continuous and which modalities of execution are organized by the customer

also with reference to times and place of work», save exceptions, is applied the system of rules of

dependent work.

Furthermore, article 52.1 of the Legislative Decree n. 81/2015 expressly abrogates the rules

concerning project-based work, i.e. articles 61-69 bis of Legislative Decree n. 81/2015, while article

52.2 (28) of the same norm exempt from abrogation article 409.3 c.p.c. and, as a consequence, the

employer-coordinated freelance work agreements. This reform by one side removes from the local

legal framework a kind of precarious agreement that did not reduce the unemployment rates in

precedent years and lead to a relevant number of judicial proceedings concerning the interpretation of

the abovementioned rules. To the other side, not amending article 409.3 c.p.c.., to be read in

connection with article 2 of Legislative Decree n. 81/2015, the reform maintains, in Italian legislation,

the employer-coordinated freelance work agreements. In particular, employer-coordinated freelance

work agreements that are not technically heter-organized according to relevant law, may be executed

and valid between a worker and a customer (29). This is a moving back on the side of protections of

similar workers, from the period in which the norms regulating project-based work were in force (30).

Finally, article 54 of the Legislative Decree n. 81/2015 encouraged employers to execute new

standard employment agreements with people already working for them as autonomous workers,

employer-coordinated freelances or project-ased workers, from the 1 January 2016. To reach this

purpose, the legislator sets forth that hire workers already part of the aforementioned agreements

would lead the employer to benefice of the extinction of all administrative, contributory, fiscal

infractions referred to the wrong qualification of the working relationship, except for infractions

ascertained on the base of inspections conducted by competent Authorities before the date of

execution of the new employment agreement.

To reach the aim of article 54 of the Legislative Decree n. 81/2015, two conditions have to be

respected: a) workers to be hired as employees will have to subscribe, with reference to any possible

claim referred to the qualification of the previous relationship with the employers, specific settlements

before the bodies recalled by article 2113 c.c. or before the certification commissions; and b) in the

twelve months following the hiring of the worker as employee, the counterparty may terminate the

agreement only for just cause or for personal misconduct of the worker (31).

(28) Article 52.1 of Legislative Decree n. 81/2015 sets forth that: “The provision of article 409 c.p.c. is not amended” . Italian version: “Resta salvo quanto disposto dall'articolo 409 del codice di procedura civile”. (29) See G. SANTORO PASSARELLI, I rapporti di collaborazione organizzati dal committente, op. cit., p. 8-10. (30) Ibidem. (31) In particular, for a more specifical analysis of the criteria set forth by legislator in article 54 of the Legislative Decree n. 81/2015, see G. SANTORO PASSARELLI, I rapporti di collaborazione organizzati dal committente, op. cit., p. 24-25.

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The effectiveness of Article 54 of the Legislative Decree n. 81/2015 has been enhanced by the

three-year reduction of social security costs for employers that hired a worker with an agreement

without term in 2015. This reduction has been maintained, even if reduced, also for employees hired

without term in 2016 (32).

The general effects connected to the abovementioned reform are, from the point of view of

Government, to encourage employers to hire dependants as employees instead of searching a different

precarious agreement and in particular agreements concerning different kinds of

independent/precarious work. Therefore, the purpose of the legislator seems to be a return to a clear

division between the two main domains of autonomous and dependant work, reducing the spaces for

third ways only to employer-coordinated freelance work agreements not heter-organized.

4. In particular: the heter-organized work and the reallocation of risk

As concerns the efforts against false independent work, one of the most relevant innovations

provided by Legislative Decree n. 81/2015 (33) is the new definition of heter-organized work.

This reform, introduced by article 2, is part of the mechanism to lay down a better protection to

precarious workers, and in particular to workers who are formally classified as autonomous but, in

concreto, are subject, as employees, to the pervasive powers of the employer.

With reference to above, article 2.1 sets forth, from 1 January 2016, that the collaboration

agreements where the performance of the worker is totally personal, continuous, and organized by the

(32) A first attempt in this direction was made in 2012, when article 4 of Law n. 92/2012 provided for a reduction of 50% of social security costs paid by employers who hired dependent workers at least 50 years old, or unemployed for more than 12 months or women in particular conditions of long term unemployment indicated by law. The most important cut of social security costs for employers is, however, dated 2014. With article 1, paragraphs 118-124, of Law n. 190/2014, so called “Legge di Stabilità 2015”, the legislator sets forth an exemption to social security costs to be paid by the private employers, until an amount of 8,060.00 Euro per year, for 36 months, for each worker hired with an employment agreement without term in the period between 1 January 2015 and 31 December 2015. For year 2016, Law n. 208 of 2015 reduced the incentive to a cut of social security costs for each new hired worker of 40% of the sums to be paid by the employer, for a maximum of 3,250.00 Euro per year, for a period of 24 months. With reference to above see, inter alia, M. CINELLI – C.A. NICOLINI, Verso l'attuazione del Jobs Act - La legge di stabilità per il 2015 e i discutibili interventi sulle pensioni già liquidate, in Rivista italiana di diritto del lavoro, 2015, I, p. 31 ff.; M. CORTI – A. SARTORI, Contratto a tutele crescenti e incentivi alle assunzioni: riparte l'Italia?, in Rivista italiana di diritto del lavoro, 2015, II, p. 105 ff. and G. V ITALETTI , La legge di stabilità 2015: effetti positivi e mancanze strutturali, in Rivista di Diritto finanziario e scienza delle finanze, 2015, I, p. 52 ff.; as to article 54 of Legislative Decree n. 81/2015 see, inter alia, G. FERRARO, Collaborazioni organizzate dal committente, in Rivista italiana di diritto del lavoro, 2016, I, p. 58. (33) For general considerations about the reform of labour agreements enacted with Legislative Decree n. 81/2015 see, inter alia, T. TREU, Il riordino dei tipi contrattuali, in Giornale di diritto del lavoro e di relazioni industriali , 2015, 146, p. 155 ff.

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employer also with reference to the time and place of the work activity, are subject to the system of

rules of dependent work (34) (i.e. articles 2094 ff. c.c.).

Article 2.2 provides for some expressed exceptions to the rule of article 2.1 (35). As to this point,

are not subject to the legal framework of dependent work: a) collaborations that are disciplined by

specific rules of economic treatment contained in collective agreements executed by the trade unions

comparatively more representative at national level, in reason of specific productive and

organizational necessities of a particular commercial field; b) collaborations that request the

inscription of the worker to a professional association; c) collaborations performed by members of

board of directors or board of statutory auditors, and by members of commissions and colleges, while

they are exercising their functions; d) collaborations performed for different sport associations or

organizations at the conditions set forth by Italian law.

In addition, article 2.3 of Legislative Decree n. 81/2015 allows the parties to appear before

certification commissions (36) to certify the absence of the elements indicated in article 2.1 (i.e. that the

performance is not totally personal, continuous and organized by the employer also with reference to

the time and place of the work activity) in order to exclude the possibility to apply, to the certified

collaboration agreements, the legal framework of dependent work. In particular, the certification

reduces the possibility for the parties to file a claim referred to the labour agreement. As to article 30.2

of Law n. 183 of 2010, in fact, the Court could intervene on a certified labour agreement only in case

of wrong qualification of the agreement, defect of consent, or not correspondence between the

contractual program and its concrete application; while article 30.3 of the same norm sets forth that, in

case of dismissal, the competent Court will have to take into account the additional cases of just cause

and personal misconduct of the worker indicated in certified relevant labour agreements.

Finally, article 2.4 of Legislative Decree n. 81/2015 provides that the norm is applicable only to

the private sector, until the legislator will have enacted the announced general reform of regulation of

precarious work concerning the Public Administration.

(34) See G. SANTORO PASSARELLI, I rapporti di collaborazione organizzati dal committente, op. cit., p. 14 ff.; with reference to a detailed description of the three elements of heter-organization, see MINISTERO DEL LAVORO E DELLE

POLITICHE SOCIALI, Circolare n. 3/2016, issued on 1 February 2016, prot. n. 37/0001886/MA007.A002.1474, p. 3. (35) About exemptions, their implication and consequences, see L. IMBERTI, L’eccezione è la regola?! Gli accordi collettivi in deroga alla disciplina delle collaborazioni organizzate dal committente, in Diritto delle relazioni industriali, 2016, 2, p. 393 ff. (36) Certification commissions are part of the certification procedure, regulated by art. 75 ff. of Legislative Decree n. 276/2013. The certification procedure is a voluntary procedure that the parties may trigger proposing a request to the certification commission in order to ascertain the qualification of the labour agreement and to clarify nature and characteristics of the kind of agreement adopted. Law n. 183 of 2010 devoted to the certification commission new functions, i.e. ascertain the real consent of the parties to insert single clauses on a labour agreement, indicate in detail particular behaviours relevant in a dismissal proceeding for just cause or for personal misconduct of the worker, certify the consent of the parties to introduce in the labour agreement an arbitration clause in respect of provisions of Italian law.

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The introduction of the heter-organized work raised some theoretical and practical questions.

First of all, the problem faced by Italian doctrine concerns how to classify heter-organized work.

As to this point, different theories have been proposed.

The first one considers heter-organization as a particular kind of working relationship, different

from dependent and independent work (37).

Another orientation suggests that article 2 of Legislative Decree n. 81/2015 would have modified

the definition of standard employment agreement contained in art. 2094 c.c., including in this

definition not only the work relationships heter-directed by the employer, but also heter-organized by

the customer.

Finally, the third interpretation suggested by scholars intends article 2 of Legislative Decree n.

81/2015 as a reform that enacted the most widespread criteria to identify subordination already

elaborated by Courts. The purpose of the rule would be, therefore, to introduce a relative presumption

that could lead to application of the legal framework of dependent work to the abovementioned

relationships. The counterparty could oppose the effects of this presumption by proving the contrary,

in the light of articles 2727 ff. c.c.

With reference to above, the attempt to qualify heter-organized work as an autonomous category

of working relationships has been criticized because article 2 of Legislative Decree n. 81/2015 seems

to represent not the whole new regulation of a kind of particular and specific labour relationship but,

rather, the description of a specific method to perform an ordinary working activity. Therefore, the

partial and not all-encompassing discipline set forth by article 2 suggests that heter-organization

cannot be qualified as the new regulation of a third category of working relationships, to be added to

dependent and independent work (38).

On the other hand, also the theory which connects introduction of article 2 of Legislative Decree

n. 81/2015 to an attempt to modify art. 2094 (39) c.c., and so the definition of standard employment

agreement, does not seem fruitful. As to this point, first of all, is important to underline that the

legislator has not amended article 2094 c.c. In addition, moreover than modify art. 2094 c.c., Italian

(37) See, inter alia, P. ICHINO, Il lavoro parasubordinato organizzato dal committente, http://www.pietroichino.it/?p=36980 (last consultation 11 June 2016) and A. ZOPPOLI, La collaborazione eterorganizzata: fattispecie e disciplina, in W.P. C.S.D.L.E. «M. D'Antona», Italian section, n. 296/2016, p. 20 ff. (38) See M. TIRABOSCHI, Il lavoro etero-organizzato, in Giornale di diritto del lavoro e di relazioni industriali, 2015, 4, p. 980 ff. (39) As to scholars that consider art. 2 of Legislative Decree n. 81/2015 an absolute presumption of dependent work and, therefore, an attempt de facto to enlarge the field of art. 2094 c.c., see L. NOGLER, La subordinazione nel d.lgs. n. 81 del 2015: alla ricerca dell’«autorità dal punto di vista giuridico», in W.P. C.S.D.L.E. «M. D'Antona», Italian section, n. 267/2015, p. 16 ff.; for a similar interpretation, assuming article 2 of Legislative Decree n. 81/2015 as an “additive” kind of dependent work to be placed near art. 2094 c.c. with an extensive aim, see G. FERRARO, Collaborazioni organizzate dal committente, op. cit., p. 62 ss.

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Government appear to have chosen to open the access to dependent work to a relevant number of

people previously employed by mean of precarious contracts. To support this point of view, is possible

to recall the attempts of the Italian Government, from 2012, to reduce the costs connected to a standard

employment agreement, with: reform and simplification of dismissals, temporary reduction of social

security costs for employers hiring dependent workers (40) and the modification of article 2103 c.c. in

relation to professional deskilling (41).

In the light of above, the most persuasive interpretation of the reform enacted by the

Government with article 2 of Legislative Decree n. 81/2015 seems to be the one considering it as a

transposition in law of some of the common index utilized by judges to qualify a work agreement as a

dependent relationship (42). Consequently, article 2094 c.c. is not modified by the legislator, and the

core of the definition of dependent work remains the powers of heter-direction bestowed to the

employer; nonetheless, the legislator lays down some criteria to extend the application of the legal

framework of dependent work, and respective rights and protections, to a category of work

relationships – the heter-directed work of article 2 of Legislative Decree n. 81/2015 – which does not

fall directly into the field traced by the definition of dependent work enacted by the aforementioned

article 2094 (43) c.c.

Irrespective of the classifications made by Italian scholars, with article 2 of Legislative Decree n.

81/2015 the legislator appears to intend to simplify local labour market and to extend the area of

dependent work also to of the field of heter-organization. In this way, it seems that the Government is

attempting to reduce the area of autonomous work only to the “genuine” independent work

relationship, with an action that would be inspired to the contrast of abuse of false independent work

(44).

From a practical and applicative point of view, in any case, the most relevant issue remains the

distinction between heter-organized work and “genuine” employer-coordinated freelance work

agreements.

(40) See footnote n. 32. (41) See F. AIELLO, Il nuovo art. 2103 c.c.: equivalenza senza professionalità pregressa?, in Il lavoro nella giurisprudenza , 2015, 11, p. 1034 ff.; U. GARGIULO, Lo “ius variandi” nel nuovo art. 2103 cod. civ., in Rivista giuridica del lavoro e della previdenza sociale, 2015, 3, p. 619 ff. and V. NUZZO, Il nuovo art. 2103 c.c. e la (non più necessaria) equivalenza professionale delle mansioni, in Rivista italiana di diritto del lavoro, 2015, 4, p. 1047 ff. (42) As to indexes utilized by Italian Courts to qualify a working relationship in the category of dependent work see, inter alia, Cass. 16 December 2013, n. 28025, not in print at this moment; Trib. Milano 21 July 2014, in Il lavoro nella giurisprudenza, 2015, p. 97 ff. and Trib. Foggia 8 January 2014, in Il lavoro nella giurisprudenza, 2014, p. 719 ff. (43) See G. SANTORO PASSARELLI, I rapporti di collaborazione organizzati dal committente, op. cit., p. 16-17 and M.

TIRABOSCHI, Il lavoro etero-organizzato, op. cit., p. 985 ff.; it seems to share this opinion also MINISTERO DEL LAVORO E

DELLE POLITICHE SOCIALI, Circolare n. 3/2016, issued on 1 February 2016, prot. n. 37/0001886/MA007.A002.1474, p. 1 ff. (44) See L. IMBERTI, L’eccezione è la regola?! Gli accordi collettivi in deroga alla disciplina delle collaborazioni organizzate dal committente, op. cit., p. 393 ff.

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As indicated above, the main difference between heter-organized work and employer-

coordinated freelance work agreements seems to be that in the first relationship the employer, once the

labour agreement is executed, is allowed to determine one-sidedly time and place in which the

performance of the worker has to be done while, in the field of employer-coordinated freelance work

agreements, the parties will have to agree, from an equal position, about the conditions in which the

activity has to be performed. In substance, heter-organized work allows the employer to exercise a

unilateral power on the worker that is not permitted, on the contrary, in the field of collaborations and

of autonomous work.

On the other hand, also employer-coordinated freelance work agreements, in general, require an

introduction of the collaborator in the organizational structure, and sometimes to the premises, of the

customer. So that, likely, the collaborator will have to conform time and place of his performance to

the customer’s organizational structure, in order to be coordinated with customer’s requirements (45).

Therefore, when, from a theoretical point of view, the border between heter-organized work and

employer-coordinated freelance work is clear, on the side of a practical prospective the distinction

seems to be difficult, with the risk of a high number of claims before the Courts to determine whether

the activity of the worker has or not to be subject to the legal framework of dependent work.

Finally, is possible to say that, with the reform of article 2 of Legislative Decree n. 81/2015,

considered in the large landscape of the package of modifications to Italian labour legislation provided

by the Jobs Act, the legislator seems to have intended to provide for a reallocation of risk adequate to

move employers towards the field of dependent work.

However, this reallocation of risk does not entail a transfer of entrepreneurial risk from the

employer to the worker but, from a different point of view, makes more useful and profitable for an

employer to hire a standard dependent worker than trying to abuse of precarious work.

In fact, before the years 2014-2015 an employer was encouraged to abuse of precarious work, in

place of “genuine” dependent work, in order to “escape from risks” of the standard labour

relationships regulated by articles 2094 ff. c.c., i.e. a discipline of layoffs strongly protecting the

worker and the relevant social security contributions to be paid by the company.

Nowadays, the recent reform mentioned above has simplified the framework, removed the

difficulties, heavily reduced the costs to dismiss an employee, and lowered, even if temporary, the

social security contributions to be paid by the employer.

(45) See G. SANTORO PASSARELLI, I rapporti di collaborazione organizzati dal committente, op. cit., p. 18 ff.

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In addition, the project-based work has been removed from Italian legal framework, while heter-

organized work is an instrument that could discourage companies to execute collaboration agreement

instead of hire dependent workers. In fact, the new legal institute simplifies the burden of proof of the

employees in order to obtain a requalification of their work relationship.

All the aforementioned conditions seem to press the employers, in reason of reduced costs and

risks, to hire workers as employees instead of trying an abusive utilization of independent workers to

obtain advantages in term of costs that are, nowadays, clearly reduced.

In conclusion, also with reform enacted by article 2 of Legislative Decree n. 81/2015, the

legislator appears to have realised a particular reallocation of risks and benefits for employers,

reducing the difficulties connected to hire dependent workers: standard dependent work agreements

are becoming more convenient than abusive utilization of independent work.

Is now important to analyse statistical data on occupational levels in Italy from January 2015 to

June 2016, in order to see whether the attempt of the legislator produced the desired effects.

5. The effects of introduction of heter-organized work on Italian occupational levels

The reform enacted with article 2 of Legislative Decree n. 81/2015 is, as indicated above, part of

the framework of innovations approved by the legislator to increase the flexibility of the labour market

and the occupational levels after the economic crisis started in 2008.

Therefore, in order to analyse statistics on occupation in Italy after the introduction of heter-

organization (46), is important to consider some relevant factors.

First of all, the reform contained in the aforementioned article 2 is in force from 25 June 2015

(47); for this reason, its first effects may be evident only after the second trimester of the last year.

In addition, the evolution of Italian labour market is produced by the complex of innovations

provided by the Jobs Act (i.e. simplification of dismissals, temporary reduction of social security costs

for employers hiring workers with agreements without term, heter-organization, incentives to

(46) On this topic see, inter alia, B. ANASTASIA, Sguardo lungo sul mercato del lavoro, http://www.lavoce.info/archives/40854/come-va-loccupazione-unanalisi-di-medio-periodo, published on 3 May 2016 (last consultation on 11 June 2016); B. ANASTASIA, Il 2015 dell’occupazione, http://www.lavoce.info/archives/39157/il-2015-delloccupazione, published on 23 December 2015, (last consultation on 11 June 2016); P. GARIBALDI , Meno precari, ma la crescita è ancora un problema, http://www.lavoce.info/archives/39762/meno-precari-ma-la-crescita-e-ancora-un-problema/, published on 16 February 2016 (last consultation on 11 June 2016); A. CERRATO – F. CHIOCCHINO – M. FELICI

et al., Com’è cambiato il mercato del lavoro dopo il Jobs Act, http://www.lavoce.info/archives/39391/come-cambia-il-mercato-del-lavoro-dopo-il-jobs-act/, published on 22 January 2016 (last consultation on 11 June 2016). (47) The Legislative Decree n. 81/2015 has been published on the Official Gazette of the Italian Republic on 24 June 2015 and, as indicated by its article 57.1, it enters into force the day following the one of publication.

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transform employer-coordinated freelance work agreements into dependent labour agreements etc.)

and not only by article 2 of Legislative Decree n. 81/2015.

Finally, to highlight the impact of heter-organization will be necessary to focus the attention on

the occupational levels concerning one of the most widespread examples of abuse of independent

work: employer-coordinated freelances (i.e., the collaborators) and independent workers without

employees.

In principle is important to underline that Italian labour market seems to be, from 2015, in a

phase of very light expansion.

As affirmed by the Istituto Nazionale di Statistica (hereinafter, ISTAT), during the third

trimester of 2015 the national GDP increased of 0.8% (48) if compared with the GPD of the third

semester of 2014; the augmentation has been confirmed during the fourth semester of 2015 (49) and the

first semester of 2016 (50), with an increase of about 1%.

The improvement of economic situation has determined a feeble increasing of occupation, which

augment of 0.1% (about 32,000 people) in the period August-October 2015, if compared with the

previous trimester, and remained stable in the fourth trimester of 2015 and in the first trimester of

2016. At the end of march 2016 the augmentation of occupied workers in respect of march 2015 has

been of about 242,000 people. The driving kind of agreement was dependent work without term, with

an annual increase of 341,000 people. Employees hired with term contracts in this period remained

stable, while employer-coordinated freelances and autonomous workers without dependents decreased.

These data are confirmed also by information collected by the Istituto Nazionale della Previdenza

Sociale (hereinafter, INPS), which does not consider stock of employed/unemployed people divided

by sector or kind of agreement, but the general number of new dependent agreement executed in a

particular period of time (51).

(48) See ISTAT, Il mercato del lavoro, IIIrd trimester of 2015, http://www.istat.it/it/files/2015/12/Mercato-del-lavoro-III-trim-2015.pdf?title=Il+mercato+del+lavoro+-+11%2Fdic%2F2015+-+Testo+integrale+e+nota+metodologica.pdf, published on 11 December 2015, p. 1, (last consultation on 11 June 2016). (49) See ISTAT, Il mercato del lavoro, IVth trimester of 2015, http://www.istat.it/it/files/2016/03/Mercato-del-lavoro-IV-trim-2015.pdf?title=Il+mercato+del+lavoro+-+10%2Fmar%2F2016+-+Testo+integrale+e+nota+metodologica.pdf, published on 10 March 2016, p. 1 (last consultation on 11 June 2016). (50) See ISTAT, Il mercato del lavoro, Ist trimester of 2016, http://www.istat.it/it/files/2016/06/Mercato-del-lavoro-I-trim.pdf?title=Il+mercato+del+lavoro+-+09%2Fgiu%2F2016+-+Testo+integrale+e+nota+metodologica.pdf, published on 9 June 2016, p. 1 (last consultation on 11 June 2016). (51) For this reason, as indicated by INPS itself, the data collected by this institution and ISTAT seem different. In particular, a single employed worker for ISTAT may be counted as more than one employed worker for INPS, because he could have executed more than one new employment agreement during the analysed period of time.

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As indicated by INPS, in September 2015 the total number of new employment agreements

executed in respect of January 2015, deducted layoffs, was of 599,178 (52), most of them,

corresponding to 340,323 people, without term (53).

At the end of 2015, the general number of new labour agreements executed by private

employers, layoffs excluded, has been of 5,408,904, +11% in respect of 2014, +15% if compared with

2013 (54). The number of dependent agreements without term executed on the total amount

aforementioned is of 41%, in respect to 32% of 2014 (55).

During the first trimester of 2016, 1,189,000 people have been hired as dependent workers, with

a reduction of 176,000 people, equal to 12.5%, in respect of the first trimester of 2015 (56). This

consequence descends basically from the reduction of incentives connected to employers’ social

security costs for 2016 (57). The difference between hired and dismissed employees is still, in any case,

positive, and corresponds to 241,000 people.

With reference to the main goal of this paper, the number of independent workers in general

decreased during the period following the introduction of Jobs Act.

In particular, autonomous workers were, at the end of first trimester of 2015, substantially stable,

in a number equal about to 5,538,000, with an augmentation of 25,000 people from the first trimester

of 2014, corresponding to +0.5%. Among them, collaborators were 373,000 people, with an

augmentation of 2,000 workers in respect of first trimester of 2014, equal to +0.7% (58).

The situation changed from the second trimester of 2015, after the introduction of the first

innovations of Jobs Act, and in particular of reduction of social security costs for employers hiring

employees, and before the introduction of the reform enacted in article 2 of Legislative Decree n.

81/2015.

(52) In particular, from January to September 2015, the total number of new labour agreements executed in Italy has been of 4,094,061, while the labour agreements interrupted during the same period have been 3.494.883, see INPS, Osservatorio sul precariato, Gennaio – Settembre 2015, p. 4, http://www.inps.it/docallegati/DatiEBilanci/osservatori/Documents/Osservatorio_Precariato_Gen_Set_15.pdf, p. 4 (last consultation on 11 June 2016). (53) Ibidem. (54) See INPS, Osservatorio sul precariato, Gennaio – Dicembre 2015, p. 4, http://www.inps.it/docallegati/DatiEBilanci/osservatori/Documents/Osservatorio_Precariato_Gen-Dic.pdf, p. 4 (last consultation on 11 June 2016). (55) Ibidem. (56) See INPS, Osservatorio sul precariato, Gennaio – Marzo 2016, p. 4, http://www.inps.it/docallegati/DatiEBilanci/osservatori/Documents/Osservatorio_Precariato-Gen-Mar_2016.pdf, p. 4 (last consultation on 11 June 2016). (57) See footnote n. 32. (58) See ISTAT, Occupati e disoccupati, http://www.istat.it/it/files/2015/06/Occupati-e-disoccupati_3_giugno_2015.pdf? title=Occupati+e+disoccupati+%28trimestrali%29+-+03%2Fgiu%2F2015+-+Testo+integrale.pdf, published on 3 June 2015, p. 8 (last consultation on 11 June 2016).

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In fact, in the second trimester of 2015, independent workers were about 5,507,000, with a light

overall reduction of 3,000 workers, corresponding to -0.1%, in respect of the same period of 2014 (59).

However, this stability was the product of an augmentation of autonomous workers with their own

organization and a relevant decrease of collaborators, equal about to 45,000 people, corresponding to -

11.4% in respect of the same period of 2014.

After the introduction of article 2 about heter-organization, the trend has been confirmed.

At the end of third trimester of 2015 independent workers were about 5,461,000, with an overall

augmentation of 5,000 people, corresponding to +0.1% if compared to values of 2014. Instead of it,

collaborators, which are part of the autonomous workers, decreased of 26,000 people, corresponding

to -7.1% (60).

From September 2015, the reduction of collaborators and autonomous workers without

dependents accelerated.

During the last trimester of 2015 autonomous workers decreased to the number about of

5,403,000 people, with a reduction in respect of the same period of 2014 of 114,000 people, equal to -

2.1%. While “genuine” autonomous workers with an organization structure, i.e. with dependants,

increased of 4.8%, a reduction of autonomous workers without employees was registered, for a

number of 132,000 people, equal to -3.5% if compared with 2014. Also more evident was the

decreasing of 49,000 units of collaborators, equal to -13% in respect of 2014 (61).

At the beginning of 2016, when incentives concerning social security costs for employers that

hired new dependents without term has been reduced by Government (62), the aforementioned trend, in

any case, continued.

Autonomous workers decreased of 101,000 units in respect to the first months of 2015, equal to

-1.8%, for an overall amount about of 5,437,000. In particular, the reduction was concentrated, again,

among autonomous workers without dependents (less 66,000 people in respect of 2015, equal to -

1.8%) and, in a more evident way, among collaborators (less 63,000 people in respect of 2015, equal

to -16.8%) (63).

(59) See ISTAT, Il mercato del lavoro, Ist trimester of 2015, published on 15 September 2015, http://www.istat.it/it/files/2015/09/Mercato-del-lavoro.pdf?title=Il+mercato +del+lavoro++-+15%2Fset%2F2015+-+Testo+integrale.pdf, p. 5 (last consultation on 11 June 2016). (60) See ISTAT, Il mercato del lavoro, IIIrd trimester of 2015, op. cit., p. 6 (last consultation on 11 June 2016). (61) See ISTAT, Il mercato del lavoro, IVth trimester of 2015, op. cit., p. 5 (last consultation on 11 June 2016). (62) See footnote n. 32. (63) See ISTAT, Il mercato del lavoro, Ist trimester of 2016, op. cit., p. 6 (last consultation on 11 June 2016).

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The first graphic highlights the evolution of the number of dependent workers without term,

dependent workers with term and independent workers in Italian labour market from the Ist trimester

of 2011 to Ist trimester of 2016 (64).

The second graphic highlights the incidence of different kinds of labour relationship in reference

to young people that enter for the first time in the labour market (65).

The outcome of the data reported above highlights that Jobs Act, at least partially, reached its

main objectives: encourage the overall augmentation of occupied people, supporting the execution of

new employment agreements without term, and discouraging abuse of false independent work.

In particular, is evident the progressive and increasingly reduction of the two typical forms of

false or precarious independent work: autonomous workers without dependents and, basically,

collaborators. This trend started in the first middle of 2015, with the aid of reduction of social security

costs for employers who hired these workers as employees, but clearly accelerated, in particular with

reference to collaborators, from September 2015.

(64) Ibidem, p. 4. (65) Ibiem, p. 17.

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This result, therefore, seems to be a product also of introduction of article 2 of Legislative

Decree n. 81/2015, which lead to dependent work some labour agreements previously qualified as

collaborations, and to the mechanism of incentivisation to convert collaborators in employees set forth

by article 54 of Legislative Decree n. 81/2015.

Jobs Act and heter-organization, at this moment, appear to have reached the goal to contrast and

reduce the abuse of false independent work. Notwithstanding, some scholars have already underlined

that the next turning point for Italian labour market will be in 2018, when the first tranche of

incentives concerning social security costs of employers will cease. It is not clear, in fact, whether

investments on new employees done before 2018, and the new organizational structure arose on the

base of the new employment agreements executed in these years, will lead employers to continue the

trend started in 2015 or, on the contrary, also with the aid of the simplification of the rules about

dismissals, from 2018 Italian labour market will come back to the difficult situation preceding the

reform of 2014-2015 (66).

6. Implications of heter-organized work with reference to new issues concerning

sharing economy

In the analysis of the innovations provided by the Jobs Act and, in particular, by Legislative

Decree n. 81/2015, seems to be appropriate to evaluate the possible implications between heter-

organized work and the spreading phenomenon of sharing economy and job on-demand.

With reference to above, in this case is relevant the new shape of work agreement that it is

conveying in our juridical framework.

The reference is made to the diffusion of on-line platforms where demand and offer of work can

meet without the direct intermediation of an employer or of any third party.

This new condition may be, as highlighted by numerous scholars, another occasion for

exploitation of precarious work (67).

Therefore, also jobs deriving from sharing economy may be at the origin of some, well-known,

problems concerning precarious workers’ ordinary life: they might have to face with problems

(66) On this point see also, inter alia, B. ANASTASIA, Quattro scenari per l’occupazione, http://www.lavoce.info/archives/39805/quattro-scenari-per-loccupazione/, published on 19 February 2016 (last consultation on 11 June 2016). (67) See, inter alia, E. DAGNINO, Uber law: prospettive giuslavoristiche sulla sharing-demand economy, in Giornale di diritto del lavoro e di relazioni industriali, 2016, I, p. 137 ff.; B. ROGERS, The social costs of Uber, in The University of Chicago Law Review – The Dialogue, 82, 2015, p. 85 ff. and A. RAVENELLE, Microentrepeneur or precariat? Exploring the sharing economy through the experiences of workers for Airbnb, Taskrabbit, Uber and Kitchensurfing, presented at First International Workshop on the Sharing Economy, Utrecht University, 4-5 June 2015.

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connected with lack of work, discontinue income and difficult to access to health safety and social

security systems, cases of self-exploitation in order not to be penalised by rating automatic systems

controlling the performances of the workers and a pulverizations of labour conditions that could let

become difficult a collective organization of these workers.

In the light of above, part of national and international scholars, according with pronunciation of

administrative authorities, suggests to conduct the work relationships of sharing economy to the area

of dependent work, with the consequent extension of the respective rights and protections (68).

As to heter-organization introduced by article 2 of Legislative Decree n. 81/2015, the goal of the

rule seems to be the same as the one suggested to contrast precarious work deriving from sharing

economy: utilize presumptions to apply the legal framework of dependent work to the relevant

workers.

Even if the aim is the same, nevertheless heter-organized work appears as not sufficient to

contrast the abuse of autonomous workers by new platforms of on-demand economy.

The elements characterizing the aforementioned article 2 are, in fact, a performance exclusively

personal of the worker, a continuous relationship and, last but not least, the possibility for the

employer to indicate to the worker the time and place of its labour activity.

Sometimes these elements are not present in a work performance typical of sharing economy: in

particular, the work activity not always is continuous and, even more, is difficult to sustain that a

platform where offer and demand of work can meet corresponds to an employer who determines time

and place of the worker’s performance.

Therefore, even if the regulative technique seems to be similar of part of the proposals to

contrast abuse of precarious workers by sharing economy, heter-organization appear not to be an

instrument with relevant implication on this matter, save particular and exceptional cases.

7. Conclusions

As to the outcome of the analysis conducted above, heter-organization seems to be a useful tool

to contrast abuse of false independent work, at least in a short term perspective.

As confirmed by statistics of ISTAT and INPS, the introduction of the discipline set forth by

article 2 of Legislative Decree n. 81/2015, in conjunction with other innovations contained in the Jobs

(68) See, as to case-law, the decision of the Department of Economic Opportunity of Florida mentioned in Florida says uber drivers are employees, but FedEx, Other Cases promise long battle, in Forbes, 26 May 2015 and the one of the Inspección de Trabajo de Cataluña, mentioned in Trabajo dice que lo chóferes de Uber son empleados de la firma, in El País, 13 June 2015.

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Act and the very light but persistent economic growth of national GDP, produced an augmentation of

the number of dependent labour agreement, in general without term, with detriment both of

unemployment and also of autonomous workers without their own organization and collaborators, that

are the main sectors in which abuse of false independent work is situated.

Heter-organization, in particular, eases the worker to obtain application of legal framework of

dependent work in some cases of false autonomous work, and therefore represents a mean to

encourage the employers to hire employees without term, because the attempts to “escape” from the

area of dependent work through abuse of precarious work has become less convenient.

The general effect on Italian labour market, at the moment, appears as positive, even if the

effective impact of the reform will be clear only from 2018, when the first tranche of incentives

concerning the aforementioned reduction of employers’ social security costs will cease.

On the other hand, the kind of labour relationship described by article 2 of Legislative Decree n.

81/2015 is different from the ones typical of the spreading sharing and on-demand economy: therefore,

this instrument seems not to be relevant in order to contrast cases of abuse of precarious work

connected with sharing economy, that require a specific and detailed intervention of the local

legislator.

BIBLIOGRAPHY AIELLO F., Il nuovo art. 2103 c.c.: equivalenza senza professionalità pregressa?, in Lavoro nella giurisprudenza, 2015, 11, p. 1034 ff.; ANASTASIA B., Il 2015 dell’occupazione, http://www.lavoce.info/archives/39157/il-2015-delloccupazione, published on 23 December 2015 (last consultation on 11 June 2016); ANASTASIA B., Quattro scenari per l’occupazione, http://www.lavoce.info/archives/39805/quattro-scenari-per-loccupazione/, published on 19 February 2016 (last consultation on 11 June 2016); ANASTASIA B., Sguardo lungo sul mercato del lavoro, http://www.lavoce.info/archives/40854/come-va-loccupazione-unanalisi-di-medio-periodo/, published on 3 May 2016 (last consultation on 11 June 2016); BALLESTRERO M.V., L’ambigua nozione di lavoro subordinato, in Lavoro e diritto, 1987; CARINCI M.T. – TURSI A., Jobs Act. Il contratto a tutele crescenti, Giappichelli, 2015; CERRATO A. – CHIOCCHINO F. – FELICI M. et al., Com’è cambiato il mercato del lavoro dopo il Jobs Act, http://www.lavoce.info/archives/39391/come-cambia-il-mercato-del-lavoro-dopo-il-jobs-act/, published on 22 January 2016 (last consultation on 11 June 2016); CINELLI M. – NICOLINI C.A., Verso l'attuazione del Jobs Act - La legge di stabilità per il 2015 e i discutibili interventi sulle pensioni già liquidate, in Rivista italiana di diritto del lavoro, 2015, I; CORTI M. – SARTORI A., Contratto a tutele crescenti e incentivi alle assunzioni: riparte l'Italia?, in Rivista italiana di diritto del lavoro, 2015, II; DAGNINO E., Uber law: prospettive giuslavoristiche sulla sharing-demand economy, in Giornale di diritto del lavoro e di relazioni industriali, 2016, I;

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8ª edição – Segundo Semestre II-2018

210

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211 8ª edição – Segundo Semestre II-2018

OS IMPACTOS DA CORRUPÇÃO NOS FUNDOS DE PENSÃO∗

AUGUSTO CESAR LEAL GABRIEL FRANCISCO ZACHI ROMEU

GUILHERME OLIVEIRA POUSO GUSTAVO LUZ ROMANO

MATHEUS DOS SANTOS ALVES Graduandos em Ciências Aturarias da UNIFESP

RESUMO: O presente artigo pretende analisar alguns dos impactos de fraudes no

sistema de previdência complementar fechado, o que a legislação diz a respeito e levantar

questões importantes para o futuro da previdência complementar brasileira.

ABSTRACT: The current article intends to analyze some of the impacts of frauds on

the Pension System, what the legislation says about it and bring up important questions about

Brazilian Pension’s future.

Palavras-chave: Previdência Complementar, Fundos de Pensão, fraude, impactos,

regulação, fiscalização, Postalis, Funcef, Petros.

Keywords: Pension System, Pension Funds, fraud, impacts, regulation, inspection,

Postalis, Funcef, Petros.

1. Introdução

O Regime de Previdência Complementar (RPC) apresenta-se como uma das formas de

proteção ao trabalhador brasileiro. Em tese, tem como principal objetivo ajudar os

∗ Artigo recebido em 29/11/2017 - Aprovado em 15/12/2017

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trabalhadores a complementarem seu nível de renda, quando em inatividade ou em situações

adversas como invalidez ou morte. O RPC é composto por dois segmentos: o fechado,

conhecido como Fundos de Pensão e operado pelas Entidades Fechadas de Previdência

Complementar (EFPC), e o aberto, operado pelas Entidades Abertas de Previdência

Complementar. Em ambos, a adesão é facultativa.

As EFPCs, foco deste artigo, atuam sob a forma de fundações de direito privado ou de

sociedade civil e não possuem fins lucrativos, logo, todos os recursos aplicados são revertidos

para o próprio fundo. Essas são acessíveis exclusivamente para empregados vinculados a

algum empregador (patrocinador) ou a associados/membros de pessoas jurídicas de caráter

profissional, classista ou setorial (instituidor).

Ao longo dos anos, cada vez mais, uma maior parte da população passa a se

conscientizar da importância de se poupar hoje para garantir estabilidade amanhã. É dessa

forma que alternativas como os Fundos de Pensão passam a ganhar atenção de trabalhadores

como potenciais meios de investimento no futuro. Segundo a Fenaprevi, por exemplo, é

notório um aumento na procura de planos de previdência complementar nesses últimos anos,

principalmente nos planos individuais, que foram os que mais receberam recursos.

(FENAPREVI, 2016).

Entretanto, os recentes escândalos nos principais Fundos de Pensão brasileiros estão

levando muitos dos potenciais investidores a questionar a sua confiabilidade e capacidade de

responsavelmente lidar com os investimentos. De acordo com o consolidado estatístico de

maio de 2015 da Associação Brasileira das Entidades Fechadas de Previdência Complementar

(ABRAAP), desde 2013 vem ocorrendo um grande aumento do déficit e uma redução do

superávit das Entidades Fechadas de Previdência Complementar. O consolidado diz ainda que

há uma concentração de 88% do déficit em apenas 10 de todos os 216 planos deficitários

(ABRAAP, 2017). Portanto, presume-se que grandes partes do déficit dos fundos de pensão

estão concentradas em poucas EFPCs.

Além disso, nesses últimos anos, grandes esquemas de corrupção de fundos de pensão

foram investigados, como é o caso da CPI dos Fundos de Pensão (realizado pelo Parlamento)

e da Operação Greenfield (realizado pela Polícia Federal), que investigam enormes perdas dos

quatro maiores Fundos de Pensão do Brasil, o Postalis, Petros, Funcef e Previ. Tendo em vista

a magnitude das perdas investigadas e o período das investigações que coincidem com os

dados estatísticos da ABRAAP, é possível correlacionar que grandes partes do déficit das

EFPC são em razão destes quatro fundos estatais citados anteriormente.

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Em virtude disso, o seguinte artigo tem como objetivo preencher uma lacuna não

muito explorada a respeito dos impactos de desvios de recursos nos fundos de pensão e os

motivos pelos quais eles acontecem.

2. Três casos de fraude em fundos de pensão

A seguir são descritos três dos principais casos de fraude nos Fundos de Pensão

POSTALIS, FUNCEF e PETROS, pois, para analisar os possíveis impactos da corrupção na

previdência complementar fechada é importante compreender como se configuram essas

fraudes e qual o seu escopo.

2.1. Postalis e Bny Mellon

Dentre vários casos investigados pela CPI dos fundos de pensão, nesta parte serão

abordados alguns casos onde houve relação da empresa BNY Mellon com o corpo estatutário

Postalis.

Para entender melhor os casos, é importante observar a relação do serviço prestado entre

ambos. A proposta de serviço aceita pela administração do Postalis com vigência em Janeiro

de 2011, estabelece ao BNY Mellon as seguintes funções:

- A Controladoria Fiduciária da carteira própria (administrada pelos diretores

estatutários do Postalis), com o poder de veto sobre os investimentos desta carteira;

- A Administração Fiduciária de uma carteira terceirizada, onde assume o risco como

administradora desses fundos, perante as autoridades administrativas, deixando as

responsabilidades decorrentes da inadequação dos investimentos ou do desenquadramento

para o Postalis”.

Logo, a partir disso, torna-se mais fácil o entendimento dos casos descritos pela CPI dos

fundos de pensão que possuem os personagens descritos anteriormente.

Conforme estava acordado na proposta de serviço, a atuação do BNY Mellon estava

condicionada à aplicação em Fundos de Investimentos em Cotas de Fundos de Investimentos,

chamados de FIC, que eram administrados pelo próprio BNY Mellon, sendo o Postalis o

único cotista investidor.

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Por sua vez, os FIC’s adquirem cotas de outros fundos, e estes fazem o mesmo, de tal

forma que ocorrem investimentos de diversos níveis, tornando o sistema muito complexo para

analisar todos os fundos, um a um. Segue abaixo um exemplo do funcionamento dos

investimentos da carteira terceirizada.

Fundos integrantes da Carteira Terceirizada

Fonte: (CPI, 2016)

Níveis de investimento no fundo do FIC Serengeti.

Fonte: (CPI, 2016).

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Neste caso, foram abordados dois problemas apontados pela CPI e pela Previc, de

acordo com seus autos de infração: a cobrança de “taxas em cascata” e a sobreposição de

funções gerando um conflito de interesses.

Na cobrança de taxas indevidas, tanto os FIC’s, quanto os fundos que receberam aporte

deles, tinham como administrador dos fundos, empresas do grupo BNY Mellon. Dado que a

BNY Mellon, como administradora fiduciária, poderia investir diretamente nos fundos de

investimentos finais, sem a necessidade de intermediários, é notável a intenção de ganhar

dinheiro através das taxas de administração ao efetuar investimentos em diversos níveis com

os recursos da Postalis.

Como consequência, o Postalis efetuou pagamentos que somam milhões de reais em

taxas desnecessárias, demonstrando assim, como esse conflito de interesse na sobreposição de

funções causou imensos prejuízos aos participantes da EFPC. Para haver uma noção da

grandeza dos casos, de acordo com o relatório da CPI, somente num único caso, no Fundo

FIC-FIDE houve um pagamento de cerca de R$1.205.858,97 em taxas administrativas

desnecessárias.(CPI, 2016).

Ademais, foram contabilizados cerca de 30 autos de infração pela Previc onde o grupo

BNY Mellon teve alguma participação. Dentre eles, as infrações mais frequentes eram a de

aquisição de cotas de diversos fundos de investimento ou ações com porcentagens acima do

limite legal, e aplicações e aquisições de investimentos sem a realização de estudos técnicos

consistentes. Tais infrações chegam a somar valores aproximados a R$ 742.000.000 de

recursos investidos de maneira irregular.(CPI, 2016).

Tais infrações, como a cobrança indevida de “taxas em cascatas”, a sobreposição de

funções e investimentos sem estudos técnicos consistentes, infringem diversos pontos legais

sobre a política de investimentos dos administradores das EFPC, como o Art. 4, Art. 10 e o

inciso II do Art.16 da resolução CMN n° 3.792/2009.

2.2. Funcef e Desenvix

Em 2009, alguns dos funcionários da Fundação dos Economiários Federais (FUNCEF)

e empresários da empresa Desenvix S/A (Desenvix) agiram de forma fraudulenta para desviar

recursos de investimento do fundo de pensão. Inicialmente, a FUNCEF devia investir R$ 200

milhões (25% de participação), de forma direta, e a empresa Desenvix, R$ 600 milhões (75%

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de participação) na Sociedade de Propósito Específico (SPE) Cevix Energias Renováveis S/A

(Cevix).

O investimento na SPE Cevix começou de maneira obscura. A primeira Proposta de

Negócio, com o voto favorável do Diretor de Investimentos (Sr. Demósthenes Marques),

propunha à Diretoria Executiva que o investimento fosse feito de modo direto na SPE Cevix,

na forma de sociedade anônima fechada. Contudo, um mês após a proposta inicial, o Sr.

Marques, sem justificativa racional, solicitou a revogação dessa proposta e submeteu uma

nova Proposta de Negócio à Diretoria Executiva que propunha a criação da FIP Cevix para

intermediar o investimento na SPE Cevix, tornando o investimento direto em indireto.

Em seguida, através de um processo de licitação injusto e parcial, a FUNCEF contratou

a Upside Finanças Corporativas Ltda (Upside) para realizar o valuation dos cinco

empreendimentos do setor energético aportados pela Desenvix no FIP Cevix e que estavam

inicialmente registrados no balanço da Desenvix por R$ 172 milhões. O relatório da Upside

indicou seis valores possíveis para os cinco empreendimentos do setor, os quais variam de R$

592 milhões a R$ 899 milhões, tendo a FUNCEF fechado o negócio pelo valor de R$ 782

milhões (segundo maior valor).

Taxa de

Desconto

Valor em um Cenário

Realista

5,50% 899.959

6,42% 782.001*

6,82% 737.948

7,80% 644.992

8,13% 617.791

8,46% 592.374

*valor pelo qual foi fechado o negócio

Segundo a apuração da Operação Greenfield, houve:

Possíveis ilicitudes na escolha da empresa Upside Finanças Corporativas Ltda. para

realizar a valuation dos empreendimentos aportados pela Desenvix no FIP Cevix e possíveis

fraudes na avaliação feita pela própria Upside, com a superestimação dos ativos aportados

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pela Desenvix: ausência de análise dos riscos ambientais, dos riscos de regulação do

mercado elétrico e da existência de ação civil pública relacionados ao objeto de avaliação.

(POLÍCIA FEDERAL, 2016)

Ainda, em seu Relatório do Auto de Infração nº 02/16-01 (processo administrativo nº

44011.000102/2016-47) a Previc afirma que o valor justo (fair value) era ainda menor

“Considerando os riscos dos empreendimentos performados (bronwfield) a taxa desconto

adequada seria a de 8,46%, o que resultaria no valor R$ 592, milhões”, ou seja, a Funcef

optou por um valor R$ 190 milhões acima do valor justo (R$ 782 milhões – R$592 milhões).

Apesar disso, a divisão na participação acionária foi mantida: 75% das cotas

continuaram a pertencer à Desenvix enquanto a FUNCEF manteve 25%. O único aporte feito

pela Desenvix foram os R$ 172 milhões que estavam inicialmente registrados no seu balanço.

Além disso, quando a FUNCEF aprovou o investimento com base nos duvidosos relatórios de

avaliação elaborados pela Upside, não houve espaço para as manifestações da Gerência

Jurídica, Gerência de Controles e Riscos Corporativos e Gerência de Participações do Fundo

de Pensão. A justificativa para todo o investimento pelos diretores seria de que os riscos

desses projetos eram muito baixos, praticamente igual ao risco soberano, fato que chama a

atenção por se comparar o risco de o Brasil não honrar de forma pontual e integral com o

pagamento de seus títulos da dívida pública com o risco empreendimentos que estão sujeitos a

problemas ambientais, operacionais, legais, entre outros. Apesar de uma afronta direta às

normas da Circular Normativa IF 010 02 da FUNCEF, a Funcef pagou ao Caixa FIP Cevix as

parcelas de integralização e mais R$ 9.238 milhões a título de taxa de ingresso.

Já em 2010, a FUNCEF aprovou uma reestruturação do investimento inicial, que

culminou com a extinção da Cevix por incorporação por parte da Desenvix, criando se o

Caixa FIP Desenvix, no qual a Funcef aportou mais R$ 80 milhões, de forma indireta, sem

nenhuma exigência ou ressalva para que fossem atendidas as determinações da área jurídica

ou mitigados os riscos apontados. Assim, a CPI dos Fundos de Pensão de 2015 estima que o

prejuízo econômico foi de pelo menos R$ 237 milhões e que teve origem em parte na

superavaliação da Upside dos cinco empreendimentos da Desenvix que foram aportados no

negócio.

2.3 Postalis, Petros e Canabrava

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O Caso da Usina Canabrava tem seu início em 2008 quando Ludovico Giannattasio,

fundador do grupo canabrava, começou a atrair investimentos de Fundos de Pensão para o

Grupo Canabrava. A captação de recursos começou através de Cédulas de Crédito Imobiliário

(CCI) que, na época, foram compradas pelo Postalis e Faceb.

Ainda em 2008 foi criado o Fundo de Investimentos Multimercado (FIM) ASM Brasil

Carbono que desde a sua constituição teve como único cotista o Postalis. O FIM ASM Brasil

Carbono detinha em sua carteira debêntures do grupo Canabrava e além disso o Postalis

também comprou debêntures com capital da carteira própria.

Já em 2011, também com o intuito de captar recursos para o grupo Canabrava, e com os

mesmos administradores do FIM ASM e do BNY Mellon, foi criado o Fundo de

Investimentos em Participações Bioenergia (FIP Bioenergia). Entre os cotistas deste FIP

estão: FACEB, Ludovico Giannattasio (fundador do grupo Canabrava), SERPROS, Petros e

Postalis, porém somentes os dois últimos detinham 48,32% das cotas do fundo.

Fonte: (CPI, 2016)

Dentre os investimentos do FIP Bioenergia estavam debêntures do grupo Canabrava e

da Usina Sobrasil. Em novembro de 2015, cada cota do FIP estava valendo R$121.924,85 e o

Patrimônio Líquido era de R$ 818.118.732,20, onde aproximadamente 709 milhões eram em

ações do grupo canabrava.

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Com a criação do FIP, este passou a ser dono de 99,98% das ações do Usina Sobrasil e

77,24% da Portopar Participações S.A., o resto ficou para Ludovico Giannattasio que também

era cotista do grupo Portopar.

Quadro societário do FIP Bioenergia:

Fonte:(CPI, 2016)

Primeiramente é necessário notar que os fundos de pensão que optaram por investir no

FIP Bioenergia sabiam dos diversos relatórios de agências de risco e grupos de advogados que

mostravam que o FIP era um investimento de alto risco e que somente seria lucrativo em

perspectivas otimistas. Além disso, o FIP Bioenergia é o responsável por escolher uma Asset

Manager que, no passado, já havia sofrido a maior multa já aplicada pela CVM e que estava

operando por liminar concedida na justiça, pois estava proibida de operar no mercado

financeiro por 7 anos. Isso tudo geraria, no mínimo, um risco de imagem tanto para o fundo

quanto para os investidores. Fica claro que um investimento de alto risco, que precisa de

premissas otimistas para ser lucrativa não é uma opção para um Fundo de Pensão.

Além das má escolhas do investimento no FIP houveram infrações sobre os limites de

investimentos, como mostrado a seguir:

Tabela cotistas e suas respectivas participações no FIP Bioenergia:

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Cotista Participações

Ludovico Tavares Giannatasio

40,24%

POSTALIS 28,32%

PETROS 20,00%

SERPROS 10,43%

FACEB 01,01%

Fonte:(CPI, 2016)

Segundo a Resolução CMN n° 3.792/2009, artigo 48, o Postalis não poderia ter

investido mais de 25% do PL do fundo de investimento, ou seja, está fora da regulação.

Outra irregularidade aconteceu através de taxas de administração do FIM ASM Brasil

Carbono. Em 2008, o Postalis adquiriu CCI’s do grupo canabrava. Depois, em 2011, o próprio

Postalis adquiriu debêntures do grupo Canabrava e essas debêntures da carteira própria do

Postalis também foram colocadas no FIM ASM Brasil Carbono, de modo a gerar mais taxas

de administração para o FIM e para o BNY Mellon. Ou seja, além de cobrar uma taxa de

administração muito alta para um fundo de investimentos que só investia em debêntures já

pertencentes a outro fundo do BNY Mellon, ainda foi colocado debêntures de carteira própria

do Postalis na FIP para cobrar taxas de administração indevidamente. Em 2014 a auditoria

interna dos correios apontou essas irregularidades dentro do Postalis e do FIM ASM Brasil

Carbono e o fundo foi extinto, passando todas as debêntures para a carteira própria do

Postalis.

Diante das irregularidades e infrações, as diretorias do Postalis e do Petros, os

responsáveis na BNY Mellon e na atual Artis, e os responsáveis pela administração do FIM

ASM Brasil Carbono e do FIP Bioenergia caracterizaram Gestão Fraudulenta como:

“ ...o recurso a qualquer tipo de ardil, sutileza ou astúcia hábil a dissimular o real

objetivo de um ato ou negócio, com o que se busca ludibriar as autoridades monetárias ou

mesmo aqueles que mantêm relação jurídica com o agente criminoso (correntistas,

poupadores, investidores, etc.).” (CPI, 2016)

3. Impactos

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Segundo o último Informe Estatístico Trimestral da PREVIC de Junho de 2017, o

sistema de Previdência Complementar Fechado brasileiro é composto por 308 entidades,

3.193 patrocinadores e 7,2 milhões de associados. O total de ativos é de R$ 808 bilhões, valor

correspondente a 12,8% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. (PREVIC, 2017).

A importância das EFPCs na previdência complementar é evidente. No entanto, a

recente crise nos principais fundos de pensão do país levam os trabalhadores e empresas a

questionar a credibilidade desse sistema e sua capacidade de fornecer os benefícios

prometidos. Não obstante, os impactos que esses atos têm sobre as EFPCs causam não só a

queda da credibilidade das Entidades, mas também, outros efeitos que são danosos e

prejudiciais ao sistema, seus investidores e ao desenvolvimento do país. A seguir estão

descritos alguns dos impactos causados pela corrupção nas EFPCs .

3.1 Multiplicação dos prejuízos

Os problemas causados pela corrupção podem causar um efeito multiplicador e levar a

enormes prejuízos. Por exemplo, segundo a CPI dos Fundos de Pensão, a soma de todos os

prejuízos causados às entidades investigadas supera R$ 1,405.998.564,00, incluindo o

POSTALIS, FUNCEF e PETROS. Todo esse dinheiro desviado ou indevidamente aplicado

prejudica a eficiência das entidades, a qualidade de seus serviços, o tamanho das

contribuições através da perda de credibilidade e principalmente a capacidade do Fundo de

Pensão de cobrir os benefícios prometidos. Assim, mesmo que não seja possível mensurar

exatamente qual é o prejuízo total causado pelas fraudes nos Fundos de Pensão, a

multiplicação dos prejuízos não pode ser ignorada.

3.2 Prejuízo aos patrocinadores e participantes

O principal impacto direto das fraudes é o prejuízo aos patrocinadores e participantes

às custas do enriquecimento ilícito do núcleo dos dirigentes dos fundos de pensão e das

empresas envolvidas nos esquemas.

Segundo o relatório da CPI dos fundos de pensão, os três fundos citados no artigo estão

com resultados deficitários, estes se dão tanto pelo fato de ainda existirem planos BD’s ativos

e pelos diversos investimentos fraudulentos que enriqueceram diretores e empresários às

custas dos trabalhadores. No Postalis, os déficits equacionados, ou seja, déficits que já estão

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222 8ª edição – Segundo Semestre II-2018

ajustados atuarialmente para serem cobertos por meio contribuições extraordinárias, estavam

em 6.763 milhões de reais em 2015. A FUNCEF também tem enormes déficits para pagar.

Para o exercício de 2015, seu déficit total estava em 15.455 milhões e destes somente 2.226 já

estavam ajustados atuarialmente para serem cobertos com contribuições extraordinárias. O

Petros é o que está em pior situação, pois em 2015 seu déficit total era de 20.253 milhões e

atuarialmente ajustados para 32 milhões.(CPI, 2016).

Como os funcionários, as patrocinadoras (Correios, Caixa, Banco do Brasil e Petrobrás)

também aportam recursos para cobrir os rombos - 50% é pago por elas e 50% pelos

trabalhadores, as contribuições extraordinárias por parte dos patrocinadores também onera o

contribuinte, visto que os fundos de pensão retratados são de patrocínio público, os recursos

de seus patrocinadores vêm da união.

3.3 O sistema se torna inerentemente corrupto

A corrupção tem se mostrado um evento recorrente na realidade política do país o que

afeta o funcionamento da economia e instituições brasileiras. Conforme Méon (2005, p.73), o

chamado evento “Sand the Wheels” mostra que a corrupção resulta em malefícios, acarreta na

perda de credibilidade, tornando-se responsável por um aumento da incerteza no mercado

financeiro e afetando o funcionamento interno do país. A inerência dos fundos de pensão com

patrocinadores públicos junto a corrupção é clara quando se avalia caso a caso, em que se vê a

corrupção ocorrendo quase como parte do sistema, por muitas vezes sem qualquer receio ou

tentativa de se encobrir os atos. Essa certeza de impunidade corrobora para que cada vez mais

aconteçam fraudes e para que os problemas de corrupção nas EFPC continuem ao longo do

tempo.

3.4 Prejuízo na Poupança Interna

O volume mínimo de poupança interna de forma continuada é um dos principais fatores

do crescimento sustentável da economia, pois viabiliza os investimentos que são canalizados

ao setor público através do sistema financeiro. A estrutura previdenciária é um dos fatores que

podem influenciar as taxas e alocação da poupança de um país.

Conforme Marinho (2004, p.37), o circuito Financiamento-Investimentos-Poupança-

-Funding (FIPF) é o modelo de investimento que se dá às economias modernas capitalistas.

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223 8ª edição – Segundo Semestre II-2018

Os recursos dos fundos de pensões atuam como consolidadores financeiros dos investimentos

(funding), diminuindo a vulnerabilidade da economia e a necessidade de recorrer à poupança

externa. Assim, problemas com os fundos de pensão como os que ocorrem no Brasil afetam

diretamente a poupança interna, e a diminuição dessa poupança faz com que o país precise

recorrer à poupança externa.

*

Ademais, esses problemas não impactam somente o regime de previdência

complementar, mas também todo o sistema previdenciário que atualmente se encontra

sobrecarregado e é um importante componente do bem-estar e desenvolvimento econômico e

social do país.

4. Conclusão

Ao final desse artigo, dos casos e dos impactos que suscitam em importantes questões,

pode-se extrair algumas conclusões que serão consideradas brevemente neste tópico.

Com a crise reputacional dos Fundos de Pensões, levantam–se questionamentos sobre as

atuais punições para as fraudes dessas entidades, visto que apesar de dezenas de casos, os

responsáveis continuam sem punição. Segundo o atual dirigente da PREVIC Fabio Coelho

“As punições interpretadas como severas são brandas e merecem uma atualização”;“ O órgão

supervisor não está sentado ao lado do dirigente quando ele toma uma decisão de

investimento, por exemplo. É preciso que haja diversas camadas protetivas e é isso que

definimos em nosso plano de ação para 2017/2018”(COELHO, F. 2017), Dessa necessidade

de leis mais severas e que punam os envolvidos em fraude é proposto o Plano de Ação Previc

2017 – 2018 que visa medidas para robustecer todas as linhas de defesas do sistema com

pilares baseados em: Regulação (Propostas de modernização, simplificação e revisão de

normativos relevantes, além de ajuste de incentivos regulatórios) , Supervisão Prudencial

(Aprimoramento do modelo de supervisão da Previc, com foco diferenciado em instituições

sistemicamente importantes), Relacionamento Institucional (Aproximação estratégica com

supervisores, órgãos de controle, agentes de mercado e organismos internacionais) e Gestão

Corporativa (Capacitação de equipes e revisão de processos organizacionais, com foco no uso

de tecnologia e aumento da produtividade.).(PREVIC, 2017).

Mudanças na legislação após fraudes já aconteceram anteriormente, como pode-se citar

os Estados Unidos que após, principalmente, o caso Enron que impactou negativamente a

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bolsa de valores norte americana, fez com que fosse implementado no país a Lei Saranes-

Oxley que atua na prevenção, penalidades e denúncias de casos de fraudes financeiras. Em

comparação, a legislação brasileira diverge da norte americana em alguns aspectos principais,

como a falta de um conselho específico de auditoria, excesso de liberdade aos diretores

financeiros e a insuficiência de penalizações (SCHAFER, J.D, 2015). Essas divergências

aparentemente dificultam a identificação de fraudes, facilitando sua ocorrência no Brasil.

(SCHAFER, J.D, 2015)

Por fim, a sociedade brasileira não pode tornar-se refém dos atos de alguns agentes

desonestos, principalmente daqueles que afetam milhões de pessoas. Ressalta-se ao longo do

artigo algumas ideias que permitem compreender o fenômeno das fraudes nos fundos de

pensão, e com isso, conscientizar a população da importância de mudanças na prevenção,

controle e na punição dos agentes responsáveis pelas fraudes. Por tudo que foi exposto,

chega-se à conclusão que é preciso uma revisão das atuais leis previdenciárias e nos órgãos

que regem e regulamentam os fundos de pensão, para que os beneficiários, patrocinadores e

contribuintes não tenham que arcar com os custos da uma má administração.

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